[Claudio Willer, em 2013, reprodução Facebook]

 

 
 
 
 

Em 3 de julho de 2014, o poeta, ensaísta e tradutor Claudio Willer lançou em São Paulo o livro Os rebeldes — geração beat e anarquismo místico (Editora LP&M).

 

A fila de autógrafos, que começou a se formar pelo menos uma hora antes do lançamento, previsto para às 20h, dobrou a esquina da Livraria Martins Fontes, na Avenida Paulista, um movimento raro, num país de poucos leitores, que impressionou quem estava no evento e viu o fenômeno que só um autor considerado uma celebridade paulistana, desde os anos 1960, seria capaz de provocar.

 

Naquela noite, o videomaker Pipol — que já não está entre nós — registrou para o canal TV Cronópios, dedicado à literatura no YouTube, o lançamento do livro e a reação dos leitores entusiasmados pelo autor que declarou: "No Brasil, acho que se formou um público para a literatura beat, um público que ajudei a formar".

 

A declaração espelhava o público que se misturava na livraria: pessoas jovens e maduras, algumas da mesma geração de Willer, que protagonizaram um dos lançamentos mais animados de que se teve notícia naquele ano.

 

Confira o vídeo do lançamento de Os rebeldes — geração beat e anarquismo místico (Editora LP&M).

 

 

 

 

Claudio Willer faleceu aos 82 anos, em 13 de janeiro de 2023, uma data que, se estivesse vivo, ele talvez celebrasse como um recurso literário, já que sua obra está repleta de ponderações místicas e mágicas, na fronteira da percepção extrassensorial e do inconsciente projetado no surrealismo, outra vertente que ele explorou até o limite, trazendo aos leitores brasileiros, em traduções, o maravilhamento das obras de Lautréamont, André Breton e Antonin Artaud, entre outros, além da própria poesia e leitura do mundo que mistura vida e arte.

 

Inspirado no surrealismo, o mestre, como era chamado até por seus ex-alunos, instigava a produção artística e literária conceituando a escrita automática, o acaso objetivo, a linguagem dos sonhos, a paixão pelo cinema e tudo o que movimenta a criação a partir das imagens que também inundam sua poesia.

 

Autor de mais de uma dezena de livros de poesia e prosa, ele se definia pelo viés da literatura rebelde e unia as pontas do surrealismo com as batidas da literatura beat, consagrando-se como um dos principais tradutores dos lendários norte-americanos Allen Ginsberg e Jack Kerouac no Brasil.

 

De Ginsberg ele traduziu Uivo, Kadish e outros poemas (LP&M, 1984) — com seleção de textos e notas, que teve várias reedições — assim como o Livro de Haicais, de Jack Kerouac (LP&M, 2013). Os dois autores também estavam em dezenas de ensaios, palestras e oficinas literárias que levaram o mestre a aulas e apresentações nas principais universidades do país durante décadas.

 

Doutor em Letras, pela FFLCH-USP, com a tese "Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna" (publicada em livro pela Civilização Brasileira, em 2010), ele completou o pós-doutorado em 2011, também em Letras na USP, com ensaios sobre o tema "Religiões estranhas, misticismo e poesia". Presidiu por vários a União Brasileira de Escritores (UBE) e ocupou cargos de gestão cultural na administração pública. Mas será lembrado, sobretudo, como um visionário que, juntamente com Roberto Piva e Sérgio Lima, foi um dos poucos brasileiros citados pelo periódico francês "La Bréche — Action Surréaliste", dirigido por André Breton.

 

O comportamento de Willer, na literatura e na vida — entre o surrealismo e o movimento beat — era o da provocação entremeada por um lirismo contagiante que atraiu seguidores, como jovens poetas, que o acompanhavam em cursos e performances até pouco tempo antes de ele adoecer gravemente, em 2022, diagnosticado com um câncer de bexiga.

 

Inquieto, quando ficou em tratamento numa casa de repouso no Brooklin, nos últimos meses de vida, ainda sonhava em voltar às ruas de São Paulo, à permanente criação literária, aos saraus onde se apresentava como uma figura essencialmente representativa do melhor da poesia contemporânea brasileira. Era um autor como poucos, que ainda impressionava o público com declamações do longo poema "Uivo", de Allen Ginsberg, ou criações próprias presentes em livros como Anotações para um apocalipse (São Paulo: Massao Ohno, 1964); Jardins da provocação (São Paulo: Massao Ohno/Roswitha Kempf Editores, 1981); Estranhas experiências (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004) e A verdadeira história do século XX, que teve sua primeira edição em Portugal pela Apenas Livros (Cadernos Surrealistas Sempre, 2015), e uma edição nacional pela editora Córrego (São Paulo, 2016).

 

Como intelectual, Willer soube movimentar a cena cultural brasileira, catalisando leitores e jovens poetas em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Campinas ou aqui mesmo em Londrina, onde participou do Festival Literário Londrix.

