Um livro começa do zero, e o zero é bom. A epígrafe do livro leva o título: zero. Hay que saber que tantas veces las piezas que faltan,/ no te preocupes,/ una, dos, tres, cuatro,/ nunca se agotan, duran. Mesmo que um livro comece a se dizer por outras línguas. O paraíso é baixo e alto, conforme a harmonia e as curvas e as supostas reentrâncias das coisas e das pessoas que sonham no constante das orquídeas. A escritora, jornalista e atriz brasiliense, Isabella de Andrade lançou recentemente Baixo paraíso, pela editora Diadorim. O livro fala de amor, morte e transtornos alimentares no Cerrado brasileiro. O livro mostra as consequências da pressão estética na vida das mulheres e tem como protagonista uma mulher gorda, lésbica e com tendências assassinas, que tenta entender melhor a relação com o próprio corpo.

A trama se passa no interior de Goiás. Em tempos de retorno ao culto à magreza e crescimento na compra de remédios para emagrecer, a obra aborda questões capciosas para meninas e mulheres, e também meninos e homens, em diferentes idades, como o vício em medicamentos inibidores de apetite. Baixo paraíso, título do livro, é também o nome de uma cidade localizada na região do centro-oeste do país, com ruas empoeiradas e trilhas distantes do mar. A pulsão de morte da protagonista marca também uma vontade intensa de mudar o próprio mundo. Marília devora tudo o que pode na busca de preencher um espaço interno inalcançável.

 

 

A cidade

 

 

Baixo Paraíso é mais um entre tantos paraísos tortos e perdidos pelo interior do mundo. É nessa cidade, seca, poeirenta e rodeada por cachoeiras que atraem turistas de mochila e sandálias de couro, que Marília e Gabriela se encontram. As duas crescem juntas, entre cavalos, sorvetes, asfaltos esburacados e um tanto de comida, de alimento. Em plena adolescência, Marília se empanturra para disfarçar o desejo de engolir o mundo e ter Gabriela, esse corpo magro e bonito que, apenas a sós, parece corresponder. Para reduzir a fome e tentar diminuir o próprio corpo, Marília começa a tomar remédios tarja preta receitados pelo padrasto de Gabriela a um preço inconfessável.

Enquanto o mundo de fora aplaude suas transformações, Marília não consegue mais se entender dentro de seu próprio corpo. Mas é com esse corpo que ela se envolve numa história de amor pautada pela crueldade das intermitências, dos segredos e dos impiedosos ponteiros da balança. Alguns paraísos são maiores que outros. Cabe ao leitor discernir entre um, e outro. Mais não digo, para não estragar a delícia dos possíveis leitores do livro de Isabella, que podem ser muitos.

 

 

As vertigens do amor

 

 

Um ritmo contínuo, uma linha de raciocínio luminoso e sombrio, fácil e difícil, triste e luminoso. Uma orquestra de flautas que tentam e tentam decifrar um coração enorme que vive numa cidade pequena, que transita e capota num mundo pequeno e perigoso, apesar de vasto e propício para as boas almas. Baixo Paraíso é uma cidade que pode ser a nossa. Só as boas ficções levitam, contudo, e permanecem para o bem da gramática dos sonhos.

Isabella trata a própria língua com um esmero daqueles que gostam do que fazem. É larga a literatura de Isabella e ela se espraia. E a moça não deixa por menos. A literatura de Isabella não busca compreensões, mas continuações, de um amor, de um lugar que tende para o menos. Tudo para a continuidade das palavras ditas. Isabella diz ao descobrir do oco que existe em todas as cidades, em todos os corações sensíveis.

Ela recria o vazio através das palavras. Quantas cidades, quantas pessoas, quantos quitutes existem dentro de nós? Palavras podem ser como doces de leite. Palavras podem ser lâminas. Não é possível entender uma tecla de piano, as contradições de tudo e de todos. Mas é possível ler um livro.

 

 

Observar para dizer

 

 

Isabella possui um raro poder de observação, ela nos mostra que é muito capaz de dizer das minúcias de um cotidiano de uma protagonista mais que forte e linda, Marília, como também percebe a importância do amor, do afeto. Baixo paraíso é um romance sobre o desejo, sobre os desejos. Isabella fala sobre Marília, que nasceu, cresceu, e acabou descobrindo que é gorda. E isso para ela, para tantos e tantas, é uma merda.

Isabella tem um amplo domínio da narrativa sobre essas lacunas. O tempo é feito de perdições, disso sabe Isabella. Por causa do desejo, por causa do amor, por causa das porradas da vida. O amor, que pode ser que meio que um vestido vermelho que as moças adquirem para atrair a própria atenção. O amor, que se fez e não se faz de bobo, que se torna maleável para não se perder durante as travessias.

Com açúcar e com afeto — e com espantos — Isabella inventa receitas de liames, entre cavalos e meninas, entre meninas e meninas, entre avós e netas; entre leitor e a própria escritora. Numa das passagens mais lindas do livro Isabella conta, relata, fabula a morte da avó de Marina, através de uma poética, de uma poesia cortante e verdadeira. Num outro momento ela deixa o leitor atônito, quando duas meninas se encontram no escuro. Isabella mescla, liquidifica breus e luminosidades de uma forma invejável.

