*

 

Onde cai a folha que cai da folha?

Onde, a folha que se solta de si mesma

como olhando longe e para adentro,

como se olhando de longe

que nem se fosse outra folha a que cai

enquanto a olha?

 

 

 

 

 

 

*

 

Uma palavra assiste ao nascimento

de outra palavra menor

e essa de outra

e essa de outra mais.

Eu as vejo nascer e transcrevo o que vejo

Palavras e palavras

Assistindo às outras enquanto nascem

 

As palavras me olham e se olham

E me assistem a andar

Mais além da casca que vejo.

 

 

 

 

 

*

 

Olho a palavra como água no deserto da página

E já não é água senão luz.

Então abro todas as janelas

Para que entre a luz

E a palavra é ave e abre suas asas.

 

 

 

 

 

 

*

 

O tablado do poema range às vezes

Um estilhaço que estala e se faz estrela

Um prego entorpecido que encontra a luz do outro lado

E já não há parede

Nem estilhaço nem rangido

Que estale e se faça estrela

Porque não há noite no outro lado

Tudo é completude

Luz e encontro.

 

 

 

 

 

 

*

 

Escrevo o que sou

E assim o que sou

Me escreve

E se descobre

 

 

 

 

 

 

*

 

Da noite à noite

Meu outro dia

 

 

 

 

 

 

*

 

Se não fosse o que sou

Que mais seria

Senão o outro que sou

Ou o outro desse outro?

 

 

 

 

 

 

*

 

E se não fosse mais

Que esse outro que me procura no espelho?

 

 

 

 

 

 

*

 

E se fosse não mais a sombra deste ser

Deste verbo ser

Que inteiro brinca de ser

Esta sombra da sombra

Que se nombra-nomeia assombrada?

 

 

 

 

 

 

*

 

E se abrindo a porta

me encontrasse comigo

e não me visse?

 

 

 

 

 

 

*

 

Voa a nota e prende-se à outra

Respira-se a nota e da asa lhe brota

A nota que cala o profundo do vôo

E a asa já exala um tremolo pétala alada

Do eu desolado

Que fixo no céu do vôo

Se pára em suas asas

E canta seu canto enfeitiçado.

 

 

 

 

 

 

*

 

Ilumina-se de rubro a cortina e cresce ante os olhos

O que antes foi esboço de outro rubro

Que de tão pouco ser voltou a ser rubro coxo

Ou roxo ou violeta

Rubro fraco

E não este rubro

Que o aquieta

E ao olho encanta.

 

 

 

 

 

 

TUDO MUDADO

 

Onde iria o nome

        Uma árvore carregada de frutos

Onde a janela

        Ar, puro ar sem sombra nem espelho

Onde o rouxinol

        Uma pluma de poeta

        Pobre ave sem asas

Onde o poeta

        O vazio impressionante da escritura

Onde o olho

        A mão que traça a redondez do mundo

Onde o mar

        A brisa

        A memória

        Um presságio indefeso

 

Onde a rasura

                O sol

 

 

 
 
 
 
 
 

*

 

Escrevo em meu inconsciente

Me escrevo sobre mim

Esta pura palavra

Translúcida, invisível

Corro como uma abelha sobre o corpo do ar

Sou ar e sou abelha.

 

 

 

 

 

 

*

 

Escrevo

Quase sempre

Perguntando por mim.

 

 

 

 

 

 

*

 

O que fazer com a palavra

Se ela é o teu próprio rosto no espelho?

 

 

 

 

 

 

*

 

O que fazer com a palavra

se ela é o único que fica na alcancia

e não aceita as leis do mercado?

 

 

 

 

 

 

*

 

Escrevo mês, olho, cruz

Escrevo deus

Escrevo semana

Negação, passado

Escrevo dia, asas em vôo

Escrevo canção

Escrevo agora

 

Agora escrevo

Que escrevo agora

Neste agora

Carregado de tempo.

 

 

 

 

 

 

*

 

Escrevo música, violino

Nota, concerto

Escrevo harmonia

 

Soletro coro

Cântico, palavra

 

Escrevo filho

 

E se me faz palavra

A ponto de nascer.

 

 

 

 

 

 

*

 

Se eu fosse o mecânico do tempo

Quem move o mecanismo dos anos

Me faltaria tempo para olhá-lo todo

Como o tempo que nunca vê sua cara.

 

 

 

 

 

 

POEMAS TÃO SINGELOS QUE NÃO ESCAPEM

DO BRANCO DA PÁGINA

 

Poemas tão singelos que não escapem

do branco e plano longo da página

Nadadores de terra

pelo temor de fundir-se em sua própria palavra

 

Aonde vai esta linha ou pegada ou verso?

 

O poema pergunta e tu leitor

não sabes o que dizer

 

O poema impostor se pergunta a si mesmo

e não espera resposta

 

que se houvesse resposta

para que se perguntar o poema a si mesmo?

 

Aonde vai este verso

               que salta para a outra linha?

Aonde vão os pássaros e as nuvens e o vento?

 

Que eu saiba

no poema as nuvens não fazem ninho

e do vento que é varão

não se sabe o pai

 

Poemas tão singelos

que não escapem

do branco e plano longo

deste ninho nascente que é a página

aninhada nos olhos teus.

 
 
 
 
 
 
(imagem© hans arp)
 
 
 

Carlos Alberto Trujillo (Castro – Ilha de Chiloé, Chile, 1950). Fundador do "Taller Literario Aumen" de Castro, em 1975. Doutor em Literatura hispano-americana na Pensilvania University (EUA), é professor de literatura hispano-americana, há mais de dez anos, na Villanova University (EUA). Publicou Las musas desvaídas (1977), La hoja de papel (1992), Sonetos y otros poemas de Lope Sin Pega (1999), Todo es prólogo (2000), Palabras (2005), entre outros. Seus poemas têm sido traduzidos ao inglês, italiano, russo e português. Em 1991, obteve o "Prêmio Pablo Neruda" pelo conjunto de sua obra poética. Segundo Iván Carrasco Muñoz, "a poesia de Trujillo propõe temáticas variadas em que se põem em contato elementos originados em culturas distintas; é uma tentativa de superar a exclusão do discurso chilote sem renunciar à sua identidade ao colocá-lo em contato com outras expressões da modernidade literária e textual com as quais realiza um complexo jogo de aproximações, distanciamentos e reciprocidades. O sujeito lírico predominante em seus poemas é um homem comum que se caracteriza por escrever versos e sentir-se poeta". Seleção e tradução: Cristiane Grando (poeta, fotógrafa e doutora em literatura – USP). Notas bio-bibliográficas: Leo Lobos (poeta e artista plástico chileno).