O escritor paranaense Wilson Bueno publica, pela Travessa dos Editores, os volumes "Bolero’s Bar" e "Diário Vagau". O primeiro é uma reedição, a prova da resistência de uma obra devidamente celebrada, à época de seu lançamento, pelo crítico Léo Gilson Ribeiro, falecido há pouco, em São Paulo. No entanto, mesmo a mais consagradora das críticas não garante que dali a alguns anos a obra permanecerá legível. Não por falha do crítico, mas por questões de tempo e lugar. "Bolero’s Bar" passa com pompa e circunstância pela prova. O estilo afiado, elegante, sensível, ágil, com que o escritor empreende sua caça diária à poesia, permanece surpreendente mesmo na releitura. "Cada leitura é um novo Wilson, no limite extremo entre poesia e prosa, oração, litania, epifania e quando se mostra nu em pêlo", observa com precisão o escritor e editor Fábio Campana, em nota escrita para uma das contracapas.

         Bueno constrói uma literatura irrequieta, pouco preocupada com definições de gênero e muito mais com a expressão a ser flagrada. Para isso, pouco importa se o resultado é um romance ou uma novela, como a brilhante "Mar Paraguayo" (escrita em portunhol, publicada na América hispânica e traduzida), o poema em prosa, a crônica, a confissão. Para o escritor, esse tipo de fidelidade deve apenas indicar falta de imaginação. Também não se trata de uma série de experimentos avulsos, beirando a gratuidade – que também tem seu lugar. Há um projeto em andamento. Um projeto que se dá a partir da colocação do escritor em sua época. Durante a leitura, percebe-se que Bueno passa seus dias em revista e, claro, os dias de seus contemporâneos, a partir de uma Curitiba que se torna extraterritorial.

         Esse contista, romancista, cronista, poeta, memorialista, mostra ao leitor que a realidade, para ser captada em suas significações, não pode se reduzir a dimensão única. Fala de vagabundos, travestis, bêbados, árvores, pequenos animais, horrores e delicadezas insuspeitadas. Pensa em Rimbaud e mistura Debussy com Nelson Cavaquinho – sem pedantismo, com naturalidade muitas vezes furiosa, recortada num modo de escrever que lembra a precisão elegante do golpe de esgrima. Entre um conto e o registro de um devaneio urbano, ele se dá por exemplo o direito de louvar as influências — isto é, os autores com os quais convive no dia-a-dia de sua estante. Ao contrário do que imaginou Harold Bloom, nem sempre a influência, ou que nome tenha, produz angústia. Ela pode também ser festejada, enfim, um artista só será concebido na companhia de outros artistas. Mas, apesar dessas variações, nota-se uma determinação, uma sensibilidade única que não se permite estreitezas.

Isso indica que em Bueno a unidade não se realiza por meio de convenções formais, mas pelo modo de compartilhar com o leitor sua experiência de vida que também é arte. No conjunto, é como se o escritor não estivesse fazendo ficção. De modo bastante ardiloso ele fornece a chave para a entrada em seu universo no título do segundo volume da caixa, "Diário Vagau" (atenção, autores de antologias escolares, aí estão algumas das melhores crônicas escritas hoje em dia no país — parte do material já saiu na imprensa). Trata-se, evidente, da tradução que Bueno faz do "flâneur" baudelairiano, aquela personagem que não se distancia do próprio autor, velejando pelas ruas e praças da cidade, a confundir literatura com a vida fragmentada da urbe contemporânea. A indigência, a loucura, o vício, abjeções e toques da graça são todos equivalentes na linguagem que brota disso. Com o pontilhamento da ironia: "Vagau ou vagais é uma questã de plurais".

Um exemplo sintético está em "Viado", sobre um travesti mambembe que ataca figurões curitibanos aos beijos e agarros — caso não façam uma devida contribuição com antecedência. O que pagam é o preço para permanecerem afastados da própria humanidade de cada um, com tudo o que isso implica em matéria de glória e horror. O grotesco e o humor se retorcem num movimento complexo de poesia. É importante notar também a série "Memória do Caos", escrita a partir dos anos das ditaduras militares latino-americanas e a desagregação interna provocada pelo terror institucional. No móbile literário que Wilson Bueno está criando, os diversos elementos vão cobrando peso e medida, revelam seus significados no particular e no geral. A leitura ou releitura de seus textos torna-se uma experiência necessária.

Deve-se salientar o aspecto primoroso da edição, com projeto assinado por Paulo Sandrini.

 

 

[Publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de 17 de março de 2007]

 

 

 

 

março, 2007

 

 

 

elenco@germinaliteratura.com.br