O amar elimina as vírgulas, quando Isabella, em certos momentos, segue um fluxo na sua escrita que suspende o tempo e o fôlego. Num jogo de sombras e sóis, o erótico também se faz vivo e parte do carrossel, do arsenal literário de Isabella. Mas a escritora lida e escreve com maestria sobre o sensual que escorre dos corpos dos personagens. É muito ampla a curvatura dos espações literários de Isabella.

 

 

Encaixes

 

 

Assim como o impróprio amor (o amar é sempre impróprio?), a imaginação pode ser uma espécie de refúgio. Isabella, com Baixo paraíso, não deixa de permear sua dicção com poesia. A escritora não foge dos espinhos, das sombras. Ela nos diz, de forma simples e luminosa: "Os corpos custam a encontrar o espaço certo para se encaixar".

A literatura é quando conseguimos encurtar a própria voz através das tonalidades de um outro, quando tudo parecer ser mais bonito, e tudo torna-se amplo. Isabella fala também e tão bem tanto da memória, que ela ser torna quase palpável: "A memória é sempre uma espécie de filtro para transformar tudo em cinema. É fácil lembrar da parte boa. Os pedaços mais difíceis a gente insiste em recortar" "Quando se trata de forçar o esquecimento o tempo pode dar conta dos dias, dos meses, dos anos, mas ele não dá conta das horas" Amor? "Amor é sede que se acumula na língua". Não é difícil recortar frases, pensamentos curtos do livro que são pura poesia. Mas o livro não se resume a isso.

 

 

Amplo ar

 

 

A literatura de Isabella transita em diferentes espaços de uma mesma cidade, que também é personagem e pulsa nos acontecimentos de tudo. Isabella articula e tece e destece probabilidades num jogo de vertigens e, antes de tudo, acata os ditames, a dinâmica do tempo, da vida incontrolável. Isabella nos coloca no mesmo turbilhão da protagonista e esse carrossel é rico de abismos, de delícias confessáveis e inconfessáveis. A escrita, a literatura de Isabella é cirúrgica, eficaz. Ela adentra as sutilezas das delícias.

 

 

Na medida certa

 

 

Baixo paraíso tem capítulos curtos, asfixiantes, como rounds de uma luta de boxe. Cada capítulo do livro vem carregado de assombros. Isabella domina a narrativa de forma exemplar. Nada falta, nada sobra. E a cada término de cada parte cabe um nocaute estranho. O amor é algo mais que lindo, mas, contudo, doloroso. Marília diz de Gabriela, seu primeiro amor: "Gabriela se alastrava cada vez mais em cada pedaço do cotidiano. Costurando um fio que eu nunca soube arrematar".

Marília tinha um desespero de não ser ninguém.

Mas o amor também pode ser isso, um gostar de mangas, de coisas simples. O amor vem e vai embora aos poucos. Baixo paraíso é um livro denso, que nos permite e aponta várias camadas de interpretações, fato que o torna tão especial. Todo bom livro guarda armadilhas. Todo bom livro é perigoso. A vida é simples, e é feita de tessituras perigosíssimas. A felicidade pode ser assim: "E Gabriela manteve uns passinhos lentos para ter mais tempo de ir ao lado, me pegando nas mãos lambuzadas e enlaçando os dedos de um jeito duro".

 

 

Sobre Isabella de Andrade

 

 

Escritora, jornalista e atriz, publicou dois livros pela editora Patuá, Verocidade e Pelos olhos de ver o mar. Em 2023, a autora lançou três projetos literários, além de Baixo paraíso, Isabella idealizou e organizou uma coletânea de contos com autoras de diversas regiões do país e lançou uma nova temporada, agora em vídeo, do podcast "Elas na escrita", projeto criativo para incentivar e dar mais visibilidade à literatura feita por mulheres. O tema dos contos foi "Imagens de coragem", uma referência à Pagu (Patricia Rehder Galvão) homenageada da FLIP 2023, que inspira a coragem na escrita. A coletânea reúne autoras consagradas, convidadas pelas organizadoras, e também iniciantes, selecionadas em uma chamada aberta.

 

 

Trecho

 

 

Senti que minha vida mudava quando segurei pela terceira vez, agora sem furtar gavetas, a caixa rodeada pela tarja preta. A promessa de um corpo que coubesse, enfim, em todos os espaços. Aos quinze anos caber em tudo era a única alternativa possível. Aprendi que a gente come muito quando quer escapar do mundo engolindo o mundo todo pra dentro da gente. Eu sempre gostei de me empanturrar.

 

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O livro: Isabella de Andrade. Baixo paraíso.

Porto Alegre: Diadorim, 2023, 228 págs.

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novembro, 2024

 

 

 

André di Bernardi Batista Mendes nasceu em Belo Horizonte. Poeta e jornalista, publicou A hora extrema (1994, obra vencedora do Prêmio Álvares de Azevedo, da Academia Mineira de Letras), Água cor (1997), Longes pertos e algumas árvores (2002), É quase noite no coração daquelas águas (2009), O ar necessário (2014), O lado minguante (2022) e o infantojuvenil Esse bicho sou eu (2015). Participou das antologias Amar, verbo atemporal — 100 poemas de amor (2013) e Pelada Poética (2014). Tem poemas e resenhas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais e nas revistas eletrônicas Tantas-Folhas, Sibila, Germina e Caliban, de Portugal.

 

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