A tarde pálida, minha mãe pálida, lembro-me. O homem de roupa cáqui e boné cáqui entregou um envelope à minha mãe. As mãos de minha mãe tremiam, tremiam e tremiam. A tarde relampeava nos seus olhos de tanto medo, embora fosse uma tarde limpa. Jamais esqueço essa tarde, que quarava na minha infância. Não há de ser nada, minha senhora, disse o homem de roupa cáqui e boné cáqui. Esporei meu cavalo de pau ligeiramente e voamos para baixo do pé de juazeiro, que ficava há uns cem metros de minha casa, enquanto o homem de roupa cáqui e boné cáqui ia embora pedalando sua bicicleta por dentro do canto do bem-te-vi.
O sol começou a cair que nem uma tangerina madura. Era a hora do sol lavar seu rosto amarelo no açude, toda tarde ele fazia isso. Será que minha mãe abriu o envelope que o homem de roupa cáqui e boné cáqui lhe entregou? Meu cavalo de pau descansava sobre uma pedra. Juntei uns dez joás maduros e, em torno deles, construí um curral, deixei-os presos. Nem o homem de roupa cáqui e boné cáqui e o envelope entregue à minha mãe saíam de minha mente. O sol ainda tomava banho no açude, mas já queria ir embora. Os joás continuavam imóveis dentro do curral. Eu queria que eles mugissem que nem bois ou berrassem que nem bezerros. Inútil. E a tarde mais inútil ainda, desmantelada, depois que o homem de roupa cáqui e boné cáqui partiu pedalando as dúvidas do meu coração. Não lembro a cor da bicicleta, não lembro a cor da bicicleta.
E o envelope? E o bem-te-vi? E o homem de roupa cáqui e boné cáqui? Todos embaralhavam a minha mente. E as mãos trêmulas de minha mãe? E a partida de meu pai há anos atrás para São Paulo, deixando um beijo tatuado em minha face? E as mãos trêmulas de minha mãe? E a voz calma do homem de roupa cáqui e boné cáqui dizendo não há de ser nada, minha senhora. Eu ia comer os bois e os bezerros, digo, os joás, desisti; espatifei-os com os pés, com minha inconformação, inclusive o curral. Chutei o rabo do meu cavalo de pau, depois o apanhei e o coloquei entre as pernas. O sol já tinha vestido sua camisa escura e partira do açude. Eu também parti para casa, com meu coração mais confuso do que as mãos trêmulas de minha mãe quando recebeu o envelope do homem de roupa cáqui e boné cáqui. Não lembro a cor da bicicleta, não lembro a cor da bicicleta.
Na porta de casa desmontei do meu cavalo de pau e o joguei de lado. Acho que ele gemeu. Um choro triste vinha de encontro aos meus ouvidos. Tirei o ferrolho da parte de baixo da porta da casa, e o choro partindo meus ouvidos. Lembro-me que o envelope que minha mãe recebera do homem de roupa cáqui e boné cáqui não estava mais em cima da mesa da sala, que ela botara logo que recebera, sem coragem de abri-lo. Minha mãe abraçou-me. Uma lágrima leve do rosto dela caiu sobre a minha face. Estava decifrada a morte de meu pai, o envelope, homem de roupa cáqui e boné cáqui.
[Do livro de contos Itinerário do desamor. Manufatura, 1999]
novembro, 2024
Chico Lino Filho é natural de Coremas, alto sertão da Paraíba, onde nasceu em 15 de junho de 1959, mas radicado em João Pessoa desde 1975. Publicou Paixão movediça, Abajur de Lua, Poemas de amor e silêncio, Inverno invisível (de poesia) e Itinerário do desamor (contos). Alguns dos seus poemas já foram musicados por compositores paraibanos, entre eles Adeildo Vieira, Artur Silva e Dario Júnior. O poeta, que em 2000 recebeu o título de cidadão pessoense, já teve poemas seus publicadas na revista da Biblioteca Nacional, Correio das Artes e em várias antologias poéticas.
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