TODAS AS COISAS SÃO BELAS

 

 

Existe essa parte gorda e decadente do cérebro que ela sabia usar muito bem. Plantava coisas exóticas, ouvia bandas obscuras e reparava em detalhes desencontrados. Era bonita e pobre, talvez um pouco inteligente. Lia graphic novels na privada e tinha tudo sempre limpinho. Conheceu o cara numa livraria. Ele folheava uma antologia de Drummond e ela ficou com tesão. Seu cérebro, a exemplo de sua boceta, era assim, adstringente feito o nosso modernismo. Foram tomar um capuccino ali perto dos cinemas, depois viram um filme magnífico onde tudo o que ela sentiu foi a mão dele lhe segurando um dos peitos primeiro com ternura, depois com excitação e afinal com raiva. Ele a beijava com ódio e ela suspirava "tesão". Foram para a casa dela e deu tudo certo. Ela gemia coisinhas assim só dela. Ele, calado e concentrado, somava e subtraía as idas e vindas. Em nenhum momento ela se achou fácil. Em momento algum ele se sentiu calmo. Casaram-se em abril, ela de vestidinho azul-marinho. Entrou na capela ao som da Legião e todo mundo cantou junto. O padre sorria de acordo. Quando ele deu o fora, dezenove meses depois, ela se sentou no chão do quarto e acendeu um cigarro. Pensava com tristeza em todas as coisas boas que ainda tinha para viver. Pouco depois, a tristeza virou raiva. Mas as coisas boas ainda estavam lá.


 

 
 

ACHO QUE AGORA NÃO FALTA NINGUÉM

 

 

Meu pai morreu no comecinho de agosto. Eu me lembro que foi em agosto porque foi no mesmo mês em que eu e a Talita começamos a namorar. A gente começou a namorar num domingo e meu pai morreu na quarta. Eu me lembro que era quarta porque foi num dia em que eu tinha ido ao banco, e eu sempre vou ao banco às quartas. Eu estava na fila quando meu primo entrou com a cara mais horrível que eu já tinha visto. A gente tem que conversar, ele disse.

Eu fico realmente admirado com as coisas que a gente diz. Porque eu sorri e disse: "Que foi? Alguém morreu?". Aí meu primo começou a chorar.

Ele gostava muito do meu pai, acho até que mais do que eu. Meu pai era padrinho dele e os dois gostavam de pescar. Saíam pra pescar em quase todos os feriados. Quanto mais longe iam, mais gostavam, porque voltavam cheios de histórias e, às vezes, com alguns peixes. Não eram bons pescadores, mas se divertiam pra valer. Eu nunca me diverti com meu pai. Mas não quero pensar nisso agora.

Quando meu primo começou a chorar ali, no meio do banco, eu cheguei a pensar que era o pai dele quem tinha morrido. Abracei o infeliz e disse algumas daquelas frases imbecis de ocasião, tipo "tudo vai ficar bem", "relaxa" etc. e tal. Então, no meio daquele choro todo, ele conseguiu erguer o rosto do meu ombro e dizer: "Seu pai, Guilherme...seu pai...".

Lembro de ter pensado o que seria mais conveniente eu pensar naquele momento, e de constatar sem muita dificuldade que tudo o que eu sentia era uma puta necessidade de sentir alguma coisa.

Saímos do banco e eu liguei pra Talita. Ela já sabia e já chorava. Eu me senti extremamente cansado ao perceber que boa parte do meu mundo estaria chorando naquele exato momento e que eu teria pela frente uns bons dias do pior teatro que há, e tudo o que eu desejava era, sinceramente, estar no lugar dele, meu pai. Por pura preguiça.

 

 

Talita me abraçou com força e num segundo a foto ficou pronta: dois patinhos estranhos num abraço tétrico. É, a gente tinha acabado de terminar e aquilo tudo era grande demais, estranho demais, rápido demais, morto demais. Eram uns dias em que todo mundo sofria por razões maiores. Meu pai, por exemplo, e ela sofria por isso também. Ela vivia sofrendo por alguma coisa. A gente pegou as fotos, ela me deu uma e guardou as outras, não sem antes perguntar:

— Quer?

