Entre BH e Texas

 

Quando chove em Belo Horizonte a cidade vira um caos, e isso não é novidade para ninguém, pois uns mais, outros menos, todos já fomos vítimas da verdadeira bagunça que, em dias assim, se transforma a capital mineira. Na última sexta-feira, atendendo a um desejo da minha mulher, que queria comer frango ao molho pardo, fui ao Mercado Central, lá pelas dez da manhã, para comprar os ingredientes. "O frango tem que ser caipira e o sangue deve estar bem fresquinho", ela recomendou, especialista que é em fazer esse prato, herança antiga, passada a ela por sua mãe, dona Angelina, de cuja companhia, infelizmente, fomos privados há alguns meses. Chovia fraco quando saí, mas mesmo assim — como se fosse um aviso — já tive dificuldades para conseguir um táxi. Naquele universo que é o mercadão, onde se encontra de tudo, fui me entusiasmando e, em pouco tempo, fora as encomendas, também já havia comprado, além de alpiste e ninja para os meus belgas, um queijo canastra, um bom pedaço de carne-de-sol, um kit feijoada, enfim, quando percebi, a sacola já estava cheia e pesada. "Só de coisas que engordam", ainda pensei, não sem um certo sentimento de culpa, mas feliz por estar ali fazendo aquelas compras.

 

Antes de ir-me embora aproveitei ainda para tomar uma cerveja no Rei do Torresmo, que foi devidamente acompanhada por uma miniporção de mussarela na chapa. Só que me esqueci de uma coisa: estava chovendo em Belo Horizonte. E naquela hora, já quase meio-dia, quando paguei a conta e saí, vi que não seria fácil, pelo estado em que se encontrava a Augusto de Lima e Padre Belchior, conseguir pegar um táxi e chegar a tempo para se preparar o molho pardo.

 

O guarda-chuva havia ficado em casa; a sacola estava pesada, todos os táxis passavam cheios, e só mais de meia hora depois, quando eu já estava todo molhado, foi que vi apontar um táxi vazio, na figura de um Fiat Uno, que já é marca registrada dos carros de praça em Belo Horizonte. Sorte maior não podia ter, pensei comigo, enquanto dava o sinal e chegava junto, já que outros dois passageiros também haviam entrado na disputa. Mas o motorista, parando ao meu lado, abriu a porta e disse, "pode entrar companheiro, pois eu vi que você chamou primeiro".

 

"Obrigado", lhe respondi, e só então vi que aquele rapaz estava vestido a caráter, quase igual a John Voight em Perdidos na noite. Chapéu de caubói, camisa jeans bordada, calça de brim azul e botas de rodeio. Ainda por cima era loiro e tinha olhos azuis. "É o próprio", pensei. A chuva não parava de cair e o carro não saía do lugar. "Que toró, hem amigo?", ele disse, sorriu, e parecia de bem como a vida. Em seguida falou de outras coisas, e, aproveitando a abertura lhe perguntei: "Você é de Barretos?". "Não, sou do Texas...", respondeu. "Como do Texas....?", eu falei. "Quero dizer... eu sou mesmo é de Governador Valadares, mas vivo entre BH e Texas, onde passo oito meses por ano...". "Gosto de me vestir assim, como o pessoal de lá...", completou, como se estivesse justificando, ao mesmo tempo que perguntava: "Você gosta de música country...?".

 

Minutos depois, a chuva não parava, e ainda não tínhamos andado nem três quarteirões, já estávamos ouvindo Willie Nelson, enquanto ele me dizia também que, em Houston, havia trabalhado como ajudante de garçom em um restaurante de mexicanos. "Eles não falam Texas, mas Tejas, com j, e não com x", ensinou, contando ainda que, entre os chicanos — com os quais havia ficado os três últimos anos — havia, além de aprendido a fazer tacos e tortillas, conseguido dinheiro suficiente para comprar o táxi. "A placa é minha", contou orgulhoso, enquanto, para engrossar o buzinaço, também disparou a sua, no melhor estilo de La cucaracha.

 

E continuava a chover. E já haviam passado mais de 40 minutos, e ainda não havíamos alcançado a Álvares Cabral, para em seguida entrar na Olegário Maciel. Minha mulher, àquelas alturas, já devia até ter almoçado, e eu também já começava a ficar com fome, quando então o rapaz, ao me deixar na porta da minha casa, ainda debaixo de um aguaceiro, parou por uns instantes o carro, tirou o chapéu, abaixou o som e disse, como se necessitasse falar aquilo: "Meu sonho mesmo, sabe qual é...?". E naquele instante, percebi, ele começou a se emocionar. "É poder comprar uma pequena fazenda que tínhamos em Valadares e o meu pai perdeu no jogo". Mas enquanto não conseguisse o dinheiro suficiente para realizar aquele sonho, ele iria continuar do jeito que estava, entre BH e Texas.

