O Evangelho

 

 

Para os amigos e familiares, era um incorrigível. Gostava demais de beber e farrear e, conseqüentemente, possuía um fraco por qualquer rabo-de-saia que aparecesse pela frente. Era um amante das noitadas, dos vícios e dos hábitos frívolos, enfim, um adepto convicto da vida desregrada. Naquela semana, porém, andava diferente. Arrastava-se quieto e soturno, embora deixasse transparecer mais expectativa do que preocupação. Por diversas vezes o surpreendiam pensativo, a mirar a parede de forma incansável, como se vislumbrasse, ali, no concreto revestido, um futuro que jamais pudera conceber. As primeiras hipóteses daqueles que o rodeavam foi seca e certa: mulher. Havia, porém, a dúvida a respeito de tal veredicto, afinal, não era de seu costume deixar-se abater por esse tipo de coisa.

 

Na segunda-feira de carnaval, em uma mesa de bar, na companhia de um chegado, após umas tantas garrafas de cerveja, ele abriu o jogo e confirmou as suspeitas. Laura era o seu nome.  Dizia-se interessada nele já havia algum tempo e mandara uma amiga em comum sondá-lo.

 

- É linda, cara, é muito linda.

 

Não cansava de repetir entre um gole e outro.

 

- Sei... e por que é que você não está com ela agora, em vez de ficar jogando conversa fora neste boteco? - provocou o amigo a uma certa altura. Ele fez uma rápida careta de descontentamento, olhou para baixo, esvaziou o copo de cerveja num só gole, tornou a enchê-lo, serviu o amigo e, finalmente, mandou:

 

- É aí que está o problema...

- Ahn...? - inquiriu o companheiro.

- Ela está em um retiro. - começou, em tom de confidência que mesclava fascínio com um certo constrangimento.

- Retiro??

- É... retiro de carnaval.

- Mas, como assim? Cê tá dizendo que ela é...

- Crente. - revelou, corrigindo em seguida, com autocensura. - Crente não, evangélica! Não gosto desse termo...

- Qual termo?

- "Crente".

 

O amigo ficou alguns segundos em silêncio, até, finalmente, fraquejar e cair na gargalhada.

 

- Qual é, cara?

- Porra... desculpa, mas, logo você... com uma crente!

- Evangélica!

- É tudo a mesma merda. Não estou acreditando nisso...

- O que é que tem? - Questionou, com ares de ofendido, enquanto o chegado enxugava as lágrimas.

- Como assim "o que é que tem"? Ficou louco de vez? Vou te dizer uma coisa: você é meu amigo de longa data, meu parceiro de várias noitadas e já te vi fazer muita merda. Agora, sinto dizer, mas essa aí está parecendo a maior de todas!

 

Ele permaneceu um tempo em silêncio, de cabeça baixa, com o copo na mão, até o outro voltar a investir no ataque.

 

- Ela usa cabelo comprido, saião, essas coisas?

- Nem usa. Ela é de uma dessas igrejas modernas: Quadrangular, Pentecostal, Universal... sei lá, só sei que ela é linda, cara!

- Meu Deus do céu...

- É linda...

- Escuta... e você já disse a ela que é ateu?

- Sou agnóstico, é diferente.

- É tudo a mesma merda, tudo do diabo.

- Não sou do diabo... - defendeu-se, sendo interrompido pelo amigo, o qual se inclinara sobre a mesa e passava a inquirir:

- Mas, você já saiu com ela?

- A gente tem conversado... demos uma volta anteontem.

- E...?

- Nada.

- Nada??

- Nada. - Confirmou.

 

O outro desferiu um tapa sobre o tampo da mesa, atraindo os olhares de algumas pessoas sentadas ali perto. Quando falou, proferindo as sentenças entre os dentes, sua voz aparentava um misto de cólera e escárnio.

 

- Será que você não está vendo?? Ficou cego??

- Vendo o quê?

- Esses crentes... esse povo... essa gente... essa gente não trepa, caralho!!

 

As últimas palavras saíram esganadas, e o rosto do amigo fora tomado por uma coloração rubra - tanto por conta do álcool consumido, quanto por sua impaciência com a situação que se desenrolava. Pela primeira vez, desde que a conversa tomara aqueles rumos, o apaixonado sorriu. E quando o fez, foi com o canto dos lábios, de maneira maliciosa.

 

- Ah, isso é relativo...

- Relativo uma pinóia!

- Meu irmão já comeu uma crente. E olha que era daquelas tradicionais... de saião, cabelão e tudo o mais.

- Antes de casar? - Questionou, incrédulo, recebendo como resposta um meneio de cabeça.

- Freqüentou a igreja da menina por umas três semanas, Bíblia debaixo do braço, roupa social... meu pai o flagrou, por acaso, em um terreno baldio. Bíblia jogada num canto, paletó no outro, calça arriada até os tornozelos...

- E a moça??

- De costas para ele, com a saia levantada, a blusa desabotoada e o cabelo desgrenhado.