 

Nos últimos anos, o poeta passou por dificuldades financeiras, coisa comum num país que não prestigia seus intelectuais, repetindo uma história de privações que, mais uma vez, foi sentida durante a pandemia do novo coronavírus, agravada pelo bolsonarismo, um governo insensível à produção cultural, no qual escassearam-se as verbas nas universidades e órgãos públicos, onde mestres, da altitude de Willer, distribuíram conhecimento em palestras, oficinas e cursos, num movimento informal e transversal extremamente importante durante décadas.

 

No fim, o mestre foi apoiado por um pequeno grupo de intelectuais, professores universitários, amigos, leitores e seus ex-alunos. Uma corrente de gratidão e vida que soube dimensionar a importância de um autor que deixou uma obra brilhante, respeitada no Brasil e no exterior. Uma obra que, muito acima das dificuldades, é a criação de um intelectual vitorioso no país dos naufrágios.

 

 

VIVÊNCIAS E RELATOS EM LIVROS CONFESSIONAIS

 

 

Em 2019, Willer lançou o livro de crônicas Dias ácidos e noites lisérgicas pela Editora Córrego. As páginas transpiram o movimento contracultural de São Paulo, nos anos 1960/1970, onde ele se consagrou como um dos principais poetas e críticos de sua geração. Marcado pela liberdade de ação e pensamento, o livro tem um tom bem-humorado que reflete o comportamento de uma juventude plasmada por novos valores, para a qual temas tabus, como o homossexualismo e as drogas, são desconstruídos a partir de outra visão de mundo.

 

Numa das crônicas, "A Festa e o Homofóbico", o autor mostra o preconceito que aparecia mesmo em rodas consideradas liberais: "Fazia o tipo compenetrado. Especialidade dele era sentar-se à nossa mesa sem que o convidássemos para reclamar de homossexuais. Eram 'problemados', dizia — como é que podia uma coisa dessas, ficava repetindo. Mal o tolerávamos. Homofobia era a regra, homossexuais — naquele tempo dizia-se 'entendido' e não 'gay' — eram um bocado segregados — ou então se enrustiam, ficavam no armário".

 

A crônica termina por desmascarar o preconceituoso, revelando que ele mesmo vivia no armário, e dá a medida de como Willer tratava os tabus com a ironia própria de quem nunca tolerou a hipocrisia por trás de alguns comportamentos. Isso é o que fazia dele, além de poeta, um sujeito empenhado na transformação cultural e social, firmando-se, sobretudo, como um homem livre e um crítico do comportamento padrão, comprando a briga dos rebeldes que permeiam toda a sua obra.

 

Mas é no livro Estranhas experiências (Rio de Janeiro: Lamparina, 2004), que ele faz da poesia e da prosa seu veículo de vivências delicadas, da existência à flor da pele, num ato ritualístico, entre seus amores, nos quais se inclui a linguagem: objeto de paixão e desvario ao qual ele dedicou sua vida, tecida numa obra inesquecível para qualquer leitor que atravesse seus livros como um passageiro de suas impressões mais profundas.

 

"E agora, quero a palavra reduzida ao simples gesto de agarrar alguma coisa, pura denotação, linguagem-referência, mão estendida apontando para esses pedaços de realidade — ou então a festa com todos os seus fantasmas sentados no sofá de absinto enquanto sangram os dedos da memória, tudo verdadeiro no limite do que possa ser verdade, o caderno escrito de trás para diante e o livro lido a partir da última página, e também poderia falar das nuvens de vapor e cortinas de fumaça dos quartos, e narrar a história completa das febres tropicais — porém só nós dois fomos capazes de nos mover nesse plano intermediário em que realidade e sonho se confundem, tocados pela sugestão de outra cena ou situação. Essência, é esse o nome da nossa transação".

 

 

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fevereiro, 2023

 

 

Célia Musilli é jornalista, cronista e poeta. Autora de Sensível desafio (poesia, Atrito Art, 2006) e Todas as mulheres em mim (prosa poética, Editora Kan e Atrito Art, 2010), participa de várias publicações e coletâneas. É editora de Cultura da Folha de Londrina, onde também escreve crônicas aos domingos. Tem textos e poemas publicados nas revistas literárias Coyote, Zunái, Mallarmargens, Agulha, Biblioteca Nacional, Celuzlose, Diversos Afins, InComunidade (Portugal). Integra a antologia 101 poetas paranaenses, organizada por Ademir Demarchi; O fio de Ariadne, organizada por Christine Vianna; As mulheres poetas na literatura brasileira, organizada por Rubens Jardim (Arribaçã, 2021), e a Nova antologia dos poetas londrinenses (Atrito Art, 2022). É mestre em Teoria e História Literária pela Unicamp, onde pesquisou a obra de Maura Lopes Cançado.

 

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