Porque costumamos fingir que uma garrafa de vinho pode durar uma noite, e que essa ideia é absolutamente impossível, de que a garrafa dure, quando enchemos aquelas taças lascadas na base enquanto um de nós faz a leitura de James Joyce. Quando é você, vejo seu braço esticado, todo erguido no ar, a bebida fazendo uma dancinha, e logo depois ele afunda para respingar o roxo no tapete que não é mais branco, ou que jamais foi. Quando sou eu, faço questão de ler em pé, o vinho repousado na estante atrás de mim. Você ouve como quem ouve canção feita de voos de borboletas, ou mariposas, daquelas cheias de luz e também cheias de pêlos que se fundem nas cores dos veios das asas, que batem nas nossas cabeças quando apenas pensamos em desligar abajures ou assoprar velas que não são de aniversário. Houve um único jantar com as velas, mas caíram todas; estava muito escuro, o breu engoliu comida e cera quente, restou um refogado de legumes pela metade e uma lua que mais parecia sol espetado na antena do prédio da frente. Depois disso, não vieram os beijos, não vieram carinhos, nada. Foi um silêncio bastante úmido — se por causa da chuva? Não sei. Ela respingou como o vinho, batendo na janela, cuspindo no beiral para fazer escorregar o cotovelo mais folgado ou distraído. Aqui, entre nós, essa estante no canto não fica bem, você disse fazendo uma careta em que sua cara toda se transformou numa vírgula. Foi essa cara, esse rosto cheio de cena e sinceridade, que me empurrou para o primeiro beijo. E desse beijo fui atormentado, de repente, por aquela escuridão toda e o que podíamos fazer com ela. Amassá-la como papel, comê-la de colher como o brigadeiro da minha tia, rasgá-la como se rasgam as roupas quando a pressa é maior que a intenção? Difícil lembrar. Porque foi assim, tão real quanto todo aquele sábado molhado e ruço, cujas janelas eram nossos olhos e as portas, os poros por onde deixamos relâmpagos entrar. Porque além disso, costumamos fingir que gostamos de Joyce, quando na verdade preferimos ligar o som e mergulhar nossos braços (um no silêncio macio do outro) enquanto Norah canta, ou Ray toca, ou Axl dá seus inconfundíveis berros. Ninguém melhor para baixar o volume do que nossas pálpebras cheias de sono pesado e ardido. E não é nada com a pimenta dos legumes, o curry do caldo; é o que pulsa, e o que pulsa geralmente tem tempero forte.

 

 

 

 

 

Novamente uma chaga no lugar do coração. E o inverno derramando sua luz pálida sobre os pensamentos mais escuros e quentes. Ainda que sejam quentes, e por serem tão impulsivos, eles fazem congelar a mais sublime e imperceptível lasca de desejo. O que é se reparar diante do impossível? Sonhar um grito, sonhar os dentes triangulares e incrustados de sujeira no bico de um tucano, sonhar o azul crescendo diante do corpo e com isso transformando-o na imensidão que ainda incha dentro? O que é? Desliza cansado, o coração pendente, como uma velha deslizando por sua cadeira de balanço no último sono em que seus olhos não mais abrirão para ver todas as cores e os sorrisos lacrimosos que lhe foram ofertados numa manhã de sexta-feira. O muro que se desprende dos olhos é de mármore, cobre a face já exangue, não deixa se aproximar o inevitável. O beijo tão molhado e suave, morno como um toque de verão depois das sete horas da noite, flutua diante de seus suspiros cuja essência não se pode ver, ou sentir, ou colocar numa caixa sob a cama desfeita. A vida é como ela, essa cama desfeita, com seus pés vergados, seus lençóis amassados, enlaivada de luzes e sombras que se cortam e se afundam em risos e prantos. A vida toda é desfeita; se se preocupa em arrumá-la, rompe-se o que se guarda: mistério insolúvel.