 

 

(17/12/2002)

 

 


 

 

A Morena do Mucuri

 

Atenção, rapaz solteiro de Belo Horizonte! Se você já está cansado de ficar sozinho, de rondar às tontas pela noite, tomando aquela saideira que não tem fim, ou se jogando em outras roubadas, com desculpa de que esta cidade não oferece opções e não tem ninguém interessante, olhos e ouvidos atentos, porque a morena do Mucuri, aquela que pode preencher o seu vazio, acalentar os seus sonhos e ser o grande amor de sua vida, pode estar bem ao seu lado em alguns bares, teatros ou ruas de Belô. Basta, para isso, que você tenha o coração aberto e esteja com vontade de conhecê-la.

 

Mas não pense, moço solitário, que pelo fato de também estar sozinha, e às vezes, como você, dar umas incertas, à procura de um companheiro, será assim tão fácil conquistar o coração da morena. Pois de amores fáceis, daqueles que começam e terminam, antes mesmo do dia amanhecer, ela quer distância. Não que já não tenha experimentado a gostosa sensação de um clandestino instante, de um tesão repentino, de beijos e abraços trocados no calor da hora, quando os corpos se entregam sem nenhuma cobrança e nada mais além do desejo e do prazer, "Isso também pode ser muito bom", costuma dizer a morena do Mucuri, quando, às vezes, trocando confidências com as amigas, ela deixa abrir o seu baú de lembranças, ao qual muito poucos têm acesso, já que no seu interior, guardados a sete chaves, estão todos os segredos.

 

Ah!, moço solteiro, você que está perdido, em busca de um grande amor, se pudesse eu lhe diria quem é a morena do Mucuri, ela que também, com a mesma intensidade, está à procura da sua cara-metade. De um homem inteiro, só seu, e que, além de deixá-la louca e sem nenhum juízo, possa ainda chamá-la de meu bem e lhe fazer sopa de legumes, quando seus dentes estiverem doendo. "Amanhã de manhã, meu amor, eu quero pão de queijo com torradas e suco de laranja", também, e cheia de vontades, lhe diria a morena, na certeza de que você iria estar a postos para cumprir os seus desejos. Ou então, se lembrando de sua infância: "Hoje à noite, querido, eu quero tomar um escaldado de fubá e folhas rasgadas de couve...".

 

"O quê, minha princesa...?". "É isso mesmo, aprenda e faça pra mim...", lhe diria dengosa aquela mulher, e você, cheio de segundas intenções, iria cumprir a sua vontade, mesmo que, para isso, tivesse de pedir a receita para a sua mãe. Ela que não entenderia nada, e você nem teria de lhe dar maiores explicações, já que por aquela morena de cabelos negros, vinda de Teófilo Otoni, Pote, Pavão ou Novo Cruzeiro, e por cujas veias, por força e graça dessa mistura brasileira corre o sangue árabe, o português, e o índio, você estaria completamente apaixonado.

 

Ah! Rapaz solteiro de Belo Horizonte, se a mim fosse permitido, eu juro que lhe falaria, com todas as letras, o nome da linda morena do Mucuri. Mas como não posso, nem tenho nenhuma vocação para cupido, a chave do seu coração, que talvez um dia possa ser seu, você terá de encontrá-la na sua busca, antes que algum outro o faça.

 

 

P.S.: Esta crônica é para a minha amiga e leitora Maria das Graças Lopes, pelo seu aniversário e para Débora Lauar, a morena do Mucuri.

 

(11/03/2003)

 

 

 
 
 
Nas Asas da Seriema

 

No último fim de semana, de volta à Coluna, onde ainda se bate um bom papo, come-se o melhor queijo Minas do Estado e bebe-se uma cachacinha de primeira, tudo isso longe das insanas bombas que mister Bush continua despejando sobre Bagdá, eu estava no alpendre da nossa casa, conversando com a minha mãe, quando de repente aparece o Pedralvo: primo querido, contador de causos de primeira, e o maior ex-mentiroso do mundo. Digo ex, porque a última mentira que ele contou foi há exatamente 60 anos, no dia em que fez 80, e isso aconteceu há muito tempo.

 

"Vamos entrar, compadre", lhe disse a minha mãe, que batizou um dos seus filhos, o Ernani, se não me engano. "Obrigado, comadre, mas estou com um pouquinho de pressa". "Pressa por quê, compadre?". "É que eu vou indo ali, no retiro, olhar um bezerro que nasceu ontem...". "Mas se foi ontem, ele já mamou, e então está tudo bem...". "É aí, comadre, que a senhora se engana, pois como o dito chegou ao mundo pesando 200 quilos, estou com medo que o leite da sua mãe, que dá 300 litros por dia, seja pouco pra ele...". "É, compadre...", disse a minha mãe, quase sem conter o riso, "mas tome só um cafezinho...". "Não, brigado, mas eu já estou indo mesmo...".

