ENCONTRO

 

El hoy fugaz es tenue y es eterno;
otro Cielo no esperes, ni otro Infierno.

Jorge Luis Borges

  

Um pouco mais tarde, tem um encontro com ela na mesa do bar. Um encontro que foi mais intuído do que marcado, mais aceito do que planejado, depois de adiado muitas vezes, até que não foi mais possível adiar, até que tocá-la com os olhos e se deixar tocar por ela passou a ser urgente.

Ela, que ele ora desejou, com o peso de quem infringia um mandamento sagrado, e ora  execrou, com o dissabor de quem fugia de si mesmo. Ela, com sua incômoda juventude, com sua beleza brusca, com sua dignidade imperdoável.

Ele acorda muito cedo, como sempre, agora que o sono é rarefeito, mas quem viveu tanto assim já não tem o mesmo empenho em dormir, simplesmente porque já não tem o mesmo empenho em permanecer acordado, e os dois estados se fundem, sono e vigília, sonho e realidade, misturam-se numa massa sem fermento com a qual ele assa as vinte e quatro horas de seus dias. Mas não que isso seja triste. Há um ressaibo de tristeza, sim, mas há o mesmo tanto de alegria, de desesperança e de coragem. Ele simplesmente hoje sabe que cada ano, cada dia passado só fez equipá-lo com novos prismas, através dos quais deformou a realidade de maneiras sempre originais.

Acorda cedo e pega o jornal junto à porta. Lê o jornal por inteiro. Naquele dia, com atenção aguçada. Não basta. Quer ir à rua e comprar o outro jornal, o concorrente, para acabar de caiar sua atualidade diante do mundo. Faz a barba e se veste antes de preparar o café. Depois vai até a cozinha, põe água para ferver, despeja as colheres habituais de pó no filtro de papel. Come suas duas torradas com manteiga, bebe sua xícara de café. E sai. Antes, um último olhar para a cristaleira, junto à porta: os animaizinhos de cristal que Laura comprou na Argentina fisgam-lhe a saudade. De Laura, da Argentina. Mas agora já não há mais tempo para isso. E sai.

Pode dizer com conforto que a General Glicério é a sua rua. Conhece a história daquele lugar. Faz trinta e quatro anos que mora ali, no mesmo edifício Timbaúba. Sabe que antes se chamava rua Aliança, porque ali ficava a fábrica de tecidos Aliança, mas agora também já não há mais tempo para isso — nem para o nome, de dois séculos atrás, nem para lembrar do nome. Caminha até a banca. Cumprimenta o jornaleiro, mas desiste do jornal.

Pensa nela. Será que ainda se lembram do rosto um do outro? Será que, ao vê-la, sentirá aquele velho desejo de voltar atrás e recomeçar? Olha para o relógio de pulso que Laura lhe deu, anos antes. Teria podido trocar Laura por ela? Como seria recomeçar? Quais foram os pontos cruciais da sua vida, as estações em que poderia ter descido do trem, feito uma baldeação e tomado outro rumo? Será que enfim hoje acreditam na chance que não tiveram antes? E será que essa chance se lança numa mesa de bar, jogo de dados (que jamais há de abolir o acaso)? Acaso, disse alguém, foi o pseudônimo que Deus usou quando não quis assinar. Passa o arado na memória: Anatole France disse isso. Mas hoje ele já não tem tanta fé assim, nem em Deus, nem nos Seus pseudônimos. Passa o arado no coração: que fé imensa e libertária isso de não ter fé.

Sem o jornal, desce pela General Glicério até a rua das Laranjeiras. Um dia tão aberto. Talvez nunca mais chova. Vê coisas surpreendentemente bonitas: um cachorro cheirando um besouro cor de cobre. Uma moça tropeçando e arrebentando a tira da sandália e agora como é que ela vai fazer. Uma menina de uniforme atravessando a rua, os cabelos penteados, a franja cobrindo as sobrancelhas, de mão dada com a mãe, deve ser a mãe, as duas são tão parecidas.

