A proposta deste artigo, longe de querer teorizar sobre o tema, sugere um norte na arte da apreciação do cinema. Assumo o tom confessional e pessoal, apesar de tê-lo sempre evitado quando escrevo, em função de dois fatores:

 

a) parte do que vem a seguir surgiu de conversas pessoais com o já conhecido poeta Dirceu Villa, que escreve nesta mesma revista;

b) a atual falta de reflexão da maioria da população que consome filmes, seja no cinema ou em casa. Para este público sugiro a leitura atenta do que se segue.

 

Como em qualquer outra arte, há elementos na história do cinema que nos conduzem a uma avaliação, digamos, mais imparcial. E, por sorte, é uma história recente, fácil de ser compreendida e assimilada. Mas, devido à sua popularidade, o cinema tornou-se também uma arte diluída em função da diversão do espectador, ou seja, pouca gente vai ao cinema para pensar. Para estes, ir ao cinema significa lazer. É isso em si não é um mal.

Mas diz-se "gostei" ou "não gostei" de determinado filme, como se provássemos um sabor de sorvete que o balconista nos oferece, na esperança de que nos decidamos logo. Ou como se falássemos de algo banal, como um corte de cabelo ou um traje que aguarda aprovação. E há filmes para este público, aqueles que realmente não têm nada a dizer, que se esvaem quando as luzes da sala se acendem, dos quais nem nos lembramos, nunca mais. Efeitos especiais, 3-D, videogames na telona. Que oferecem puramente diversão. Mas deixemos claro que não estamos falando deste tipo de filme.

Cunhou-se a inadequada expressão "filme de arte" quando normalmente não se entende nada do que foi proposto. Godard? Filmes iranianos? Cabeça, filme de arte. Ora, o hermetismo não é necessariamente uma qualidade. Uma idéia na cabeça, câmera na mão, diálogos ininteligíveis, maneirismos, etc., podem e geralmente resultam em grandes naufrágios. Pois justamente o domínio da técnica cinematográfica mais a qualidade de criação do diretor (e da equipe) é que podem gerar sim, algo digno de apreciação, dentro do que o cinema nos tem a oferecer como uma arte autônoma das outras. Caso contrário, poderia ser um teatro filmado como, aliás, eram alguns dos primeiros filmes com câmera fixa, técnica que, curiosamente, se repetiu quando os filmes pornográficos se tornaram mais populares nos anos 70 (embora já existissem antes). Uma cama, um casal (ou mais gente), câmera fixa, único enquadramento. O cinema não importava, era só o veículo de transmissão.

Embora possamos considerar então o cinema como arte autônoma, ele ainda é visto também como uma extensão de outras artes. E alguns diretores fazem uso deste expediente para criar. Há outros, porém, como Peter Greenaway, que consideram o cinema ainda como um misto de teatro e literatura, que não encontrou sua expressão verdadeira. Para ele, estamos presos a uma fórmula, estabelecida e aceita, da qual não conseguimos nos livrar. É como se o cinema ainda estivesse por ser inventado. E ele tem lá suas razões.

Ou seja, com todas estas questões postas, elegi Um filme falado, do consagrado diretor Manoel de Oliveira, como paradigma. Embora pouco visto, pode-se ainda acompanhar a leitura sem grandes problemas.

É sabido que o referido diretor, talvez nos últimos 10 anos,  fez do cinema justamente um canal de expressão de suas idéias (como tem feito a maioria do diretores do chamado "cinema de autor"), mas o fez de maneira um tanto peculiar. Em seus filmes transbordam sua opinião pessoal, sua visão de mundo, de maneira verborrágica, esquemática e, muitas vezes, didática. No filme em questão, que acabo de ver, Oliveira, como num livro escolar, leva-nos aos sítios arqueológicos pontuais da civilização Ocidental,  por intermédio de uma lusitana professora de História, que viaja num cruzeiro com sua infante filha. Nós, espectadores, somos a garotinha a fazer perguntas (o que é uma sereia? lendas? Dom Sebastião? Alcácer Quibir? Santa Sofia?), e a mãe é o diretor, dando-nos sua visão (equilibrada, aceitável, ponderada e elegante) sobre os rumos dos acontecimentos que resultaram no que somos hoje. A elas se somam outros personagens, também ocidentais,  de diferentes nações (Grécia, França, Itália e Estados Unidos), que falam seu próprio idioma, mas são compreendidos pelos demais. Uma Babel às avessas.

