©salvador dali (the song of songs of king solomon)
 
 
 
 
 
 
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Nova versão do texto bíblico, de Medina Rodrigues,
reaviva o problema da tradução
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O Cântico dos Cânticos, de Salomão, faz parte da memória coletiva como um todo, mas qualquer leitor da Bíblia deve ter seus trechos preferidos, seja pela sonoridade, seja pelo poder evocativo, etc. Para mim, há uma frase no original hebraico que brilha com luz excessivamente própria. É o versículo 16, conforme a Bíblia de Jerusalém, que em hebraico se resume a apenas seis vocábulos poderosos: Dodi li vaani lo / haro’eh bashoshanim. A frase pode ser traduzida simplesmente assim: Meu querido é meu e eu sou dele (dodi li vaani lo) aquele que pastoreia entre as flores — sejam lírios ou rosas, shoshanim (haro'eh bashoshanim).

O poema atormenta e maravilha através dos milênios. Os antigos rabinos discutiram sobre ele e o grande Akiva saudou-o da seguinte maneira, como lembra o rabino Henry Sobel: "Todo o universo não vale o dia no qual o Cântico dos Cânticos foi dado a Israel. Pois todas as Escrituras são sagradas, mas o Cântico dos Cânticos é a mais sagrada de todas". Teresa de Ávila ocupou-se dele durante 12 anos, mas acabou, infelizmente, destruindo seus comentários, percebe-se muito bem por quê, mas como não reconhecê-lo naqueles versos demuero por que no muero? Frei Luis de Leon foi vítima da Inquisição por causa dos versos atribuídos a Salomão. Renan também se dedicou à obra. E, claro, Mardrus, em cuja versão baseou-se o poeta brasileiro Augusto Frederico Schmidt, publicada em 1938. Não estranha que Schmidt apresente os sinais retóricos do orientalismo, cheio de hipérboles, buscando mais a intensidade da leitura do que a fidelidade sonora ou formal ao texto de origem. Mas ninguém poderá dizer que Schmidt trai o original, pois a intensidade persiste em seu poema. Assim ele traduz a parte onde se encontra o versículo em pauta, de maneira quase irreconhecível, porém:

 

"O meu amado passeia, entre os meus lírios e no meu vinhedo, o rebanho dos seus beijos. Meu bem amado é meu inteiramente e eu sou toda dele. Eu o guardarei comigo..."
 
A Bíblia de Jerusalém faz da seguinte maneira:

 

"Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas!"


            Agora, temos uma versão nova, a partir da Septuaguinta, por Antonio Medina Rodrigues (Labortexto Editorial, edição bilíngüe, 85 págs.), executada com elegância, delicadeza e inteligência. O fato de ele ter utilizado o grego não deve causar nenhum tipo de suspeita. Nelson Ascher está correto ao observar na apresentação que diante das incertezas em torno das fontes do texto, pouco importa na verdade se o tradutor baseou-se no grego ou no hebraico. Também poderia ser o latim, outra referência tão válida quanto. Pode-se perguntar: já não seria o texto hebraico uma tradução e de qual idioma ou idiomas antigos?:

 

Hei de ser a meu amado

O que ele me há de ser,

O que entre os lírios pastoreia.

 

Medina escreveu os dois primeiros versos em sete e o último em oito sílabas, do que resulta num ritmo de cantiga. Schmidt é bastante legível, mas Medina, professor de literatura grega, traz a palavra ser à evidência, expondo a relatividade da situação e o anseio da moça de maneira sintética, como está em grego e mais ainda no hebraico. Observe-se mais que o "hei" inicial, ecoando no "pastoreia" sugere a desejada perfeição da completude circular, que não se efetiva, entretanto, por causa da letra final. E do limite humano.

Essa elegância e delicadeza, além da graça estimulante me levaram de novo a pensar sobre o fragmento que, ouvido na sinagoga ou na voz de certa cantora israelense, ganha o sublime da oração ou esplende em seu poder erótico. Foi a partir da tradução de Medina que pensei em encontrar uma outra sugestão para a frase, mas a partir do hebraico, a título de exercício apenas. O nó do verso, creio, está nas aliterações em L e na assonância em i: dodi li vaani lo ha ro'eh bashoshanim. O som de i em hebraico relaciona-se com o possessivo: ani (eu). E o do L também: sheli (meu), shelanu (nosso), etc. Dodi tem fortíssima conotação afetiva em leque, pode ser meu querido referindo-se ao tio, ao amigo, ao amante — David (Dvd) também significa querido. Sem contar que o mesmo som de i (da letra iod), é a primeira do Tetragrama de Adonai (Meu Senhor). Em vez da palavra-guia, podemos ter neste, como em outros poemas em qualquer idioma, a letra-guia.

Na tradução seguinte do fragmento que ilumina todo o poema, pensei que o i poderia ser substituído por E, freqüente no possessivo, como em meu, dele, dela e presente também em Deus permeando as palavras como a evocação da Shechiná, a Divina Presença tantalizante sinalizada pelo iod. Mas a força expressiva do iod, do i, também existe em português num monossílabo riquíssimo, que varia da nota mais alta até o imperceptível do ultra-som, o além da música de câmara, dispensando o sinal de exclamação, essa forma contida das reticências. O i que ao mesmo tempo suspira e aspira parece reforçar tanto em hebraico como em português a angústia do apelo em busca da compensação na certeza sabida fugidia. É incisivo, chama, lamenta e confirma ao mesmo tempo. A nota a respeito, na Bíblia de Jerusalém, assinala que a "certeza de uma posse mútua volta, em termos quase idênticos, em 6,3 e 7,11 e, nos três casos, ela é formulada na ausência do amado: segurança do amor. Mas o amor deseja uma presença e, nos três casos, esta confiança no amado vem acompanhada de um apelo ou de uma espera (cf. v. 17 e 6,1; 7,12)". No v. 17, a Shulamit pede que o amado volte, no 6,1, ela pergunta onde ele está e, no 7,12, pede seu comparecimento. Bem, o traduzir é a metamorfose em busca do mesmo e, sem contar a distância temporal em relação o texto bíblico, existem as óbvias diferenças entre os idiomas, como fragmentos do vaso partido. A angústia da tradução será inesgotável, como o complexo em que se retorce a musa-cantora:


Shulamit
 
dele são meus
ais e
ele
é

meu
também
 
— aquele
que
apascenta
entre
os
rosais

        

 

 

 

 

(Publicado, originalmente, no Estado de S. Paulo)
 
 
 
 
junho, 2005