UM QUADRO DE RUBENS
 
Vi-me comoprimida
num ajuntagente
ora eu só suporto pessoas à distância
de preferência com uma mesa de permeio
acontece que uma mulher foi projectada
para cima de mim com um cigarro aceso
há pessoas que vão para ajuntagentes
fumar cigarros!
ora eu temo as queimaduras
muito por sua vez caí por cima de uma mulher
que era um sex symbol depois
de sofrer uma homotetia de razão
superior a I
há pessoas que vão para ajuntagentes
com dez alcinhas!
era o caso do sex symbol
o vestido tinha três alcinhas
de cada lado
e o soutien alças em duplicado
se caio para baixo passam-me por cima
a única saída é sair por cima
disse de mim para mim
as pessoas do ajuntagente
reparei eu então
eram feitas aos degraus
comecei a subir pela que
estava mais perto
era uma mulher
dei por isso quando começou
a menos que fosse
um contratenor
mas alguém teve a mesma ideia
que eu
e começou a subir por mim acima
ora eu sou intocável
agora já nem consigo
dizer nada de mim para mim
o de mim para mim acabou
não há lugar para mim
num quadro de Rubens
 
 
 
 
 
Segundo J. Pinto Peixoto
o Sr. de La Palice foi uma vítima
da entropia
por isso mesmo
quanto a mim
as suas máximas são as mais radicais
de todas as máximas
um bule colado com grude
não volta mais a ser inteiro
diz o Sr. de La Palice
e de facto não pode beber mais chá
 
 
 
 
 
Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações
 
 
 
 
 
MICROBIOGRAFIAS
 
Henrique de Navarra
na manhã a seguir à noite em que sonhou
que era despedaçado por feras
mandou abater
todos os leões dos fossos do seu castelo
a tiros de arcabuz
 
*
 
Nathaniel Hawthorne
lavava sempre as mãos
antes de abrir as cartas de Sophia Peabody
sua noiva
 
*
 
Um quadro de Ensor
que tinha sido roubado
estava enterrado a 30 cm de profundidade
na praia belga de Mariakerke
 
*
 
Constant Troyon
pagava a um pintor menor
nunca o mesmo
para lhe pintar
os céus de seus quadros
porque ele só se achava capaz
de pintar carvalhos e vacas
 
*
 
Minha mãe era uma pessoa
tão poupada
que as tias de meu pai
diziam a minha mãe
ó Maria Adelaide
esse teu vestido!
já tinha idade para ir à escola
 
 
 
 
 
KABALE UND LIEBE
 
Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
ô les insondables mystères
de la poste!
e Marianna vê esta frase
que escreveu
já subrepticiamente num postal
desfigurada
por peritos na Mal
dade (como os do Dr. Mabuse)
oh les inssondiable Mjzthère
de La Pozte &
nada é tão humilhante como um erro
de ortografia
 
 
 
 
 
A OPERAÇÃO
 
As pessoas podem entrar para me visitar
podem ver-me
ler
entrou a minha tia
esta gaveta não tem chave?
ah está aqui porque é que a escondeste?
pareces daquelas pessoas que têm o pé-de-meia
dentro do colchão
é uma falta de confiança
nas outras pessoas fechar as gavetas
à chave ah é uma chave de vidro
é daquela caixinha? gostas de fazer caixinha
entrou o meu padrinho
começou a revistar as gavetas isto é valioso?
as criadas podem roubar
não devias deixar andar assim isto
por aqui para que queres
tantas caixas? mais valia
fazeres colecção de selos
ocupava menos espaço
tudo isto era bom mas era
para o lixo quem vir isto
vai pensar que és uma trapeira
dessas que andam a mendigar pelos caixotes do
                                               [lixo à noite
quando é que o meu padrinho acabará
de fazer a sua rusga?
tive um pesadelo esta noite
quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho?
as paredes estavam escancaradas
sonhei que almas perversas
tinham partido as caixas
tinham enchido as gavetas da roupa
com salamandras
li isto no "Jornal do Incrível"
e tinham vindo escrever com outra letra que não a minha
outras coisas que não as minhas nos diários
que eram meus
Ah não poder gritar
(fui ontem operada à garganta no fim
a enfermeira mostrou-me as amígdalas
estavam numa bandeja de inox)
 
 
 
 
 
NO MORE TEARS
 
Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa de minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
sem uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar
 
 
 
 
 
Há uma inicial
um G desastrado
sei que foi bordado
com apoquentação
 

 
Ah quem me dera um vestido
que me queimasse
 
 
 
 
 
Habituou-se a chorar mais tarde
no seu quarto em casa das tias
quando ninguém está a ouvir
depois de tudo lhe ter doído
as unhas os cabelos o coração
 
 
 
 
 
Há muito de luxúria
na miséria mais extrema
 
 
 
 
 
