Até agora assisti 4 vezes ao filme de Denys Arcand. Da primeira, ano passado, o impacto foi forte, complexo. Não por revelar grandes novidades, mas por nunca ter visto um ícone tão forte e lúcido dos problemas de hoje. A exibição do  processo de degringolada dos valores que, por séculos, haviam sustentado a cultura ocidental, numa fábula exemplar, imaginada e executada com engenho, arte, emoção e humor, levantava a questão do fim  iminente desta mesma  cultura. 

Nas quatro vezes ri, chorei, senti-me levada a concordar e a discordar, a procurar resposta para desafios, a levar a história para casa, a discuti-la  com amigos, mas também, todas as vezes, a exclamar: há tempos eu não assistia a um filme tão bom! Conclusão: boa efetivamente é a obra de arte à qual é impossível não amar, mesmo se dela discordemos em questões graves.

Desde a primeira vez impressionou-me que Arcand trouxesse privilegiadamente ao debate a questão do cristianismo hoje. Tenho assistido a muitos filmes que tratam de decadência e anunciam o fim da civilização atual, sem serem, necessariamente, filmes artísticos — penso, por ex., nO Planeta dos Macacos — mas nunca tinha visto um que, simultaneamente, desse tanta visibilidade à descristianização. Não que explicitamente se discuta a questão. Simplesmente mostra-se uma sociedade em que  valores cristãos fundamentais parecem quase de todo ausentes com uma evidência  tão crua que, mesmo se por décadas estejamos ouvindo o mesmo a João Paulo II — num reiterado alerta e num urgir para uma recristianização —, ver isso em imagens cinematográficas tão poderosas causa impacto. O filme retrata a agonia de uma civilização que se autodenominava  cristã.

Talvez alguns discordem desta leitura por não considerarem tão importante, no filme, a questão religiosa —  obviamente há outras e  candentes    mas, mesmo não querendo conceder-lhe uma centralidade, ela se faz presente com muita força. Tal enfoque, inabitual, revelou-me — e isso para mim foi novo — o quanto no Canadá de tradição francesa o catolicismo era forte. Nem seria preciso ter lido que Denys Arcand provinha de  família fervorosa. Seu filme o revela, mesmo quando manifesta o abandono da fé. Contudo, meses depois, ao ler a entrevista que concedeu à revista  Veja (04/02/04), apreciei ver confirmada a leitura que havia feito, mas me entristeci pelas perspectivas  que o diretor apresenta. Há, no entanto, uma resposta sua na entrevista, que destaco, pois tem tudo a ver com o assunto deste artigo.

À observação da entrevistadora de que ele havia recriado a vida de Cristo, em Jesus de Montreal (1989), o cineasta observa: A religião foi parte de mim por muito tempo, e depois de O Declínio do Império Americano achei que precisava fazer um balanço das minhas crenças e perceber até que ponto elas ainda me influenciavam. 

Os tempos verbais por ele empregados falam da importância da religião no passado. Na conclusão da entrevista, dirá: Mas minha religião é outra: fazer os melhores filmes de que sou capaz. Se bem compreendi, hoje, sua religião é a arte cinematográfica. As Invasões, porém, além de ser uma obra de arte, me diz também que o cristianismo ainda faz muita parte de seu presente. Passo agora a  comentar elementos do filme que motivaram  minhas  afirmações.

        

Primeiro: Apresentada a doença fatal do protagonista, vem a longa e impressionante cena em que uma freira do hospital retira hóstias de um cibório a fim de levar a comunhão a enfermos.

A câmara, filmando-a por detrás, leva-nos a acompanhá-la  ao longo de um tortuoso percurso pelo corredor do hospital, atravancado de macas, de doentes sendo atendidos em condições precárias, de aparelhos em meio à passagem, obrigando a desvios, de enfermeiros, pacientes e médicos querendo avançar, de operários fazendo consertos, estendendo cabos de força por sobre rostos sofridos. Enfim, o espetáculo a que estamos acostumados a ver em nossos pronto-socorros e corredores de hospitais públicos, mas que não imaginávamos existirem em hospitais do primeiro mundo. Tal precariedade, nessa parte do Canadá,  foi-me  outra  revelação.

A religiosa, desviando aqui e acolá, avança com determinação.  Dá a comunhão a um velho, saúda-o com  afeto, prossegue seu percurso. Num  quarto, vai dar a comunhão a um, que a recusa; seu tipo sugere que seria  muçulmano. Surpresa, a religiosa  lamenta o descuido da lista  recebida. O paciente ao lado, porém, faz um sinal  displicente,  a significar que a comunhão era para ele. Recebe-a e, ato contínuo, olha para a tela da televisão que tem diante de si, continuando a assistir a um jogo de golfe. A cena é brutal: a pequena  bola branca sendo deglutida por um buraco orlado de branco, na relva, em flagrante paralelo com o modo mecânico com que o homem "deglute" a hóstia. Fica claro que a maioria dos doentes não recorre à assistência religiosa. É forte e, do ponto de vista cristão, deplorável, embora possa corresponder à  realidade.  