 

Foi aí que eu, sem querer perder a companhia do amigo, nem as suas histórias fantásticas, virei pra ele e falei: "Ouvi dizer, Pedralvo, que lá na sua casa tem um mamoeiro...". "Nem me fale sobre isso, porque essa história já me deu desgosto demais". "Mas por quê, parente?". "Foi uma sementinha de nada, que o Pedralvinho trouxe pra mim lá de Belo Horizonte; eu plantei, e de início nasceu um pezinho à toa". "Mas e daí?". "Daí...?, daí que com menos de uma semana ele já estava com mais de cinco metros de altura, e com cada mamão desse tamanho", e abriu os braços, abarcando o mundo...

 

"É mesmo, Pedralvo?, mas o que aconteceu depois, pra te deixar assim tão triste...?". "Nem te conto, primo, pois em uma manhã, quando acordei e fui lá fora ver o mamoeiro, como fazia todo o dia, não tinha mais nada, tudo havia sumido...". "Mas como assim... sumido...?". "É que o meu mamoeiro, de tão grande que ficou, acabou não agüentando o próprio peso e afundou na terra, com os mamões e tudo...". "Não diga, Pedralvo, com os mamões e tudo...". "Não diga, Pedralvo, não diga...".

 

"É, gente, agora eu tenho mesmo que ir... senão o bezerro vai morrê de fome...". "Mas Pedralvo... me contaram que você voou numa seriema...?". "Besteira, meu primo, besteira...". "Eu também ouvi dizer, compadre...", disse a minha mãe, já morrendo de rir. "Então eu vou contar, mas tem vez que nem eu mesmo acredito que isso aconteceu comigo". "Conte logo, primo, conte logo". "Foi assim: um dia, numa hora dessas, eu tava voltando pra casa, quando de repente, no meio da estrada, tinha um bando de seriemas, todas muito mansinhas".

 

Aí ele parou um pouquinho, tossiu, acendeu um cigarro, e prosseguiu: "Então eu pensei, vou pegar uma bichinha dessas e levar pra Negrinha criar lá em casa, junto com as galinhas. Só que na hora em que agarrei uma delas pela canela, ao invés de ficar quieta, a danada, de uma vez e sem me dar tempo, sabem o que fez?, levantou vôo, e me levou junto".

 

"Não é possível, Pedralvo, e o que você fez...?". "Fazer o quê...?, agarrei então, não em uma, mas nas duas canelas dela, e deixei que a bicha voasse, voasse, e você acredita que com menos de cinco minutos a gente já tava a mais de mil metros de altura?". "Não diga, compadre...", falou a minha mãe, já quase estourando de rir. "Comadre, a senhora não vai acreditar, mas lá de cima, onde fazia um frio danado, eu vi Diamantina, Itamarandiba, Guanhães, Paulistas, e até a senhora, que estava aguando a horta...". "Que coisa, hem, compadre?...". "Mas me conte: como foi que o senhor fez para descer da seriema?". "Ah!, isso eu digo depois, porque agora preciso mesmo de ir...".

 

 

PS – Esta crônica é para Pedralvo Lopes Chaves, em Coluna.

 

(08/04/2003)

 
 
 
 
[Crônicas do livro Entre BH e Texas. São Paulo: Editora Record, 2004. Publicadas
no Estado de Minas, de 2002 a 2003.]
 
 
(imagem ©guttemberg guarabyra | mercadão beagá)
 

 

Carlos Herculano Lopes nasceu em Coluna, Vale do Rio Doce, Minas Gerais, em 1956. Mora em Belo Horizonte desde a adolescência. Formado em Jornalismo, atualmente trabalha no jornal Estado de Minas. Já publicou vários livros, participou de inúmeras antologias e recebeu alguns dos mais importantes prêmios da literatura brasileira, entre eles o Guimarães Rosa e o Lei Sarney, como autor revelação de 1987 (A dança dos cabelos. Romance. São Paulo: Record, 2001, 10ª edição), o Cidade de Belo Horizonte (Memórias da Sede. Contos. Belo Horizonte:  Editora Lemi, 1982), e o da Quinta Bienal Nestlé de 1990 (Sombras de julho, São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1991; Atual/São Paulo: Editora Saraiva, 2003, 14ª edição). Foi um dos dez finalistas do Prêmio Jorge Amado, em 2002, pelo conjunto de sua obra, e recebeu, no mesmo ano, o prêmio especial do júri da UBE (União Brasileira de Escritores) pelo livro Coração aos Pulos (São Paulo: Record, 2001). Teve quatro obras adaptadas para o cinema e televisão: "Estranhas Criaturas", de Memórias da Sede, transformado em filme por Aaron Feldman, em meados da década de 1980; Sombras de julho foi adaptado para a TV (minissérie da TV Cultura de São Paulo) e para o cinema por Marco Altberg, em 1995; "Um Brilho no Escuro", de Coração aos Pulos, foi adaptado para a TV (minissérie da TV Minas, por Breno Milagres, em 2004); e O vestido (Romance. São Paulo: Geração Editorial, 2004), baseado no poema "Caso do Vestido" de Carlos Drummond de Andrade, para o filme  de Paulo Thiago (2004).