pináculo da tentação
Chorei feito
mulher em despedida. Era despedida, estava claro, aquilo não ia dar mais
em nada.
Queria partir de um amor e pra isso teria que partir da
cidade. Não conhecia ninguém. Sem família, cresci num orfanato, lá pros
lados de Alagoas.
Quando cheguei aqui, trazida pela razão de minha vida,
primeira coisa que me capturou foram essas protuberâncias sem pudor.
Aquele homem de quem precisava me despedir era como essa
cidade, essa Rio de Janeiro quente e úmida; parece mansa, mas te faz
perder as horas, os limites da decência.
Sem o amor do homem, sem destino, sem nem bagagem de
viajante, fui, essa marmanja que você está vendo, bater na porta de um
orfanato.
Ver se me queriam para ajudar nas coisas em troca de
moradia.
Tinha experiência nos castigos, ia saber repetir exato por
exato o que fizeram comigo. Fizeram bem.
— Com essa idade, minha senhora, só te resta um
convento.
Foi quando me converti em mulher de
Jesus.
Na cozinha do convento, lambuzada com creme de ovos, ouvi
um zunzunzun vindo da despensa. Era a Madre Superiora revelando um
segredo à outra irmã.
Estavam à procura de um pedestal naquela cidade para
colocarem uma enorme estátua do Senhor. Diziam que eram ordens do Cardeal
Arcebispo.
Não sabiam qual morro escolher para receber o Nazareno, se
o Corcovado, o Pão de Açúcar ou o Morro de
Santo Antônio.
Foi nisso que me veio a revelação, com as gemas açucaradas
pela borda da boca, senti um troço nas
pernas.
Disse à Madre que poderiam colocar-me no lugar do Senhor.
Poupar a imagem dele e colocar a de uma mulher como eu, que, por não dar
conta de um amor sem retorno, se doou para um amor com retorno, mas sem
carne.
Ela sugeriu-me vinte ave-marias e quarenta
pai-nossos.
Então escrevi uma carta para a Ordem Arquidiocesana
sugerindo meu sacrifício, ficaria ali, sol nascendo sol se pondo até o
fim de meus dias.
Uma crucificação sem madeira nem
pregos.
Disse ainda que, se fosse inconveniente eu ali no lugar do
Nazareno, me contentaria morando numa caverna construída no interior da
obra de pedra.
Já tinha ouvido falar nos cristãos
eremitas.
Queria eu agora isolar-me de vez, abrigada no coração do
Cristo Redentor. Naquela maciça aparência, meu coração bateria ali
dentro, uma mulher no oco de Jesus. Bem no peito dele.
Pintaria de vermelho seu interior, onde eu seria sangue do
seu sangue, poeira de sua poeira, monumento de seu monumento, iluminada
pelos holofotes de Getúlio Vargas.
("Pináculo da Tentação" faz parte do livro Minto
enquanto posso)
(imagens ©tamara de lempicka / topo ©dibuix e
petit)