banda crazy legs
 
 
 
 
 
                                                                    
  

 

Na manhã da apresentação do filme Johnny e June para críticos, ocorreu um fato que aparentemente nada tinha a ver com a história dos dois artistas norte-americanos. Um rapaz entrou numa caixa de papelão comprida, com furos para os olhos e assim, fantasiado de coisa, começou a fazer graça, num alegre balé pela rua Augusta. Soube-se depois que era um pedreiro desempregado e, como nada tinha a fazer, decidiu divertir-se e divertir as pessoas. Era a sua performance contra a própria situação. Um objeto descartável dentro de outro objeto descartável, como aquelas bonecas russas.

 

No entanto, é exatamente disso que fala o filme, sobre gente feita para o descarte, mas que conseguem virar a mesa. Johnny nasceu no Arkansas, filho de um trabalhador rural. Como conta na autobiografia, sem dinheiro, o pai tentava caçar coelhos silvestres para dar de comer à família. Ele se tornaria, de modo espontâneo, um intérprete de operários e marginalizados. Não é à toa que tantos presidiários o admiraram: falava direto com eles e os demais. Comovendo-os e os divertindo, não só dentro dos Estados Unidos, mas também fora.

 

Hoje, o casal não é tão popular por aqui, mas se alguém prestar atenção verá que o culto persiste. Por exemplo, nos concertos do Crazy Legs, banda rockabilly de São Paulo, o público pede Johnny Cash. Suas canções fazem parte do repertório, como a clássica Folsom Prison Blues, interpretada com personalidade e certo humor bem calibrado pelo vocalista Caio Durazzo (Carl Horton). Acompanham-no o baterista Fábio Marconi (McCoy), o contrabaixista Sérgio Paulo de Souza Barreto (Sonny Rocker) e  o guitarrista  Reginaldo Sobreira (Nal). Convidados pelo Estado, viram e comentaram o filme. Para eles, além de ser um belo espetáculo, com a atuação, digamos, magistral, de Joaquin Phoenix  (mais parecido com Johnny do que o próprio Cash) e  Reese Witherspoon (ela, simplesmente, rouba cenas de Phoenix, levando para a tela a dimensão grandiosamente discreta da June original), direção segura, trilha sonora impecável, fidelidade à história, é material de trabalho. Cash está entre as principais referências deles, assim como Hank Williams e o mais recente Brian Setzer, além de Elvis, Jerry Lee Lewis, etc.

 

Esse retrato de época, o filme, pode provocar um aumento de interesse pelo rockabilly, que os criadores da banda, Caio e Sérgio, paulistanos, descobriram através de Raul Seixas. Eles se conheceram por acaso, na Galeria do Rock, ambos interessados em revistas de tatuagem e no gênero musical que os uniria. Descobriram, numa loja, que tinham sido convidados para participar de um mesmo show da banda Outsiders, em 1992 ou 1993. A banda se dissolveu e então fundaram a Crazy Legs. Não há muitas bandas como essa, mas existe uma faixa de público interessada em São Paulo, capital e interior, no Rio, Minas, Mato Grosso do Sul. Nas apresentações, sempre aparecem casais bailarinos que dominam a técnica das piruetas ousadas, vestidos a caráter. "Se eu sou alguma, coisa eu sou é rockabilly", disse Johnny numa entrevista.

 

Na verdade, a banda faz parte de uma espécie de movimento internacional. Eles se correspondem, por email, com grupos do exterior, revistas e emissoras de rádio. Fábio identificou entusiasmado The Dempseys, que acompanha "Elvis" em Johnny e June e que ele viu abrindo o show de Carl Perkins no final da carreira, em Memphis, agosto de 1997  — pouco depois do show, ele morreria. Também aparece Aron Covington, baixista de Memphis e amigo internético do grupo. Crazy Legs tem participado de antologias em CDs editados nos Estados Unidos, Canadá, Japão e México — o rockabilly se fortaleceu na Europa e em outras regiões. Novidades: estarão em CDs na Alemanha e na Espanha. Além disso, Fábio é correspondente da revista Southern and Rocking, de Londres, tem um selo rockabilly (Bad Habits Records) e às vezes atua como DJ. Próxima empreitada: num festival, em Orlando, onde há sinais de retomada do gênero. As atividades dos demais: Sérgio trabalha com a mulher na produção de fotos e comerciais, campanhas publicitárias, ajudando-a também como motorista; Caio ensina música, violão e guitarra, tem uma loja de peças e cria assessórios para motos. Um fã da banda é o guitarrista Luiz Carlini, que participou de um dos últimos concertos da Crazy Legs, no Centro Cultural São Paulo. Carlini tocou, duas vezes, em shows de abertura da banda Stray Cats, de Setzer, e tem simpatia pelo rockabilly. Para ele, fala de um tempo anterior às drogas mais terríveis que marcaram as épocas recentes.

 

Mas a questão comportamental é básica: Elvis e o erotismo, Cash e a questão social, misturados com álcool, desespero e anfetaminas. Estas também são um veneno eficiente, ainda mais quando misturadas com álcool: matam, enlouquecem e provocam dores no indivíduo e arredores. Como Johnny e June mostra muito bem, sem atitude moralista. Quer dizer, não confunde sintoma com causa. O Crazy Legs quer perpetuar, em covers e composições próprias, o que ficou de ouro na história: a capacidade de encontrar poesia e alma onde elas estão pisoteadas. Dentro de uma dançarina caixa de papelão, por exemplo, à qual Reginaldo deu o toque de acabamento. Pediu uma caneta emprestada e nela desenhou a cara que faltava.

 

 

 

 

[Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, fevereiro de 2006]

 

 

 

 

 

Crazy Legs

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março, 2006