 

 

 

 

 

Há dias as frutas estão na terrina maior, sobre a mesa que estende o caminho curto da janela até os pés da cômoda. Os meus continuam à espera do sol, labareda horizontal que entra sem pedir licença. O estômago já não tem a mesma paciência; como criança, ele grita, chora ao notar a ausência do  leite. Se no meu caso fosse o leite, a criança seria gorda como uma vaca prenhe, porque estão todas soltas no pasto, os coitados dos bezerros do outro lado para não acabarem com a produção de queijo. Deixo a preguiça e pego uma maçã da terrina; as duas bananas já pretejaram; os pêssegos têm mais pêlos do que um couro pouco cabeludo; o kiwi agrisalhou-se — calvo, só faz espaço; as ameixas foram refogadas com o calor, o perfume roxo ainda tinge minhas narinas dilatadas. Mordo a maçã como quem morde um colchão de naftalina e logo vejo a minhoca. Tão branca, verde nas pontas e no dossel onde dorme, a dama vagabunda. Trocamos olhares suspensos no ar, algo entre a culpa e a fúria. Minhocas de maçã são maçã, a despeito da falta de casca fibrosa. O que engoli não tinha vida — tirei a cabeça com os dentes para não ouvir o grito.

 

 

 

 

 

Sobra ansiedade antes da festa, o luzir dos pratos e a paciência de colocar aqueles num lugar e aqueles no outro, perto das janelas. As mesas marchetadas e as toalhas de linho, o que não sobra é comida; se alguém não vem, um prato é repartido: vinte grãos de arroz e uma lasca da fatia de assado a mais para cada convidado. O vento que entra pelas frestas das cortinas é do mesmo material das duas folhas luminosas que deixei corridas; as argolas de madeira estão comidas, há dejeto de cupim para fazer companhia aos convivas mais tradicionais. O que me espanta é a hora, tão tarde da noite, quando a escuridão está acamada, quase isolada de si mesma. As taças de cristal ficam no armário, perto da lareira; vou até lá carregando um vaso cheio de gérberas, abro uma das portas e vejo a taça rodar, fazer um balé na ponta do pé esférico. Minha alma pula, tomba para um lado da corda onde se equilibra com seu humor funâmbulo; o golpe me acerta a nuca, o medo; pego a peça esverdeada sobre as flores, seu túmulo colorido. Nada fica trincado, só o coração.

 

 

 
 

Não é porque o fim está ali, na ruga da esquina, que te quero mais ou melhor. Esse bife de petróleo no lugar do coração bate por causa dos nervos, pulsam como a tábua que o espera para o corte com a faca menos afiada. Lâmina ruim adora um sofrimento, tudo esfolado e lá se vai a lisa perfeição. A alfazema enche as dobras do vidro furadinho, talvez para triturar melhor essa forma de amar que não tem tempero nem sal grosso. Faz meses que não como carne vermelha, e você sendo indefinido, parto para outra e escolho a rúcula que é verde e arde na língua. Pode ir embora, dando sua meia-volta, caindo no meio-fio e encontrando suas metades. Não vai fazer falta porque sempre esteve ausente; já o mar, ele te espera desde sempre, por isso tanto lixo abandonado nas encostas. Vá.

 

 

 

 

 

Coloquei flores na varanda do apartamento, enroscadas no ferro antigo e mastigado pelo sal. O homem que lê lá embaixo espera ouvir o tiro e a sentença em forma de soneto — dois quartetos e dois tercetos. Eu não espero nada porque um dia se cansa da espera, e quando se vê, já existem novos braços mergulhados em novo cheiro; falo da calêndula. Darei ao homem que nos vigia uma razão para fugir, deixar o livro no meio da rua, esmolar outra saudade que não nessa vila de música e goiabada quente. Parto ainda hoje, um pouco depois de perder o aceno da locomotiva.

 

 

(imagem ©vanilia)
 
 
 
 
 
 
Alex Sens (Florianópolis/SC, 1988). É escritor por ofício e prazer, eventualmente revisor e preparador de textos, leitor e cinéfilo contumaz. Eventualmente, colabora com sites de literatura e de jornalismo cultural.