Quem me dera uma morte
como a de Don Juan
ah uma mão que me puxasse
para o escuro
 
 
 
 
 
ADORMECER
(com algumas coisas de Maria Tereza Horta)
 
Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome
os teus olhos azuis
a tua gentileza
espero que os partilhes
com alguém querido
como os partilhaste
comigo
amante querido
que não perco
que não deito fora
os meus amantes
não são Gillettes
(não são de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e não tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuíram para isso
são excelentes
 
 
 
 
 
ECLESIASTES
 
            "Seulete suy et seulete vueil estre
            Seulete m'a mon doulx ami laissiee"
            Christine de Pisan
 
Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi
 
 
 
 
O taxista
que me leva
para casa
quer ser meu namorado
você deve ser uma moça porreira
e eu tristíssima gorda disforme
digo-lhe que não pode ser
pelo telefone
(numa inspiração
tinha-lhe dito o meu nome
e dado o meu número de telefone)
o cumprimento do taxista
tão gentil
foi a minha paga
de mais um ano de estudos perdido
a dormitar e a rilhar areias
 
 
 
 
 
MEMÓRIAS DAS INFÂNCIAS
 
Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal!
como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
ao descobrir a mistura
do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
outra é de outra pessoa
 
 
 
 
 
A SEREIA DAS PERNAS TORTAS
 
 

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.

Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:

— Eu amo-te.

E iam com ela para a cama e para a mesa.

Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:

— Não gosto de ti.

E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.

A mulher pediu a Deus:

— Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.

Então Deus fê-la feia.

A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.

Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.

As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.

— Será uma sereia? — perguntaram em coro as criadas ao rei.

— Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra — respondeu o rei às criadas.

E o rei convidou a mulher para jantar.

Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:

— Eu amo-te.

Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:

— Eu amo-te.

Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

 
 
 
 
 
PREOCUPAÇÃO COM OS MEUS CABELOS
 
Cobras em vez de cabelos
afugentam os meus pretendentes
quem me dera ter os cabelos lisos
e usar franja
como a Sylvie Vartan
e a Françoise Hardy
Medusa colchão no toucado
Rapunzel de tranças cortadas
pela madrasta e pelo amante
suplico à Dona Lena
que me decapite
Judite Dalila Salomé Vidal Sassoon
me valham
o turíbulo da minha alcova
é varrido no chão
e deitado fora
pela Paula
a minha mãe mete-lhe
a gorjeta no bolso da bata
cumprido o sacrifício ritual
e eu Joana d'Arc
Maria Antonieta mártir das modas
arrefeço na Escola Politécnica
 
 
 
 
 
A solidão
de Adão
antes da criação
de Eva
devia ser terrível
mas a minha
é bem pior
os homens
que escreveram o
Génesis
não pensaram
que Adão
em vez de saudar
Eva
com um grito de júbilo
a mandasse embora
com sete pedras na mão
mas eu acho
que foi
o que me aconteceu
temendo isso
Deus
não me deu
o papel de Eva
nem o de Maria
porque também
S. José
me tinha corrido
a pontapé.
 
 
 
 
 
Só depois de ler
Barthes
é que Camila
ficou a saber
que o dedo da masturbação
é o médio
até aí tinha usado
sempre
o indicador
experimentou também
o polegar
e viu que todos serviam
meu menino
seu vizinho
pai de todos
fura bolos
mata piolhos
depois de perder a virgindade
experimentou
com um tubo de Cecrisina
metido num Durex Gossamer
também servia
mas isto nada
tem a ver com o amor
tem a ver com o escrever
e com o pintar
e dá menos satisfação
a menos que Camila
se lembre de Jénia
e da penetração
então usa
só os dedos
e serve
para adormecer
 
 
 
 
 
METEOROLÓGICA
 
                (para o José Bernardino)
 
Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
 
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
 
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
 
A vida
é livro
e o livro
não é livre
 
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
 
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

(imagens ©ana lópez mosquera)

 

Adília Lopes (Lisboa, 1960). Poeta, escritora. Publicou Um jogo bastante perigoso (1985), A pão e água de colônia (1987), O Marquês de Chamilly — Kabale und Liebe (1987), O decote da Dama de Espadas (1988), Os 5 livros de versos salvaram o tio (1991), O peixe na água (1993), A continuação do fim do mundo (1995), A Bela Acordada (1997), Clube da poetisa morta (1997), O poeta de Pondichéry seguido de Maria Cristina Martins (1998), Sete rios entre campos (1999), Florbela Espanca espanca (1999), O regresso de Chamilly (2000), Irmã Barata, Irmã Batata (2000), A obra (2000), A mulher-a-dias (2002), todos em Portugal. No Brasil, publicou Antologia Poética (São Paulo: Cosac Näif, 2002 - Rio de Janeiro: 7Letras, 2002). Vive em Lisboa.