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educação do olhar

 

 

Viajar de carro é mais cinema que literatura. Ele aprecia road movies, mas escolheu bater pernas, bater teclas pela cidade. Viagem de trem é poesia.

 

 

 

 

 

até que a morte os separe

 

 

A indiferença da mulher corta mais que navalha na carne. Navalha é objeto concreto; em meio ao sangue permite que se meça, com exatidão, a extensão e a profundidade do corte, que se compreenda a dor provocada ali. Indiferença é mistério. De onde veio? A partir de quando se instalou? Que força a move e faz com que se expanda a cada dia? Cansado de tentar a reaproximação, em seus piores momentos vê-se a eviscerar a esposa. Nos melhores, ele a imita e ambos transmitem razoável dose de felicidade em público.

 

 

 

 

 

ali onde eu chorei

 

 

Sua tristeza não supera o olhar de um cãozinho abandonado.

 

 

 

 

 

uma linda mulher

 

 

Eis os sonhos de Vanessa: casar com um homem bom, de respeito; ter cinco filhos com ele, "enfileiradinhos, um atrás do outro"; dar estudo aos meninos "para que não passem aperto na vida"; morar em uma casinha branca, "bem bonitinha", com as portas e as janelas pintadas de verde; plantar milho e feijão com o pai na roça; morrer velhinha, com todos os filhos criados, "cheios de saúde".

 

Valdirene é seu nome de batismo. Tem 19 anos. É prostituta de rua no bairro Santa Amélia, em Belo Horizonte.

 

 

 

 

 

sem palavras

 

 

Disse que me amava e amaria para sempre. Um dia, brigou e desapareceu. Quando meus cabelos começavam a ficar grisalhos, recebi uma carta sua: tivera uma filha e colocara nela o meu nome, apenas trocando a letra final, Antônia. O marido não sabia de mim, mas, para evitar suspeita, o convencera de que a escolha do nome se devia à sua devoção por Santo Antônio. Não respondi. Chegou outra carta: nascera o segundo filho a quem dera o nome de José, "para completar a homenagem a você, Zé Antônio, meu amor". Não respondi. A carta mais recente informa que se separara do pai dos seus filhos e que, dentro de um mês, quando se encerrar o ano letivo, "voltarei para a nossa cidade, querido". Minha mulher quer saber por que ando tão nervoso. Não respondi.

 

 

 

 

 

 

 

O branquinho vai descer do ônibus para ir à favela comprar drogas e revendê-las no bairro onde mora. O motorista aconselha:

 

— Sai dessa, você muito novo, tem tanta coisa melhor pra fazer; vai estudar, vai rezar, vai trabalhar e ajudar sua mãe, menino!

 

— Larga do meu pé, Deus sabe o que faz.

 

 

 

 

 

o céu que nos protege

 

 

Toda imagem, toda brisa, todo sonho, toda paisagem cobram um preço: o tempo, rio que passa. Tempo é memória, barco que voa e afunda.

 

 

 

 

 

é isso

 

 

Uma cidade feia, desigual, embrutecida. Queimando-se no fogo desse inferno, alguns homens fotografam insetos, flores, pássaros e comunicam a todos que a poesia insiste.

 

 

 

 

 

a pior de todas as notícias

 

 

Estranho animal a ditadura: homens sem asas, pássaros sem pés.

 

 

 

 

 

momentos

 

 

Certa vez, anotei: "Vivamente interessados em dialogar, bem-te-vis nos chamam e respondem a assobios, mesmo os desafinados ou fora do tom. Porém, sendo precária nossa capacidade de compreender sua linguagem, a conversa brilha, mas não se aprofunda, não traz à luz do sol novos temas, não vai adiante. O que se ouve ali é a bonita canção de todos os dias: Fiutevi! Fiufiutevi!".

 

Ontem à tarde, um bem-te-vi pousou em um galho de árvore no quintal. Trazia preso ao bico um beija-flor e apertou seu pescoço até que ele parasse de se debater. Soltou-o, então. O chão, surpreso como eu, aparou-o, seu derradeiro ninho.

 

Nesta manhã, voltaram a me convidar, os mal-te-vis. Recusei. Nunca mais vão me ouvir assobiar.

 

 

 

 

 

voar é com os pássaros

 

 

— Pássaros são ressabiados, pouco amigáveis.

 

—Têm motivos: mesmo ariscos correm o risco de ser mortos. Pior: engaiolados.

 

— Prisão é pior do que morte?

 

— É da natureza do pássaro ser livre. A morte é uma espécie de liberdade.

 

 

 

 

 

poética

 

 

Imerso em teus braços, em teu verso, exerço o que queres que eu faça: faço.

 

 

[Do livro Manhãs com pássaros — exercícios de síntese, 2015]

 

 

[imagens ©laura makabresku]

 

 

Paulo Vilara nasceu em Caxambu, Sul de Minas Gerais, e vive há décadas em Belo Horizonte. Dirigiu os documentários Carlos Chagas. O passado presente (1981), Dona Izabel — a magia da criação (1985), Cataguases — um olhar na modernidade brasileira (1988), Guignard – a educação do olhar (1996), Mil sons geniais — diversidade musical em Belo Horizonte (2004) [os dois últimos podem ser vistos no YouTube]. Publicou os livros Congresso Internacional da Bicharada (1996), Palavras Musicais — entrevistas com os compositores Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes e Chico Amaral (2006), Jazz! Interpretações — pequenas histórias de fúria, dor e alegria (2011), Manhãs com pássaros — exercícios de síntese (2015), América — contra tudo e contra todos (2021). Tem alguns originais na gaveta.