- É... de bundinha. - Confirmou.

 

Um novo sorriso surgiu nos lábios do amigo. Desta vez, carregado de malícia e - era preciso admitir - apresentando um certo alívio.

 

- Saquei, saquei... entendi sua estratégia.

- Como assim, "estratégia"?

- Tá na cara, meu irmão. Cê vai dar uma de João-sem-braço para desvirtuar a moça.

- Não é nada disso. - defendeu-se.

- Bom saber que você continua o mesmo filho da puta de sempre.

 

Foi a gota. Enquanto o velho parceiro sorria, já demonstrando algum sinal de embriaguez, o semblante do outro se transformou. Por alguns segundos, contraiu os lábios e baixou os olhos para a mesa. Naquele momento, era nítido que as aflições o corroíam. Abriu a boca para falar e, quando o fez, deixou transparecer uma mágoa antiga e que, muito provavelmente, permanecia reprimida até aquela data.

 

- É justamente esse o problema. - Começou, de maneira tímida, tendo o silêncio do amigo como resposta. - Estou cheio... estou cansado de ser "o mesmo filho da puta de sempre"!

 - Relaxa... - O outro ainda tentou amenizar a situação, porém, foi ignorado.

- Sempre desprezei a vida dentro dos padrões convencionais de matrimônio, emprego, tradição, família e propriedade e toda essa merda fascista. - continuou. - Agora, acho... ou melhor, tenho quase a certeza, de que caminhei na direção errada.

- Você está viajando...

- Não estou, não! - rebateu, com amargor.

- Você é um cara tão inteligente... - O outro tentava remediar por meio do argumento clássico, apelando para a mais evidente das qualidades que o parceiro possuía. A arma, entretanto, apresentou um efeito retardado. Agora, o amigo o encarava com os olhos marejados. A impressão era a de que uma grande ofensa acabara de ser proferida. Merda, pensou o outro.

- Você diz isso, vocês todos dizem isso... mas sabe qual a minha vontade?

 

Silêncio.

 

- Minha vontade - continuou - é a de gritar um "E DAÍ??" nas suas caras. Isso não tem me ajudado em nada... nunca ajudou, para dizer a verdade. Experiências, livros, filmes, discos... nada disso conseguiu fazer de mim uma pessoa melhor. - A voz era tremida, ofendida.

 

"Que fase", pensou o amigo, enquanto ouvia o restante do desabafo. Ali estava o cerne de toda a questão: o parceiro de tantas noitadas vivia uma crise existencial e, por algum motivo, enxergava a solução em um relacionamento com alguém que representava seu extremo oposto. Uma evangélica que, embora o outro negasse, ele tinha certeza de que era mais uma daquelas de saião, cabelão e todo o restante do figurino. De fato, uma situação delicada. A história entre seu companheiro e a tal da crente ("evangélica", atalharia o outro) poderia dar muito certo ou, então, ter conseqüências desastrosas. Pessoalmente, preferia não apostar em nenhuma das hipóteses. Era mais confortável imaginar que aquilo era passageiro e que, muito provavelmente, todos sairiam daquela situação sem maiores danos.

 

O relato amargurado continuou a todo vapor na mesa do bar. Por um quarto de hora, o amigo expôs o quanto se sentia rejeitado pelas pessoas e como isso o perturbava e que, de repente, as coisas poderiam ser melhores "do outro lado" - no estilo de vida que ele sempre repudiou. A pieguice, que em nada combinava com aquele que falava sem parar, atingiu níveis extremos.

 

- Quem sabe não é a minha chance de entrar nos eixos... - finalizou.

 

Era difícil pensar em algo a ser dito. Mantiveram-se em silêncio por um bom tempo, esvaziando seus copos e observando o movimento dos carros que iam e vinham pela avenida, àquela hora da madrugada já perdendo um pouco do movimento. A quietude entre eles alcançava a terceira garrafa quando o amigo proferiu sua sentença:

 

- Tem meu apoio.

 

Do outro lado, apenas o silêncio.

 

- Falo sério. Se você, realmente, está nessa situação, querendo mudar de vida, eu te apóio. Acredita que essa transformação pode te fazer feliz?

- Se me fará feliz, só o tempo vai dizer. - atalhou - Mas mesmo assim eu quero, ao menos, tentar... tocar a superfície do "outro lado" uma vez na vida.

- Então, vai em frente - sentenciou.

 

Encararam-se sorrindo, no silêncio cúmplice de amigos. Beberam mais cinco ou seis garrafas e foram para suas respectivas casas. Naquela madrugada, antes de cair em um sono ébrio, ele imaginou se aquele seria, realmente, o seu último carnaval. Evangélicos não participam desse tipo de folia. Fechou os olhos e, em questão de segundos, adormeceu.

