A publicação de um livro tende a ser intensa em emoções, à felicidade de vê-lo impresso se interpõe a expectativa ante sua recepção, quanto mais se se trata do primeiro. Com Do inferno aos céus (Caravana, 2024), a poeta Smirna Maciel, atriz e professora de artes em João Pessoa, ingressa no que Antonio Candido chamou de sistema literário.
O título, ao sugerir uma trajetória, não implica necessariamente em trilha acabada, pois ela mesma, a vida, é cheia de marchas, contramarchas. Pela voz poética, perpassam as vicissitudes pessoais e do mundo, sem aquela limitação de um eu voltado exclusivamente a si mesmo, como talvez se pudesse abstrair do subtítulo "caminhos em mim", o que não deixa de ser boa surpresa.
O livro está dividido em quatro partes.
A primeira, "Palavra na sombra", alcança temas como o do homem que dorme na calçada: "aquele pouco/ de carne ainda esparramado estava em harmonia fina, em sintonia xepa, com as cascas de laranja e a água preta/ da fossa que transbordou" ("Sonora"). Revela, também, interessante conjunto de aliterações em /t/, num poema com palavras por si mesmas similares: terço, terçã, trecho, texto, terço, treco ("Febre de Alexandre"). E em /c/, igualmente com símiles: concreto, correto ("Corrosivo").
Na segunda parte, "Poesia armada", ressurge um tipo de verso bastante longo, próximo da prosa, característico de Smirna, acima exemplificado em "Sonora". Mas, aqui, com uma disposição mais espacializada, através do uso da linha em branco, presente em "Meninos amarelos" e "Poema da mulher terra": "Eu vou fechar os ouvidos para qualquer música que tocar, vou sair chutando as pedras, vou jantar mato e espinho". Ambos os poemas tratando dos humilhados e ofendidos.
As dificuldades, por drásticas que sejam, não impedem a voz poética de viver e exercer um olhar crítico sobre o mundo, ou seja, de, a seu modo, lutar: "Não dormirei sem dizer nada./ Tudo turbilhão dentro de mim./ Boca vermelha e os olhos de cílios molhados". Para, mais adiante, concluir: "Eu estou viva. É por isso a vertigem, a sensação de morte./ Eu estou viva". Afirma ser "mulher e bela e não bela porque mulher", e contesta certa imprecação: "Dizem-me doente esses infectados./ Essa gente sem gente dentro./ Mergulhada em margarina", gente que seria "Isenta da morte./ Privada de vida" ("Digo").
Mesmo a solidariedade é criativamente autocrítica, tanto para quem escreve como para quem lê: "Cheiro de lixo podre afeta o estômago/ Com um olho inerte o velho mexe nos sacos e acha uma manga batida/ Estupidamente eu digo: bom dia". E igualmente crítica aos que se acham superiores ou querem lucrar com isso: "De que matéria são feitos? Eu não aceito./ Da mesma matéria que eu?" ("Apocalipse sem fim").
Na terceira parte, "Palavra que ri", a voz poética diz-desdiz, "Não tenho tempo para poesia, nem para nada inexato" ("Humana mecânica"), e faz recordar poema de Marianne Moore, o que independe de qualquer intertextualidade, chamado "Poesia", "Também não gosto muito disso", menos irônico ao final (de sua versão mais curta), quando enaltece o "genuíno".
Em "Texto que se escreve atrás de boletim de matemática", o referido verso longo se transforma totalmente em prosa poética, na qual cada palavra "sim, é infinita e gira infinitamente grande em torno e dentro da consciência". Já em "Frio de consultório", o tema da voz A, "Sou médica e vejo os pontos/ Deixe de besteira/ Eu nem vejo você/ Só vejo os pontos", tem um contraponto na breve aparição da voz B: "Esse é o ponto". O humor transparece também na glicose de "Doce poema do eu" e nos afazeres de "A fazer".
Na última parte, "Poesia metafísica", que interpretamos como "filosófica", a dor e a tristeza, a paz e a guerra "dizem que o céu hoje vai chorar", mas acabam em outro tipo de desaguadouro: "A chuva cai leve e macia,/ enxurrada de beleza" ("Então"). Poema que é seguido de outro em diálogo temático ("Chuva").
Compreender a "unidade secreta" da palavra é chave: "Sua matéria não provoca ruído e seu silêncio toca minha carne e me corta com um talho fundo" ("A primeira palavra"). O tema ganha outras conotações: "partem palavras das tuas mãos e do teu sexo/ partes de mim/ parto pra ti/ portas sem fim ("Porta"). E, adiante, entrelaça-se em novo diapasão: "Dentro dos meus olhos/ Todas as minhas tristezas/ Teus contornos de homem/ Tuas ideias de ferro" ("Homem").
Presente em poemas das tabuinhas de barro dos sumérios, datados em mais de 4 mil anos, o tema do amor ressurge urbanizado e amplo, numa espécie de Aleph, ponto único que concentra o todo: "E da janela de um ônibus e sua maçaneta preta, o universo se abre bem no ponto onde estou./ De amor, de amor/ Somente de amor viverei". Então, tal voz pode concluir: "Transbordo e atravesso, sem medo de morrer" ("Aos escafandristas").
Escrito na infância, o poema que encerra o livro, "Não sei o que fazer,/ se sorrir, se chorar, se sofrer, se viver", busca um "guia" para lhe mostrar o caminho ("Aos dez anos"). Guia que se edificou, e continuará a se edificar, dentro da própria poeta, aquele guia interno construído de vivências, leituras, lutas e escritos.
Assim, com este livro inaugural, Smirna Maciel abre as portas dos infinitos caminhos da poesia, esta linguagem concentrada, de tamanha síntese que, paradoxalmente, possibilita múltiplas leituras, objeto de beleza que é uma alegria para sempre.
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O livro: Smirna Maciel. Do inferno aos céus.
Ouro Preto: Caravana, 2024. 45 págs., R$ 70,00
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setembro, 2025
Sidnei Schneider. Poeta, ficcionista e tradutor em Porto Alegre. Publicou os livros Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos/José Martí (SBS, 1997) e Poemas 1987-1992 (Artesanal, 1992). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), O melhor da festa 1 e 2 (FestiPoa Literária, Porto Alegre, 2008 e 2009), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011), Poesia Gaúcha Contemporânea (Assembleia Legislativa/RS, 2013) e outras antologias. Publicou o livreto De rua e sangas (Maisumascoisas, 2018).1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995; 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003; Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.
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