DA MULHER A LUTA FICA
 
Da mulher a luta fica,
fica o exemplo e a história,
ficam momentos de glória
e tudo o que se predica.
 
A coragem e a beleza,
fica o instinto materno
que faz o Homem eterno
diante da Natureza.
 
Da mulher fica a ternura,
a eterna perseverança
que mantém a esperança
acesa na criatura.
 
Fica a firmeza do olhar
na clareza do seu tino,
a certeza do destino,
do caminho a caminhar.
 
Da mulher fica o segredo,
a face oculta da lua,
e em torno dela flutua

o homem com seu enredo.

 

 

 

 

 

 

AUTO-RETRATO

 

Sou a reta e sou a curva,

a mão esquerda e a direita,

o verão na praia do Pina

e a chuva que adoça o caju.

 

Sou a revolução que não houve,

as dúvidas da certeza

e a alegria das dúvidas.

 

Sou o pai e sou o filho,

o vento que anuncia tempestades,

o raio que corta o céu ao meio

no meio da tarde.

 

Sou martelo agalopado,

entidade de corpo fechado,

soneto na nova medida

e a bandeira de São João.

 

Sou Elefante e Pitombeiras,

sou o Galo da Madrugada,

sou o barulho da feira

e o som da procissão.

 

Sou a amarelo de Nossa Senhora

e o azul de Iemanjá,

sou calmaria sem vento,

sou selva de pedra e cimento,

relva plantada no chão.

 

Sou o tudo e sou o nada,

o silêncio e a batucada;

sou o sul e sou o norte,

faca cega e navalha de corte.

 

Eu sou o fogo da vida

e sou o sopro da morte!

 

 

 

 

 

 

NO RECIFE ANTIGO

 

Em pleno Recife Antigo,

cheio de tempo e idade,

despiu-se o poeta amigo

mostrando sua sujidade

 

e ainda pleno de vida,

cantava canção contida

 

desculpou-se alegre e embora

rumasse para o futuro

esperava a toda hora

 

o grande salto no escuro

que se anunciava agora.

 

 

 

 

 

 

A TESE

 

As palavras do filósofo

enchia-os de sofismas

e tingia, qual basófilo,

em cores vivas suas cismas —

 

dogmáticos ditados

pra quem busca resultados.

 

Mas, nas mãos o basiótribo

o levava a cometer

várias mortes sem recibos

 

de idéias concebidas

pra não terem próprias vidas.

 

 

 

 

 

 

A ANTÍTESE

 

Queria a revolução,

toda a mudança possível,

toda a certeza do não,

queria todo o não crível:

 

sabia que em pleno avesso

haveria um recomeço.

 

Não contava, no entanto,

que para toda alegria

haveria o mesmo pranto,

 

que todo não era sim,

e todo começo, um fim.

 

 

 

MISTÉRIO

 

Meus males os atribuí à chuva

quando interessava-me ter respostas,

e minha nudez sobre a mesa posta

era mão aflita a procurar a luva.

 

Meus medos os atribuí ao vento

quando em busca de um porto mais seguro

mantinha a vida como o meu futuro,

singrando mares de puro tormento.

 

Porém, se foi a chuva com o medo,

o vento dissipou o mal bem cedo,

hoje navego em outro hemisfério.

 

Levado pela força da paixão,

movido pelo instinto da razão

e perseguindo também o mistério.

 

 

 

 

 

 

SONETO DO INESPERADO

 

O inesperado acontece

esgarçando malha coesa,

mas a surpresa é quem tece

à chama do acaso acesa.

 

Faz-se o impossível possível,

caminha o equilíbrio à esmo,

fixa-se o novo impassível,

o prumo não é o mesmo.

 

Diante de tamanho espanto,

o espírito compulsivo

despoja-se do seu manto,

 

projeta-se e decisivo,

entoando o novo canto,

aceita-o em definitivo.

 

 

 

 

 

 

POEMA AO GUERREIRO

 

Toxina capitalista

caindo no precipício

de uma garganta profunda.

 

Ente revolucionário

morrendo à beira do mangue

de susto, de bala e vício.

 

No fim, apenas o início

de uma alegria que inunda

e estanca o sangue na lama

enquanto a vida derrama.

 

 

 

 

 

 
 

CANÇÃO PARA MARILYN

 

Inerte em sono de pedra

reténs em teu corpo apenas

as cores do simulacro.

 

Teus olhos planos não vêem

velhos tempos e espaços

outrora já habitados.

 

No entanto, sempre serás

ícone de eras modernas,

fulgurante clarão da América,

a eterna deusa morta.

 

 

 

 

 

 

ENGENHO E ARTE

 

Quero morrer no fim da vida

qual chama suave que se apaga

ao sopro de uma brisa vaga,

final transmutação contida.

 

Qual brasa que afinal esfria,

viga que cede sem açoite,

naturalmente como a noite

substitui a luz do dia.

 

Naturalmente como a água,

que sempre nos mares deságua,

em vapor para o alto parte,

 

quero morrer no fim da vida.

E pra ser breve a despedida

me dê a vida engenho e arte.

 

 

 

 

 

 

TORTO

 

Quando a morte lhe trair

e enganar a inteligência,

não pense em pedir clemência,

nem peça para sair.

 

Vista-se com domingueira,

enfeite o leito com flores,

disfarce com mil odores

a hora que é derradeira.

 

No entanto, se alguém em "ais"

liberta gritos primais

em ânsias de despedida,

 

mostre-lhe um riso morto:

- o certo se escreve torto -

apenas é finda a vida!

 

 

 

 

 

 

O POETA

 

Trôpego, o poeta caminha,

desafia o espaço e recria,

assim como um equilibrista,

a geografia do seu abismo.

 

A força que o impulsiona,

instinto necessário à vida,

arquiteta com traição

a hora do golpe final.

 

Cumpre a sua trajetória fatal

qual manso e belo cordeiro que,

cego pela luz mais próxima,

imagina vastas planícies.

 

Acaricia-lhe o vento

a face pálida e vazia.

Já não canta a felicidade,

apenas caminha e vai.

 

 

 

 

 

 

PELAS RUAS DO RECIFE

 

Pelas ruas do Recife surge a novidade,

afirmam-se credos seculares,

renascem mitos modernos.

 

Pelas ruas do Recife dorme-se o sono dos justos,

cessam as palavras,

falam por si sós os fatos.

 

Pelas ruas do Recife caminha a humanidade,

correm as notícias,

dispara a revolução.

 

Pelas ruas do Recife travam-se todas as lutas,

cruzam-se todos os olhares,

reverenciam-se todos os deuses.

 

Pelas ruas do Recife transitam todos os anjos,

ocorrem todas as mortes,

condensam-se todas as imagens.

 

 

 
 
(imagens ©clóvis campêlo)
 

 

 

Clóvis Campêlo (Recife-PE, 1951). Formado em Letras, pela Universidade Federal de Pernambuco. Poeta, fotógrafo, pesquisador sobre a cultura pernambuca. Considera-se um homem de esquerda, que ainda acredita no socialismo. Edita o fotoblogue Clóvis Campêlo.