Cruza uma esteira de sol sobre a calçada. Caminha até a padaria. É, já tomou o café-da-manhã, mas as padarias o atraem irremediavelmente, fazer o quê. Entra e olha para os salgados e os doces que olham para ele por trás do vidro e do esqueleto de metal do balcão. Pena não ter fome. Olha para os maços de cigarro tão bonitos perto da caixa registradora. Pena não fumar mais. Sente o cheiro do café, respira fundo. O menino: tio, compra um pra mim? Compra. Pede uma média para o menino que também tem a pele cor de média, gozado isso, o que mais? Um pão na chapa, com muita manteiga, pode ser com queijo também, tio? Pode. Fica olhando o menino comer. Depois paga a despesa e sai. Valeu, tio.

Uma calçada arrebentada. Mas quem tem o direito de pedir calçadas quando mora, ou caminha, no caso, numa rua de nome tão poético quanto a rua das Laranjeiras, como já foi sugerido? Nada mais absurdo. Ele tenta se lembrar quem disse isso. O arado outra vez na memória, deixando estrias. Nada, desta vez.

As três filhas que teve com Laura estudaram música ali perto. Depois uma foi ser aeromoça e se casou com um suíço. Outra é gerente de banco. E a outra, que é bailarina, magra e musculosa, marcou um almoço com ele amanhã — mas quem será ele amanhã? Sobe devagar a rua Alice. Bem devagar. Quando suas filhas estudavam música ali eram três adolescentes brincando de atrair olhares. Vê outras adolescentes bonitas subindo a ladeira, descendo, umas garotas de cabelos compridos e camisetas coladas no corpo, vê os seus seios desenhados nas camisetas, não se lembra muito bem como foi a ostensiva adolescência de suas filhas. Não sabe, por exemplo, se usavam maquiagem. Estas não usam. Mas se lembra das três uniformizadas para ir à escola, o uniforme era tênis, calças jeans e blusas de malha com o emblema da escola. Elas reclamavam do calor. Pegavam o 184 no Largo do Machado e saltavam no ponto final. Chegavam em casa suando à uma da tarde.

As adolescentes não olham para ele. Chegou a uma idade que é quase camuflagem diante dos interesses do mundo. Não imaginou que seria assim. Hoje simplesmente o seu tempo não se mede. Já não sabe quantas são as rugas, os fios brancos, os fios que faltam. Sente Laura que falta, isso sim, mas olhar para o espaço vago antes ocupado por ela é sua lição cotidiana de generosidade. No primeiro dia sem Laura, sentiu-se ir junto com ela. No segundo mês, reacostumou-se ao fole dos pulmões e ao tambor do coração. No segundo ano, ela era isso:  a generosidade ressemantizada no dicionário.

Diante da escola de música de suas filhas, lê as letras prateadas. Os Seminários de Música Pro Arte. Faz meia volta e desce pela outra calçada, até o bar do Serafim. Já está na hora. Gostaria de continuar passeando, para não roubar a secreta expectativa do dia. Seu encontro poderia não chegar nunca: faltariam cinco minutos, um minuto, trinta segundos, um segundo, um décimo, um centésimo, um milésimo de segundo. Aquiles disputando corrida com a tartaruga. Enquanto o tempo se abismasse, enquanto o tempo se dobrasse sobre o próprio estômago ainda não seria o momento que ele espera e assim, numa espécie de antecâmera, a eternidade se espraiaria tão fácil. Mas em certo momento o ponteiro do relógio se move, tão arbitrário quanto definitivo.

Passa um ônibus. Ele pára e observa. Vê o muro pintado com o rosto do Ronaldinho, fizeram isso para a Copa. Entra no bar quase vazio, senta-se e espera. Em algum lugar ouvem futebol no rádio. Alguém diz: dependendo do resultado do Botafogo e Santos, no domingo. A sua cerveja vem bem gelada. Bebe um gole, que vai descendo anestésico não só pela garganta, mas pelas veias, envolve os nervos, os músculos, os ossos, que brilham todos, reluzem, suas células rodopiam numa quadrilha extática de pentacampeonato mundial.

