Epígrafe um

 

"portanto meus irmãos, temos uma obrigação,

que é a de não viver de acordo com a nossa

natureza humana". Romanos, 8.12

 

Epígrafe dois

 

"O homem que quisesse viver em sabedoria e

paz deveria adaptar-se à augusto ordem dos

fenômenos da natureza e viver na natureza com

a natureza".  Lao-Tsé

 

 

 

MORTO PELA SEGURANÇA

 

a hemorragia interna,

que enverniza por dentro,

inferniza por dentro

a palavra estado;

e pela insegurança

de comprar na esquina,

a estas horas da noite,

uma ampola de coramina;

 

 

 

MORTO POR ESPARTA

 

enquanto os negócios prosperam

e a terra enche-se de estranhos;

e por Atenas

a cometer o engano

de cantar tão longe

de seus arsenais;

 

 

 

MORTO PELO OCIDENTE

 

onde pôneis e jatos

só nos tomos da lei

conseguem chegar juntos

ao Banco Mundial;

e, pelo Oriente,

onde os bancos já chegaram;

 

 

 

MORTO PELO MUITO

 

o mais, o mosto,

o gás de uma montanha

de laranjas apodrecidas;

e pelo pouco,

o bago disputado

em soluções no calabouços;

 

 

 

MORTO PELA PAZ

 

um branca de merda

com seus sete canhões

apontando meus laranjais;

e pela guerra que,

para destruir-nos,

não precisa estourar mais;

 

 

 

MORTO PELA TRISTEZA

 

esse modo de as margaridas

me pedirem socorro;

e pela alegria,

tão fora-da-lei:

camponesa na sala

do General-Comandante;

 

 

 

MORTO PELO TEMPORAL

 

ou seja: o "se Deus quiser",

o "volto amanhã",

o "cuide dos meninos";

e pelo eterno,

que não data as cartas,

atravessa ileso as eleições de novembro

e não toma conhaques contra o inverno;

 

 

 

MORTO PELA UNIDADE

 

que reúne

todos os alvos em um céu

e dá precisão ao meu tiro;

e pela multiplicidade,

que me parte em pedaços

fáceis de controlar

pelos deuses descalços;

 

 

 

MORTO PELO ESPÍRITO

 

mero gás que retorna

à garrafa de coca

e procura explodi-la;

e, pela matéria,

tão órfã de síntese

quanto as moças de vinte

depilando seus pelos

nos subúrbios da ordem;

 

 

 

MORTO PELO RACIONAL

 

sob as medalhas dos técnicos

e as migalhas do povo;

e pelo intuitivo,

o imediato

e ingente sentir

não digital;

 

 

 

MORTO PELO SONHO

 

essa floresta afogada

nas folhas caídas;

e pela realidade,

onde os enfermos estouram

os tumores do visitantes;

 

 

 

MORTO PELO NECESSÁRIO

 

a condenação à luz

que enlouquece uma estrela;

e pelo acaso,

o tropeças nos alarmes

e o esmagar as rãs

que circundam o cárcere;

 

 

 

MORTO PELO APÓSTOLO SÃO PAULO

 

a esmurrar-se no banho

para não masturbar-se;

e por Zorba, cuja dança adensava

a quantidade de sangue

nas extremidades dos servos;

 

 

 

MORTO PELO MAL

 

algo parecido

com carne liberada

ou Santa Tereza anunciando

maiôs Poésie na TV;

e, pelo bem,

algo mais metafísico,

mais Jesus de prata

escondido na blusa.

 

 

 

MORTO PELO LAR

 

que desaba todo dia

sem ninguém escutar;

e pelo bar,

onde o heroísmo se condensa

num laudo rotineiro

da polícia, ao passar;

 

 

 

MORTO PELA FÊMEA

 

que me pede um jantar

e uma boa lembrança

e talvez peça muito;

e, pela outra

que me pede a eternidade

e talvez peça nada;

 

 

 

MORTO PELA HONRA

 

quando as fezes dos pobres

ameaçam o fulgor

do brasão tumular;

e pela desonra

dos que mudam tarde,

quando os linchadores

ávidos não sabem

por onde começar;

 

 

 

MORTO PELA SOBRIEDADE

 

este assistir a seco

à própria extinção;

e pela embriaguez,

este banhar-se à noite

em doce ureia

ou receber sob o lençol

o coice de medeia;

 

 

 

MORTO PELA FALA

 

escada que sai da boca

e deixa subir os demônios;

e pelo silêncio,

inseticida queimando

no fundo do quarto

para afastar um remorso;

 

 

 

MORTO PELA NORMA

 

abutre que aqueço

à temperatura do corpo;

e pelo instinto,

bomba de efeito retardado

sob o monte antigo

de brinquedos de barro;

 

 

 

MORTO PELA VIRTUDE

 

essa tanga de velha

e desgastada platina;

e pelo pecado,

a notícia da única

e inexplicável

humildade de Deus;

 

 

 

MORTO PELO ÉTICO

 

mais Ártico pelos ursos

mais Antárticos

e pelo estético dos cursos

majestáticos;

 

MORTO PELOS MORTOS.

 

 

 

[imagem ©atomicjeep]

 

 

 

 

Alberto da Cunha MeloJosé Alberto Tavares da Cunha Melo — (Jaboatão/PE, 1942 - Olinda/PE, 2007). Pertence à Geração 65 de poetas pernambucanos. Como sociólogo, atuou durante onze anos na Fundação Joaquim Nabuco. Jornalista, foi editor do Commercio Cultural do Jornal do Commercio, e da revista Pasárgada. Escreveu a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural. Sua poesia não se rendeu ao charme das vanguardas e encontrou no metro octossilábico, o mais raro em Língua Portuguesa, a melhor melodia para o seu canto fraterno, e "sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia cujo nome secreto é — resistência". [Alfredo Bosi, no prefácio do livro Yacala].
 
Publicou, entre outros: Círculo Cósmico (1966), Oração pelo Poema (1967), Publicação do Corpo — in Quíntuplo (1964), Dez Poemas Políticos (1979), Noticiário (1979), Poemas à Mão Livre (1981), Soma dos Sumos (1983), Poemas Anteriores (1989), Clau (1992), Carne de Terceira com Poemas à Mão Livre (1996), Yacala (1999), Meditação sob os Lajedos — 4º lugar do primeiro Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira Edição 2003 (2002), O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos — Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras 2007 (2006). É considerado um dOs Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, seleção de José Nêumanne Pinto. São Paulo: Geração Editorial, 2001. Mais aqui.
 
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