Objetam alguns, sobretudo as lançadas por mentes estreitas, que filosofia e literatura são âmbitos inconciliáveis do pensamento humano. Tal afirmativa tende talvez a considerar que o rigor filosófico e a vocação para questões de ordem epistêmica (entendida como opinião dos cientistas/especialistas) ou lógica da filosofia, não se coadunaria com a abertura para o poético e a criação descompromissada com a esfera da verdade que a literatura impõe.

O escritor Matheus Arcaro que também é mestre em Filosofia, e atuante professor e palestrante nessa seara, vem felizmente, a cada novo livro que escreve, engendrando a aproximação das fronteiras entre o filosófico e o literário. Une, para proveito imenso do leitor, linhas comuns dessas vertentes do pensamento em diálogo produtivo no qual, filosofia e literatura convergem como modos de criação, reflexão e visões de mundo. Acrescento ainda, que dos seis livros que o autor publicou até aqui, li e escrevi sobre quatro deles. Já em Amortalha, que é obra de 2017, identificamos no autor tal interligação, ou melhor, conexão, visto que Arcaro consegue em excelente medida (sem proselitismos ou dogmas filosóficos, mas sim em linguagem franca, direta, acessível e eivada de sentimento humano), retratar, à sua maneira cativante, as vicissitudes humanas.

Assim, no horizonte dos textos, nos deparamos com o mesmo homem atravessado pela incompletude, pelo desejo de ser, pelo medo elementar da morte, pela falta ou pela busca de sentido do existir, pelo amor mola mestra da vida, ou pela solidão de um tempo no qual a metáfora da caverna de Platão se transmutou em imagens de tela de celular e boa parte da humanidade anda acreditando que ali residem verdades. Filosofia & literatura partilham deste mesmo para-si e buscam, cada uma por seu estilo próprio de significação, comunicar o drama da existência, detalhar o máximo possível a experiência do Ser no mundo. Mais adiante acrescentei então, que sua "atividade literária força a linguagem a advir outra, força-a a flertar com o indizível — as palavras não dão conta das acontecências mais profundas. Ou seja, trata-se de uma inspiração recebida da atividade literária, dos processos de criação e da poética artística. Reconhece na literatura um verdadeiro operador transcendental do e no pensamento, que o leva a pensar pelo encontro com o fora. E é assim que o lemos num perspectivismo cujos ângulos se lançam prazerosamente também a partir das relações da escrita filosófica com a escrita literária".

Muito bem; escrevi isto já lá se vão seis anos, e encontro novamente Arcaro em seu mais recente livro de contos A origem do mundo, que não só reforça tudo o escrito antes, como para nossa satisfação, atesta o visível amadurecimento de seu fazer literário, a nos brindar com textos de qualidade irrefutável. A obra reúne 17 narrativas curtas que, como escreveu Micheliny Verunschk nas orelhas da obra, "gravitam em torno do feminino, desde sua experiencia e percepção próprias da vida até as violências que sofre por ser essa pedra de escândalo desde Eva". Enfoques do feminino que Maria Fernanda Elias Magno muito acertadamente (em texto de quarta capa), afirma que cada uma de suas personagens, "poderia, sozinha, ter gestado e parido o universo inteiro". Tal a profundidade com que o autor as retrata. Resta-nos acrescentar ainda um último aspecto — muito raro em livros de contos, dada a diversidade e multiplicidade de situações que o gênero impõe —, o bom nível de inventiva aliada à técnica que o autor consegue manter ao longo da obra. As primeiras narrativas que prendem e cativam o leitor são excepcionais. Textos como "Sara", "Tarsila", "Ana ou Macabéa" e sobretudo "Eulália", os primeiros do volume, podem ser catalogados na categoria de memoráveis. Mais adiante o leitor encontra narrativas como "Mariana", "Deus", e "Maria Júlia" que o impulsiona com o gosto de "quero mais", até o término do volume onde encontra a narrativa derradeira: "Liriel". Com efeito e sem mais delongas e estímulos, senão um último e necessário. Leiam a obra!  Vão encontrar belo exemplo de literatura de alto nível tecida por um autor que, de livro para livro, vem reafirmando seu espaço e sua voz na Literatura brasileira contemporânea.

 

 

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O livro: Matheus Arcaro. A origem do mundo. Ilustração Leda Braga.

São Paulo: Patuá, 2023, 132 págs., R$ 45,00

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agosto, 2023

 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos tem publicados os livros: Il crime dei caminho novo – Romance Histórico; Gato de telhado – Contos; Um novo século – Contos; Embriagado intelecto e outros contos; Doze contos & meio poema e À flor da pele – Contos.  Participou de 30 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance publicado pela editora portuguesa Chiado — O touro do rebanho — Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.

 

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