Quando ela finalmente chega, é, evidentemente, outra mulher. Já não se parece com a idéia que por tanto tempo guardou dela. Mas numa coisa estava certo: continua linda, como nas outras ocasiões em que estiveram assim, cara a cara. Ela parece que vem flutuando e que não tem peso o corpo que coloca sobre a cadeira diante da sua.

Eu estava te esperando, ele diz.

Mas como você sabia que era hoje, que era agora?

Ele não responde. Quer uma cerveja?

Ela não responde.

A seda chinesa tão branca e tão lisa da mão dela toca a sua mão de manchas e rugas. Ele olha ao redor como se fizesse uma fotografia daquele lugar, para levar consigo, à guisa de passaporte, ou de suvenir. Uma fotografia para o barqueiro, ao invés das tradicionais moedas.

Em resposta ao seu pensamento, ela diz:

Não existe esse tal barqueiro.

Eu imaginava que não existisse mesmo.

E, depois de alguns instantes:

Existe alguma coisa?

Ela não responde. É possível que seja mesmo tão bonita? Devagar, os olhos dele se fecham, como se a claridade fosse quase um perigo. A última coisa que vê, em vida, é o sorriso dela, aquele sorriso que nada significa porque significa todas as coisas. Sobre a mesa a cabeça tomba quase sem fazer barulho.

Tá tudo bem com o senhor? pergunta, algum tempo depois, o rapaz da mesa ao lado.

Ele não responde.

Edmilson, vem cá! Acho que aconteceu alguma coisa com esse senhor aqui. Não tinha uma mulher com ele? Pra onde é que ela foi?

 

 

   

Publicado na antologia Prosas cariocas

 

 

 

JAZZ

 

 

Ela tira os óculos e guarda uma mecha de cabelo atrás da orelha. Faz frio no estúdio. Pensa vagamente no sonho que teve à noite enquanto canta my toes just touched the water.

A melodia desliza pela sala e ele tem plena consciência de que perdeu o controle do tempo. A música de Norah Jones vai terminar, a noite vai terminar, na hora de dormir ele vai apagar o lustre e conseqüentemente seu reflexo no espelho vai morrer também.

O pai dela escuta música na sala (Norah Jones de novo, meu deus) e parece que não quer conversa. Ela pega uma bala na gaveta e volta para o quarto. Ao passar pelo corredor vê, no teto, uma lagartixa.

Suas pequeninas patas esverdeadas, quase translúcidas, grudam-se ao teto enquanto ela espreita um mosquito. Mas o inseto é mais rápido e sai voando pela janela aberta.

Lá fora, sob suas asas, a noite é translúcida, esverdeada, fria e doce. Parece uma melodia de jazz.

 

 

 

 

GEOGRAFIA

 

 

Na chapada tudo é grande. O céu só termina quando o seu olhar desiste, ou quando a miopia te vence. Caminhe o dia inteiro e confira no mapa: você só cobriu o espaço que basta ao seu cansaço. A chapada desafia os músculos, a garrafa d'água, a máquina fotográfica. O ar é demais e dói, ressecando seu fôlego neste junho marrom. Mas água do rio Preto é preta e transparente e seus pés não encontram fundo para o medo do mergulho. Sua voz não encontra  timbre para o grito. Ao sublime inquieto do céu, seu pensamento é supérfluo. Mesmo sua vida é supérflua. O céu do cerrado desdenha das testemunhas e o sol se põe, metamorfose, catarse azul e amarela nas araras-canindé. Alguém disse que as montanhas aqui são para dentro. Você caiu na barriga do mundo, onde se desfaz tão rapidamente quanto qualquer alimento. A pele queima, a noite é fria, e as estrelas pulsam toda a galáxia insone enquanto você morre mais uma vez.