   

Segundo:  Rémy e os amigos — o teor das conversas o manifesta — tinham  recebido formação católica tradicional  em colégios religiosos. Rémy até estivera  num seminário.

Fica claríssimo, nas zombarias, que o principal ataque se dirige às rígidas imposições morais, correntes na educação religiosa da época de estudantes. Como também fora denunciado em Cinema Paradiso (Tornatore, 1988), um excessivo rigor clerical censurava e mutilava filmes, bem como constrangia a liberdade da criação artística. O filme de Gabriel Axel, A Festa de Babette (1987), demonstrara igualmente, e de modo exemplar, que o moralismo fundamentalista  provoca o efeito contrário ao pretendido. É uma crítica — certeira — ao puritanismo indignado e contraproducente que, num movimento pendular, acaba levando a explosões de desregramentos e libertinagens, quando não desemboca em hipocrisias e/ou perversões. O Declínio do Império Americano (1986) que o diga!  Nele se  registra, com desgostante  realismo, o anárquico momento da  chamada  "liberação sexual".

É forte a crítica às deformações da equivocada educação religiosa, com a qual concordo inteiramente. Penso mesmo que a obsessão pela moral, guindada, por tanto tempo, ao primeiro plano da formação cristã — como se o controle da sensualidade fosse o primeiro mandamento — constituiu  uma  das  causas da debandada  religiosa que explodiu nas últimas décadas do século XX. O Deus austero — um incontornável olheiro — era mais para ser temido do que para  ser amado. Ora, se  falta o amor, a seca obediência à  Lei se torna jugo.

 

Terceiro: a família e a conduta das personagens não respondem mais às propostas cristãs. No filme, tal ruptura nem causa estranheza. É o contrário que passa a ser exceção.

Posto isto, será que fica difícil compreender a personagem Nathalie? NAs Invasões é suficiente o que vemos de sua família. Mas quem assistiu também a O Declínio compreende-a ainda melhor: Nathalie — pais vivos, mas órfã — desperta o instinto materno latente em todos nós, homens ou mulheres. A tristeza dessa figura, que conta apenas consigo mesma, toca o público.

Mais sobre a família? A noiva de Sébastien. Sua reação não é a de Nathalie. Ela e Sébastien, filhos também de casamentos desfeitos, deram a volta por cima; são vencedores. Gaëlle, contudo, relata seu drama infantil: aos 3 anos, desaparecia  meia hora antes de o pai terminar a visita à  família  e  era encontrada deitada na frente das rodas de seu carro, para impedi-lo de ir-se. Nem ela  nem Sébastien  querem  isso para os filhos que esperam ter.

 

Quarto: Não poderia deixar de tratar da cena em que Gaëlle vai examinar os objetos litúrgicos e as imagens no subsolo da cúria. Poderosa, tudo nela está nos dizendo de um fim.

Gaëlle fora enviada à cúria para ver se haveria valor monetário naqueles objetos sacros. O diálogo com o clérigo que a recebe é intencionalmente equívoco. Mais de uma vez o sacerdote questiona acerca do valor de tudo aquilo. Mais de uma vez  ela responde que apenas valor histórico e afetivo, para a memória da coletividade,  não valor econômico. Seu guia arremata: quer dizer, então, que tudo isso não vale nada? Subjacente à cena está a debandada do clero e a outra, correlata, dos fiéis, ocorridas em 1966,  após o  Concílio Vaticano II. Diz o padre a Gaëlle, que num Canadá onde todos eram católicos, num espaço de seis meses as igrejas se esvaziaram. Comenta  algo tipo: e ninguém soube explicar  o porquê (!!!).

A cena é de impacto. Como se o cristianismo já tivesse falido e a Igreja se tornado um imenso depósito de objetos  inúteis, em liquidação.

 

Quinto e último: A eutanásia dourada, servida com requintes e acompanhamentos de paisagem, lirismo e comoção. Mesmo para  espectadores que não a aceitam, ela é sedutora. Magia do verdadeiro artista que, dominando perfeitamente os recursos de sua arte, faz o que quiser do emocional de seu público. Do emocional, porque a um espectador lúcido é possível comover-se, chorar, provar a sedução de uma cena mas, ao mesmo tempo, resistir ao canto da sereia. Espectadores  tão lúcidos, contudo, não constituem a maioria do  público...

Esse foi o grande trunfo que o diretor guardou na manga até o final da história. Sua apoteose. Do modo como, ao longo de todo o filme, a cena foi preparada e, por fim, apresentada, não seria  temerário  levantar a lebre de que não é uma prática cristã?