Sentamos num banco, perto da saída. Faltavam umas duas semanas pro Natal, todo mundo estava por ali comprando qualquer coisa bastante necessária pra alguém fatalmente desnecessário. Disse isso pra ela simplesmente porque não pensava em mais nada pra dizer.

— Não seja cretino — ela retorquiu.

Ela dizia que eu tinha perdido a fé nas coisas, mas eu nunca tinha tido fé em coisa alguma. Sempre tinha me sentido a bosta viva flutuante dos mundos, a criatura escarrada de um pai já morto e de uma mãe não-viva, o tragicômico desajeitado da rua tal, o chato por trás dos livros grossos debaixo do sol quente do recreio, putz!, eu não sabia se tinha mais raiva do mundo ou de mim mesmo. E a Talita ali, encolhida, alheia, terminada, mas não pronta.

E a gente tinha terminado! Então por que ela não ia embora? Por que ficava ali, junto comigo, aquele ar de perdidaça? Resolvi botar pra foder:

— Então eu acho que já vou.

Ela me olhou lá do fundo:

— Por quê?

Eu não entendia:

— Ainda tem alguma coisa pra gente conversar?

— Não, mas e daí?

Porra, e daí?

— Porra...

— Como "porra", Guilherme?

— Sei lá. A gente terminou, não foi?

— Foi.

— Então...

— Então o quê?

— A gente devia ir pra casa, cada um pra sua, se trancar no quarto e chorar sozinho um pouco, não acha?

— Eu não choro sozinha.

— Então chora do jeito que quiser.

— Não foi o mundo que acabou, foi?

— Tô cagando pro mundo, Talita.

— Eu sei. Você acha que eu não tô sofrendo, né?

— Não sei.

— E que merda você sabe?

— Não quero saber de nada.

— Tá se escondendo atrás do teu pai.

— Meu pai morreu.

— Exato.

— Eu venho antes disso. Tudo o que eu sou vem antes disso.

— E vem desde quando?

— Não importa. Importa que já encheu.

— Você sempre soube sofrer. Por que não tá sabendo agora?

— O que você sabe disso?

— De você não saber?

— E de você saber.

— Eu sei o que você sabe, mas parece que dói mais em você do que em mim.

— E isso também é minha culpa?

— Nada é sua culpa! Seu pai morto não é sua culpa!

— Nunca pensei que fosse.

— Mas ele vivo era, não era?

— Vivo, não. Distante. Mas vivo, não.

— Mas isso já acabou.

— Claro. Ele morreu, certo?

— Não por isso. Não acabou porque ele morreu.

— E por que acabou?

— Porque eu olho pra você e vejo isso, cara. Vejo escrito FIM.

— E o que é que eu posso fazer?

— Você não vai querer que eu responda isso, vai?

— Você não sabe?

— Como é que eu poderia saber?

— A gente terminou hoje.

— Pior que isso: você terminou.

Terminado, mas não pronto.

— E o que mais eu poderia fazer?

— ...

— ...

— ... Calar a boca. E eu também.

— ...

— ...

— ...

— ...

— Se chovesse, talvez ficasse melhor.

— Por quê?

— Pelo menos ia estar acontecendo alguma coisa.

 

Quando eu era criança, minha mãe era aquela senhora despudoradamente alegre que me esperava voltar da escola escondida atrás da porta com uma banana em uma mão e um iogurte na outra. Eu então ainda não havia adquirido o medo saudabilíssimo das coisas sem nome, até porque, então, eu ainda tinha um nome, Guilherme. Quando chamavam “Guilherme”, eu sentia toda a segurança do mundo pra me voltar e dizer: "Sim?". Porque minha vida, eu imaginava (naquela época eu ainda imaginava), havia começado com um "sim", e "sim" seria a única palavra digna de ter sido criada e dita por qualquer coisa que atendesse pelo singelo nome de DEUS. Eu ainda não temia as maiúsculas, e sabia ter sido um "sim" a causa primária de todas as coisas, incluindo a coisa-mor, Deus. Sim criou Deus, que criou todo o resto, incluindo os homens, que criaram o "não". Não não criou nada, exceto a negação de si, dos homens e de Deus. Negar Deus não é tão grave quanto negar os homens. Quando se nega Deus, nega-se, no máximo, à vida, que nunca valeu mesmo muita coisa. Mas quando se nega os homens, nega-se a si próprio, e isso é pior do que morrer. Eu dizia essas coisas a Talita durante um nosso pós-foda. Ela perguntou se eu, então, não acreditava em Deus.