 

 

*

 

A terça-feira amanhecera nublada, com cara de chuva. No horário em que se levantou, perto do meio-dia, o céu fora tingido por uma coloração plúmbea e pesada. Carnaval sem chuva não é carnaval, pensou, enquanto saía do banho. Naquela tarde, os amigos se reuniriam para a tradicional churrascada que, anualmente, encerrava as comemorações da folia de momo. Para ele, era verdade, aquela reunião tinha um certo simbolismo, poderia representar não apenas o encerramento do carnaval, mas, também, o término de uma vida "desregrada". No dia seguinte, Laura voltaria do retiro, eles se entenderiam e seria o fim. A expectativa de uma provável mudança não assustava, mas, sim, excitava. No íntimo, não via a hora de se livrar do fardo de obscuridade que ele mesmo tecera sobre sua vida.

 

Aquele passo além, no entanto, merecia ser registrado com uma passagem, um rito especial. Deveria haver uma marca deixando claro que aquele seria seu último dia no "lado B". Por isso, naquela terça-feira, decidiu extrapolar. Cantou, dançou, riu, confraternizou com os velhos companheiros e, é claro, bebeu em grande quantidade. Enxugou um engradado e meio de cerveja, tomou mais um sem-número de caipirinhas e doses de conhaque, cachaça e uísque. Matou no bico quase meia garrafa de vodca e quando pela primeira vez, naquele dia, sentiu o mundo girar, cheirou uma carreira de cocaína e recomeçou a bebedeira. E assim foi durante toda a tarde: fungando compulsivamente e molhando a boca ressecada pelo alcalóide, ele celebrava a transição. Durante todo esse período, as nuvens carregadas não derramaram uma única gota de chuva.

 

Perto das duas da manhã, com o fim da derradeira leva de bebida e o esgotamento físico decorrente de tantos festejos, os últimos convidados entregavam os pontos entre bocejos sonolentos e cambaleantes. Ele, entretanto, queria mais, necessitava usufruir intensamente daquele último dia. "Na quarta-feira de cinzas deixarei de existir, serei outro", declarou várias vezes a quem quisesse ouvir. Assim, enquanto os companheiros de farra iam para a casa, ele decidiu ir à avenida principal, onde toda a cidade brincava no encerramento do carnaval de rua.

 

- Toca para a avenida... tenho de fechar com chave de ouro! - Ordenou, com a voz embargada, ao amigo confidente com quem bebera na noite anterior.

 

Quando desceu do carro que o levara até seu destino final, ouviu um último gracejo:

 

- Paz de Deus, irmão!

 

Sem responder, misturou-se ao povo, sorrindo largo. Dançou entre as pessoas por algum tempo, até se dirigir a um bar, cujo banheiro serviu de abrigo para que a última carreira de pó fosse consumida. No balcão, pediu a última lata de cerveja, bebendo-a em longos goles. De volta às ruas, zanzou entre os foliões com o efeito da coca batendo forte. Agora, as primeiras gotas de chuva começavam a despencar, embora ninguém parecesse se importar com aquilo. Um trovão estourou em algum lugar, soando distante aos seus ouvidos, misturando-se às nostálgicas marchas carnavalescas que a banda executava no palco montado no meio da rua. Àquela altura, já era difícil identificar sons, vozes e fisionomias, porém, mesmo assim - por um desses motivos inexplicáveis - ele percebeu, ou imaginou ter percebido, um olhar. Um olhar de flerte. Parada a alguns metros de onde ele estava, uma morena.

 

A chuva tornou-se mais intensa e trazia, desta vez, um vento furioso com ela. A maioria das pessoas pôs-se a correr em busca de abrigo. Impulsivo, caminhou em direção à mulher. Concluiu, com um princípio de ereção a deformar-lhe a calça, que uma trepada seria a chave de ouro a selar a transição. Sem pensar, puxou-a pelo braço, trazendo-a de encontro ao seu corpo e colando seus lábios aos dela. Com um empurrão brusco, a garota o repeliu e, antes que ele pudesse entender o que se passava, sentiu algo golpear sua têmpora com a intensidade de um caminhão. Por um instante, sua visão foi tomada por uma espessa malha negra e a única coisa audível era o volume surreal dos pingos d'água batendo no asfalto, como se amplificados. O que ele não vira, em meio ao torpor, era o noivo da tal morena se aproximar, surpreendendo-o no momento em que a agarrara. Sem que pudesse esboçar qualquer reação, o corno sacou um punhal de cabo em madrepérola, e, com movimentos rápidos, golpeou-o três vezes no coração, despedaçando-o.

 

Caiu ali mesmo, na sarjeta, com o sangue a tingir a água da enxurrada, e aquilo foi o fim. Foi enterrado na quarta-feira de cinzas. Morreu como o mesmo incorrigível de sempre.
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bruno Machado (1982). jornalista, repórter do jornal Folha de Piedade e guitarrista das bandas Cinzel e 9 Seconds Aggression.Também é autor do livro-reportagem Porão: um retrato da cena hardcore em São Paulo (edição independente). Vive em Ibiúna, interior do estado de São Paulo.