 

Essas, as razões que me levaram a ver, no filme, o retrato do abandono de pontos chaves da prática do cristianismo nos nossos dias. Analiso, agora, outro lado da questão: o da permanência, nAs Invasões, de valores do cristianismo. Como antes,  organizo-me  em   itens.

 

Primeiro:  Volta a figura da irmã. Afinal, o que obrigaria Arcand a colocá-la em seu filme?  Ela está lá, contudo, desde a abertura,  e faz pensar. Terá sido colocada para fazer pensar?

Criada de maneira positiva, aberta ao diálogo, ouve argumentos terríveis do professor universitário de história que é Rémy, proclamando seu ateísmo com indignação, invectivando as  malfeitorias dos cristãos ao longo da história. Ouve e, mesmo quando o horror do que lhe é dito a atinge e faz balançar, tem respostas surpreendentes. Sem condições de aferir a verdade dos fatos — e, mais admirável ainda, não negando a possibilidade de terem ocorrido do modo relatado —, responde algo como: se isso é verdade, então é ainda mais preciso que exista alguém que nos perdoe. A personagem  sensibiliza aquele grande gozador. Faz-lhe perceber o empenho do filho para aliviá-lo, o quanto, inicialmente, ele estava rabugento, irascível, mal agradecido. Sua figura, discreta, acaba dando margem a pensar que o viver cristão não pode ser só negatividade e que o professor de história, no final das contas, padece de um mal de visão — comum a todos nós:  ver com  acuidade erros e malfeitorias e não ver acertos e benfeitorias, ou, vendo-os, não lhes dar  importância. O mal  da metonímia perversa.

  

Segundo e último: Mostra-se também que, dado o empurrão inicial levando alguém a dar-se ao outro, desencadeia-se um processo de generosidade e solidariedade que chega a surpreender. 

Não diríamos que os amigos de Rémy compareceram gratuitamente para acompanhá-lo nos  últimos momentos. Parece que o dinheiro de Sébastien  pôde reuni-los e mantê-los por dias ao seu redor. Contudo, à medida que os convocados se embrenhavam nesse fazer — chamemo-lo assim — seu empenho foi-se tornando mais e mais pessoal, voluntário, gratuito. Lembremos Pierre. De início, pouca é sua vontade de ir ao hospital. Vai-se envolvendo, porém, e acaba por emprestar a casa do lago, para que nela Rémy passe os últimos dias com os amigos, malgrado a  briga  familiar.

Os três alunos que vão visitar o mestre no hospital. Rémy se anima com a visita. Quando saem, Sébastien vai pagar-lhes o combinado. Dos três, dois recebem o dinheiro e até mais, mas a jovem, tocada,  recusa-se a recebê-lo.

O contrato com  Nathalie. Mediante o custeio de seu consumo de heroína, ela concorda  em levá-la para Rémy, a fim de diminuir-lhe a dor. Mal o contrato principia a vigorar, a relação entre os dois vai se  transformando em amizade e mútua ajuda. Nathalie, que nem ama a vida nem teme a morte, ajuda Rémy a pacificar-se ante a perspectiva de ter de partir. Sem dar muito por isso, sua conversa, lúcida, faz-lhe entender que, de fato, há muito tempo ele já não desfrutava de tudo o que, na vida,  lhe custava tanto perder; noutra conversa,  tranqüiliza-o, alertando para o fato de que não lhe era possível saber se, na formação do caráter — sólido e reto — de seu filho, ele não tivera parte alguma. Rémy, por sua vez, ao amar tanto a vida, sem dar-se conta, transmite a  Nathalie o desejo de viver. Ela se abre para a libertação da droga, para o amor, para a leitura.

Parecendo a mais carente, dá  algo de valioso a  Sébastien, aquele que parecia não precisar de nada. Nas cenas quase finais, quando ambos estão em idílio sentados ao pé de uma fogueira, toca o celular do cavaleiro sem mácula. Ele o atende, pois deveria ser um negócio importante. De modo inesperado, porém, Nathalie subtrai-o da mão de Sébastien e o atira à fogueira. Simbólico e significativo gesto. Este experimenta um sobressalto, mas capta algo e ambos riem. O trabalho, os negócios, o dinheiro teriam mesmo de merecer tanto espaço na vida de Sébastien? O celular, ícone do seu deus, é lançado ao seu devido lugar. Não deixa de ser uma lição  bíblica...