— Acredito, sim.

— Então por que fala dele desse jeito?

— De que jeito?

— Louco. Você às vezes fala como se fosse louco.

— E daí?

— Não é coisa muito agradável isso. Achar que namoro um louco.

— O que acha que pode acontecer?

— Sei lá. Mas não quero que aconteça nada.

— Nada?      

Ela suspirou e se virou pra mim. Tinha uns restos de porra nos pêlos e na barriga. Porra seca.

— Quando seu pai morreu...

— Quê que tem?

— Você sofreu?

Eu pensei antes de responder. Pensei em outras coisas, bem entendido.

— Eu tentei.

— Como assim?

— Eu tentei... eu tentei achar um jeito, sabe?

— E achou?

Eu olhei pra ela com tristeza. Não queria falar dessas coisas.

— Não.

— Então você não sofreu?

— ...

— ...

Não:

— Não.

Ela me olhou com pena. E eu senti uma bruta vontade de recolher minha porra que havia jorrado dentro dela e em cima dela e dar o fora de tudo o mais rápido possível.

— O que você quer? — perguntei.

Ela me deu um beijo apaixonado e sombrio.

 

O inferno chegou tarde. Eu já estava suficientemente mal pra me comover com o FIM. Eu me lembrava das coisas com a exatidão de um louco. Dava unidade a uma série infindável de icebergs isolados, cada qual numa ponta do mundo afundando um navio maior que o outro, maior que o próprio mundo. Eu era o gelo que os unia, resumia, definia. Eu definhava ante a promessa de "fazer sentido". Sabia que, ao "fazer sentido", seria engolido por um buraco negro com o tamanho da minha cara e o tamanho da minha fome. Hoje faz três dias que eu e Talita terminamos. Meses que papai morreu. Por que chamá-lo, justo agora, de "papai"? É esta a minha ironia sem igual, dando aos mortos nomezinhos impensáveis e aos vivos significâncias esdrúxulas. Ironia sem valor em si, mas valorosa para si. Eu me percebo agora, sim, mas, ainda que me percebesse há anos, isso de nada adiantaria. Poderia perguntar ao meu primo se poderia sê-lo, agora que meu pai já não é. Talvez tivesse valor encarnar alguém que traz em si uma dor sincera não por alguém, mas pela morte de alguém. Porque meu primo não sente por meu pai, sente pela morte do meu pai. Sente não pela coisa, mas pelo acontecimento com a coisa. Para ele, a coisa sozinha não é nada, bem como não é nada o acontecimento isolado. Importam, sim, indissociáveis, coisa e acontecimento:

 

o pai morto,

o pai e sua morte,

o pai em sua cova,

o pai e o adeus,

o pai enterrado,

o pai que já era,

o pai e seu órfão,

o pai e sua viúva,

o pai e seu inferno,

 

e é onde chegamos, onde?, não sei se ao pai ou se ao inferno.

 

Talita atendeu ao terceiro toque:

— Guilherme?... Cê tá bem?

— Mais ou menos.

— Não devia ter saído daquele jeito. Quer dizer, eu também não devia ter... falado daquele jeito. Assim... foi tudo uma merda aquele dia. Nem me lembro... nem me lembro porque a gente começou a brigar.

— Eu sei.

— Ligou pra que a gente...sei lá...

— Não sei.

— Ligou porque quer...?

— Você quer?

Ela suspira.

— Andei pensando.

— Coisa boa ou ruim?

— Tenho pena de você, sabe? De você e de mim. Acho que da porra do mundo inteiro.

— Não ajuda muito.

— Eu quero o que eu não quero.