Na chapada tudo é pequeno. Em meio metro de rio os peixes beliscam seus pés e as bolhas dentro d'água duram um segundo. A correnteza espelha trezentos minúsculos sóis. Trezentos milhões. Cor-de-rosa pela manhã, ao meio-dia as mimosas já são brancas. A poeira tem asas e agarra seu cabelo e nenhum branco das suas roupas dura mais do que cinco minutos. Mínimos vales lunares feitos de pedra e areia cabem entre dois passos. Na chapada você tem o tamanho dos seus olhos e da sua irrisória capacidade de assombro. Na chapada aquilo que te assombra é também o milagroso espaço de uma flor. De um inseto. Do animal que é só pegada e vestígio. No dolorido músculo da perna você encontra sua alma, que palpita, que inverte o cerco, que nasce mais uma vez.

 

 

 

 

 

GÊNESE

 

para Sérgio Sansão

 

 

No Quênia, um deus canta e toca tambores. Suas mãos estão sujas de argila enquanto ele molda um vaso. Já não é um vaso, é uma moringa. Já não é uma moringa, é uma escultura.

Já não é uma escultura, é uma mulher. Pensa o deus: moldo uma mulher, depois moldo um homem. A música do Quênia canta em argila de todas as cores o corpo da mulher, branca, e do homem, negro. O deus toca tambores. O homem e a mulher enchem seus pulmões novos com o ar seco. No sétimo dia, em vez de descansar, o deus dança sobre a corda bamba do horizonte, em companhia de suas criaturas, ciente de que por um segundo o mundo é infinitamente bom.

 

 

 

 

MERGULHO

 

 

Quando a rã vislumbrou o lago, esqueceu-se das florestas de pinheiros. Esqueceu-se das ilhas e montanhas. Esqueceu-se da neblina e das flores das cerejeiras. O lago espelhava o mundo e multiplicava o desejo da rã num abismo invisível.

A rã duvidou. É possível saltar? Saberei eu saltar? O que é que eu sou, afinal, diante do lago? E a rã sentiu-se água. Sentiu-se onda e sentiu-se superfície imóvel. Seu mergulho antecipado pensou três círculos concêntricos afagando o lago. E o universo inteiro a estremecer.

A rã esperou na margem pelo convite. E o lago, no escuro, não dormia, guardava sombras. Aguardava o salto? No segredo do gesto, pensaram ambos: talvez a vida. Talvez a morte. Talvez apenas um breve rumor d'água.

 

 

Contos do livro Caligrafias

 

 

(imagem ©ana maria mascarenhas)

 

 
 
Adriana Lisboa nasceu em 1970 no Rio de Janeiro e mora em Teresópolis. Graduou-se em Música e pós-graduou-se em Letras. Publicou os romances Os fios da memória (Rio: Rocco, 1999), Sinfonia em branco (Rio: Rocco, 2001), Um beijo de colombina (Rio: Rocco, 2003), e a coletânea de contos Caligrafias (Rio: Rocco, 2004). Recebeu, por Sinfonia em branco, o Prêmio José Saramago — edição 2003, após ter sido finalista da edição anterior com seu livro de estréia. Um beijo de colombina foi premiado pelo programa de bolsas da Fundação Biblioteca Nacional e finalista do Prêmio Jabuti. Integrou as coletâneas de contos: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, organizada por Luiz Ruffato (Rio: Record, 2004) e Prosas cariocas, organizada por Marcelo Moutinho e Flávio Izhaki (Rio: Casa da Palavra, 2004). Há textos de sua autoria e comentários sobre seus livros nos seguintes sites, entre outros: Dubito ergo sum — Caderno de literatura e espanto, Projeto Releituras, KlickEscritores e Editora Rocco. Mais Adriana em seu site pessoal www.adrianalisboa.com.br.