Evidencia-se, então, uma importante diferença entre ele e a jovem, entre ela e Gaëlle.  Fica claro que, para Nathalie, o humano vale mais do que o dinheiro. Para Gaëlle, não fica tão claro. Lembremos o  amor entre ela  e  Sébastien, de madrugada. Toca o seu celular, ela o atende e, embora com brevidade, mantém uma conversa de trabalho com o chefe. Para Gaëlle e Sébastien, o termo yuppies aplica-se perfeitamente; para Nathalie, ele nunca nos ocorreria. No final do filme, o Sébastien que volta com Gaëlle para  Londres não é, certamente, o mesmo que  a Québec chegara. Distante, pensativo, "balançado", toda aquela experiência, na qual não foi pequena a participação de Nathalie, começou a operar nele uma mudança. Retornará  para ela? Fica em aberto.

Foram mudando todos, afinal. Louise, esposa de Rémy, uma  megera queixosa, no início; Diane e Dominique, as colegas tão "pra frente", a filha Simone, só adivinhada na telinha do laptop, a eficiente Gaëlle que, por fim, no avião, acaba dizendo je t'aime a Sébastien.

Louise, numa  noite na casa do lago, toca piano a quatro mãos com Dominique, a mesma que — vemos em O Declínio do Império Americano — 17 anos antes, naquele mesmo local, dera o golpe de morte em seu casamento com Rémy. Notável a simetria das cenas entre os dois filmes. Naquela noite,  após a revelação que a levou a separar-se de Rémy, também há um tocar piano a 4 mãos. Para atenuar o constrangimento extremo da situação, a universitária — "massagista" — professora de ginástica e aluna de piano, que estava entre eles, chama-a para tocarem uma peça. A universitária/prostituta  por opção não é alheia à solidariedade. Vemos, 17 anos depois, Louise e Dominique selando uma reconciliação sem palavras, fazendo música, algo de belo em comum. Coisas cristãs, enfim...

 

Para concluir, o filme de Denys Arcand, sob o ponto de vista da religião, dá, o tempo todo, uma no cravo e outra na ferradura. Por um lado, impregnado de fé, amor, solidariedade, diálogo, generosidade. Por outro, da insubmissão massiva contra a moral cristã relativa à castidade, fidelidade conjugal, respeito incondicional à vida.

Afirmei, antes — é um ponto de vista  pessoal — que vinculo tal revolta à interpretação que priorizou a moral em detrimento da espiritualidade. Miopia fatal na formação de gerações. 

Recoloco, por fim, a questão implícita no filme: encerrou-se a era cristã? Na entrevista da Veja, o diretor responde sim, mas a meu ver, a obra está marcada pela ambigüidade: por um lado, o filme diz sim, por outro, diz não.

Enquanto assistente, apaixonada e desafiada por ele, fico com uma afirmação do filósofo italiano Luigi Pareyson (1918-1991), que, num livro de 1950, escreveu:

O cristão que reconheça a realidade da crise deve (...) necessariamente dissociar e desvincular o cristianismo das formas históricas da cultura nas quais ele se foi realizando, até à forma culminante da cultura moderna. É certo que esta dissociação poderá parecer-lhe difícil, porque implica que se desancore de um mundo de cultura no qual se encontra acomodado e conciliado com a totalidade (...). Mas esta dissociação é (...) a única condição para que o cristão reencontre a atualidade do cristianismo.

(...)  Somente se o cristianismo for (considerado) como um fato eterno, acima do tempo e da história, infinitamente transcendente às singulares formas históricas de cultura à qual dá vida, somente neste caso ele está sempre para além de qualquer tentativa humana de fechá-lo numa fórmula ou encerrá-lo num programa, e, ao mesmo tempo, sempre disponível a cada aspiração humana e a cada tentativa do homem de nele inspirar-se e dele tirar norma para seu pensamento e lei para sua vida. Somente deste modo se reencontra a atualidade do cristianismo e se garante sua dissociabilidade da cultura moderna em crise. Comparada aos tempos da história, a atualidade de um fato bimilenário  não é fácil de encontrar; mas comparada à eternidade, a atualidade de um fato que transcende o tempo  está  sempre presente e viva, porque este fato está sempre no seu início, não conhecendo nunca o seu fim. Assim considerado, o cristianismo está no seu princípio hoje como há dois mil anos. Estes dois mil anos têm um significado para o mundo, mas não incidem para nada sobre o cristianismo; são a história do mundo cristão, mas não são a história do cristianismo. Para a eternidade cada  átimo de tempo é indiferente  porque cada átimo de tempo pode ser um átomo de eternidade1.

 

 

 

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1Luigi Pareyson – Esistenza e persona. 2ª ed.,  Gênova, Il  Melangolo, 1985, pp.118-119.

 (A tradução é minha)

 

 

 

 

Maria Helena Nery Garcez é graduada em Letras Neolatinas, pela FFLCHUSP, mestra em Literatura Francesa, doutora e livre-docente em Literatura Portuguesa, pela mesma instituição. Atualmente, exerce docência e orientação de alunos na Pós-graduação na FFLCHUSP. Mais em www.germinaliteratura.com.br/mhg.htm

 

 

 

 

 

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