— E o que você não quer?

— Querer.

Silêncio. Talita:

— Ainda tá aí?

— ...

— ...

— Acho que tô.

— Ótimo. Acho que agora não falta ninguém.

 

 

 

 

 

 
 

 

ÁRVORE ABATIDA

 

 

Pra Karine, que talvez tenha sabido da clausura.

E pra minha asma.

 

 

ela estend. nenhuma festa igual. ela estendida sob a. como o lençol cobre a cama. ódio como aquela me olha mesmo quando em silêncio não sempre sempre em silênc quando como sempre em silêncio cabisbaixas trabalh. o quê? amos. sob a cama estendida uma como uma santa. uma santa sob o queixo à luz de. queria poder pensar: . festa igual: deus. ódio circunvoluindo palpreciável nas palavras cort ao meio. adas. lendosobre. lendo que (preciso necessário imprecindív) amar muito ao invés de pensar muito (el). mald bend lucidez. itas. escolha própria o most eiro. com o tempo. com que intento? — pai mãe irmãos todos. olhares de louca, coitada. ou dizendo que rebeldia. rebel ate que dia? rebeld ate que ia, e foi. à mesa posta fosca mesa posta tosca mesa torta pai mãe todomundo ("pode a alma perder a paz e ate inquietar as demais") gritavam aqueles? gritav engasg gritos engasgad ados am? ela estendida sob a cama na maior (celaminhacelacelalma: selada) sub subverso submersa não subversão. grande verso pequena versão: isto, claro. "como custaria caro a perfeição". alta não nunca tão alta noite esconder-se sob à sombra de velas sob a cama com santa teresa de jesus ou trocar bilhetes banais (você está bem?) ou ser fustigada por repreensões ou regurgitar tais e tais ódios ou driblar sim e disso que fal disse que trat driblar proibições corriq u eiras estatelada num castelo interior (não cabe em si) que não é (não cabe em si!) nenhuma morada.cast elo interior que não é nenhuma morada.  pode a alma perder as demais? à mesa a família não mais não esta mais. esteve alg. um. esteve  quando? alta nunca tão. próxima demais de deus a ponto de se queim ar. à mesa a família sobe pelas pared. es ta cela é minha cela à luz de vel. as coisas todas nenhuma festigual. como ser ia? como seria arrancar o próprio coração e comê-lo à mesa da fam? ília. no meio da ilha de sob a cama não à mesa da familha o próp coraç arranc ar arrancar e comê-lo sob a cama e sob o queixo movente o livro da santa mov ente dentes entes queridos meus quer idos ilhos ilhas idas. aqui cabe um verso pequeno ou grande, nunca livre. arranc ar. ar. a. r. arrancar o próprio coração e comê-lo à mesa sob a cama e sob o queixo movente entes imóveis (quase nenhum móvel) respingando no livro da santa comer o próp r io coração a mais-que-perfeita e mais-que-própria mesa posta torta sim da família de onde sim dali arrancar-se dali dele do "seu" lugar. extinção estendid no chão entendendo o chão como o chão dela cela não sem poder mergulhar. extinguindo não a deus mas ao. mas sim. e o mundo? apalpreciável: posta a mesa do (pro) senhor. osta a mesa do pro senh. apalpre à mesa pro sen. almintroduzida nesta morada em verdade em verdade vos dig que desabitada. ada. ar. na casa do pai há nulas moradas. no casa do pai falta: ar. na casa mesa posta do pai da familha do senhor a mesma mesa posta a família familha sobe pelas paredes quando. na cela à luz. na cela à sombra de velas olhos respingados de palavras de santa. na cela à sombra dos olhos. que ar?

 

 

(Citações: SANTA TERESA DE JESUS)

 
 
(imagens ©massud)
 
 

 

André de Leones (Goiânia/GO, 1980). Autor do romance Hoje está um dia morto (Editora Record), com o qual venceu o Prêmio SESC de Literatura 2005. Um dos autores participantes do projeto Amores Expressos. Mantém o blogue Canis sapiens, colabora com o jornal Diário de Cuiabá e com a revista virtual Ruído Branco.