Algumas atuações são constrangedoras pelo próprio mal-estar do elenco e pela condescendência com que tratam o diretor, o enredo caminha para um desfecho inadequadíssimo num mundo pós-Bin Laden (não estou falando em ser politicamente correto, mas no reforço desnecessário de certos estereótipos), o cruzeiro — que tem a Índia como destino das portuguesas do filme —, propõe-se a relembrar obviamente os heróicos feitos dos nossos colonizadores. Apesar disso tudo, se temos um mínimo de cultura e ilustração, o filme se torna agradável de se assistir. Temos ali figuras conhecidas da própria história do cinema, como Catherine Deneuve, Irene Papas, Stefania Sandrelli, John Malkovich e a mais recente, Leonor Silveira. O Português, língua nossa também, mescla-se às outras línguas e nos diverte. A aula de História, ilustrada é uma oportunidade de conhecermos lugares difíceis de se reunir numa única obra cinematográfica. Ouvir conversas intermináveis de atores tão familiares emprestam um interesse ao tema que talvez não teríamos se o elenco fosse outro. Outros exemplos:

 

a) Nossa Música (Godard), num dos seus segmentos, assemelha-se muito à Um filme falado no aspecto panfletário dos diretores. Elege-se um tema e os atores são obrigados a falar sobre ele, como numa tese. A opinião, porém, é sempre a do diretor, e isso se nota, é difícil de ocultar. Mas se o assunto interessa ao público, que mal há nisso? Quem vai dizer que não é cinema?

b) Eric Rohmer, que coloca a câmera fixa e se esquece de qualquer possibilidade visual mais apurada que ajude a tornar a história mais interessante. Para ele, o roteiro e os diálogos são o mais importante. Os atores falam sem parar. Não se espera ação nestes filmes. Somos convidados a bisbilhotar amigas confessando segredos, a participar de almoços, jantares e a discutir a relação debaixo dos lençóis. Cinema mal-aproveitado em seus recursos. Mas, particularmente, gosto muito.

c) Robert Bresson, um vampiro que tirava a alma dos atores. Bonecos de cera na tela. Para ele, a atuação era secundária. Ou melhor, não deveria ter nenhum brilho. Assim, o texto ganhava mais destaque. Para os desavisados, um mau diretor de atores ruins.  Filmes ótimos, porém.

d) François Truffaut. Esgotou as possibilidades do cinema de autor. De pequenos efeitos especiais (Fahrenheit 451) a atuações magistrais (Os Incompreendidos) domínio técnico da câmera, do tempo real e do psicológico, da cenografia, música (A noite americana), da adaptação literária (Jules e Jim), enfim, um cineasta ciente do seu amplo campo de atuação. Mas quem pode gostar de O quarto verde?

 

Uma pequena e limitada mostra (demais européia, nouvelle vaguista) de exemplos contraditórios. O intuito era deixar claro que o apreço pessoal que se tem por determinado filme não lhe empresta nenhuma qualidade, a não ser para nós mesmos. E isso não é parâmetro para empurrarmos os amigos ao cinema. Nem para defendermos vorazmente os filmes que amamos. Afinal, há situação mais bizarra do que aquela, na porta do cinema, quando um desconhecido indeciso lhe pergunta se o filme, que você acabou de ver, é bom e recomendável?

O cinema pode ter um papel de reflexão na vida de qualquer pessoa. Pode ser um instrumento útil de aquisição de cultura, ainda mais num país carente como o nosso.  Embora estejamos embotados pelo lixo que os complexos de cinema dos Shoppings Centers nos oferecem, aliados à programação inumana que temos na televisão, sempre há a possibilidade de se reverter este quadro, ao menos no âmbito pessoal. O tema é vasto e merece de todos os admiradores maior atenção.

 

 

 

 

 junho, 2005

 

João Vieira é funcionário público e burocrata, mas vai ao cinema sempre que pode. Considera todo crítico, inclusive ele próprio, um diretor frustrado. Não gosta de polêmicas, mas entre Truffaut e Godard, fica com o homem que amava as mulheres.