©bruno takahashi c. de oliveira

 

 
 
 
 
 
 

A crise que atingiu o Museu de Arte de São Paulo certamente não terá fim, até que se destituam os dirigentes que implementaram ligações elétricas clandestinas para resolver o problema da falta de luz da instituição. Roubarem energia elétrica para iluminar telas de mestres, como Degas, Cézanne ou Ticiano, não são ações menos criminosas do que as perpetradas por favelados para controlar as eventuais incursões de ratos contra as crianças que dormem em casebres infectos,  nas noites da periferia de São Paulo. Ladrões de galinhas deveriam merecer o mesmo tratamento que banqueiros bandidos, empresários da construção civil desonestos ou ladrões de eletricidade —  ainda que travestidos de diretores de instituições maiúsculas como museus. É o que prevê a lei, embora a grande imprensa tenha tratado o caso todo com uma indiferença típica de quem não tem mesmo em alta conta o maior museu de arte européia da América Latina.

 

Tivesse o caso acontecido no Louvre de Paris, no Prado de Madri,  ou no Hermitage de São Petersburgo  (talvez o maior museu do mundo), quem sabe a questão merecesse outro enfoque. Nessas questões e em tudo mais, as dimensões que damos às coisas são diretamente proporcionais à maior ou menor desimportância que conferimos aos mundos com os quais lidamos. Certa vez, um repórter observou ao escritor argentino Jorge Luis Borges que o brasileiro Euclides da Cunha — eles falavam sobre "Os Sertões" —  quase não era lido, muito menos valorizado pelos próprios brasileiros que, salvo exceções, não o entendiam; ao que Borges retrucou que os brasileiros, ao não darem muita importância para certas coisas, não diminuíam em nada a importância das coisas. Digamos que a pouca relevância conferida pela imprensa à incompetência explícita dos dirigentes do MASP não diminui em nada a real dimensão do problema em que está envolvido o Museu. Gente que não sabe gerir um patrimônio avaliado em alguns bilhões de reais — que é por onde se começa, para mensurar o quanto vale o acervo do MASP — ignora, provavelmente, a própria responsabilidade. E não se estranha que tenha em sua companhia aqueles a quem cabe alertar a opinião pública sobre o que seja o patrimônio cultural de um país.

 

Nada de muito estranho, na verdade. Embora dos Estados Unidos se releve sempre o que são seus museus, como o Metropolitan, os seus escritores, como  Melville, ou seus músicos, como Gershwin, e não seus presidentes, como Bush, ou seus generais, como Custer (o matador de índios), para os brasileiros, talvez não se leve na devida conta o que seja o MASP para o prestígio do Brasil lá fora.

 

O histórico do Museu, numa certa medida, talvez o explique. É consabido que ele foi montado pelo italiano Pietro Maria Bardi, graças à pressão arquitetada  pelo jornalista Assis Chateaubriand contra alguns milionários paulistas: ou eles compravam a obra que Bardi tinha localizado no castelo de um nobre empobrecido com a Segunda Guerra, ou os jornais associados de Chateaubriand tratavam de massacrá-los, com verdades ou mentiras, conforme o caso. Ainda que a palavra chantagem se tornasse a mais apropriada para definir a ação de Chateaubriand, havia a esperança de que, ao entrar para a história do Brasil como "mecenas", muitos miliardários, no fim das contas, talvez o perdoassem. Para todos os efeitos, sabe-se que as telas  de Velásquez, El Greco, ou Masaccio não alteraram em muito o acervo de vinhos das adegas dos respectivos benfeitores do MASP. É verdade que muitos quem sabe até tiveram de se sujeitar ao sacrifício de pechinchar o preço do colar de diamantes ou o casaco de pele à namorada da semana, e que, por isso mesmo, muitos de seus descendentes jamais perdoaram Bardi e Chauteaubriand. Conceda-se que gato, cuja origem vem de gatunagem, gatuno,  seja a melhor resposta dessas pessoas ao MASP, apesar da curiosidade e do respeito universal que o acervo do Museu merece do mundo civilizado; e que, para eles, se afigura, ainda agora, pura e simplesmente como muamba — já que constituído a partir de chantagens. Seria o caso?

 

A palavra muamba, aliás, originária do quimbundo, dialeto angolano que quer dizer também fruto de um roubo,  não é de todo estranha à formação dos maiores museus do mundo. Grande parte do acervo do Louvre foi devidamente tungada por Napoleão Bonaparte, depois de suas campanhas vitoriosas pela Itália, Alemanha, Rússia, Egito e redondezas. A fim de "dourar a pílula", como se diz (e que, afinal, acabou mesmo dourada pelo tempo e pelo respeito que nos merece o Louvre), Napoleão chegou a encomendar a compositores como Luigi Cherubini (italiano nacionalizado francês), peças musicais especialmente compostas  para "comemorar a  chegada"  do que era então batizado como o "translado" de obras de arte provindas diretamente da Itália. Não foi, evidentemente, um procedimento correto — mas a Inglaterra fez o mesmo com os monumentos gregos e egípcios, Pedro, o Grande, da Rússia, não fez diferente para municiar o Hermitage, e o Museu do Prado, de Madri, só é o que se sabe, porque os imperadores espanhóis, a partir de Carlos V, dominaram por longo tempo os Países Baixos, a Itália, as colônias espanholas da América e parte da Alemanha. Muito antes de todos esses, porém, um general romano, Lucius Cornelius Sulla, já tinha seqüestrado boa parte da obra de Aristóteles, que ele encontrou quase abandonada em Atenas e que certamente se perderia, permanecesse na Grécia já decadente.

 

A não ser no procedimento algo insólito, digamos, de Chateaubriand, nada disso tem a ver com o MASP. O professor Bardi, que foi uma das maiores autoridades em arte européia em seu tempo, valeu-se dos preços baixos de algumas obras, para fazer do Brasil uma referência mundial. Em suma, os que acreditam em Deus deveriam louvar a Providência por tê-lo entre nós e de ter contado com o empenho quase diabólico de um Chateaubriand; e tudo para tornar realidade o Museu que ele criou. Alvíssaras, que Deus os tenha a ambos. Quanto aos atuais dirigentes do MASP, sem ofensas, por favor, mas antes que eles acabem com o maior índice de civilização do Brasil, o diabo que os carregue! E logo, imediatamente, o mais depressa possível, à velocidade da luz para não perder o mote; e não demonstrar muita pressa.

 

 

Em tempo: corre a boca pequena, nos meios jornalísticos, que a religação da luz do MASP se deu pela penhora de uma das mais de 60 bailarinas esculpidas por Degas. A ser verdade, a direção estaria negociando com o próprio acervo do MASP que, até quando se sabe, foi todo tombado pelo Patrimônio Histórico. Pode? Com a palavra o Ministério Público, se é que temas como esse —  a cultura do país — lhe interesse.  

 

 

 

 

julho, 2006

 

Enio Squeff, nascido em Porto Alegre (RS), iniciou sua vida profissional, como jornalista na revista Veja, transferindo-se, depois, para o jornal O Estado de S.Paulo, onde se tornou editor da página de arte e, mais tarde, para a Folha de S.Paulo, na qual atuou como editorialista, crítico de música e, por fim, a convite da direção do jornal, como ilustrador, iniciando, assim, sua trajetória de artista plástico. Mais em seu site.

Mais Enio Squeff em Germina
> Enio Squeff: Um Inferno de Puro Gozo