©sguimas

 
 
 
 
 
 

B I L H E T E

 

 

Meus olhos não expressam teu abismo

Têm um brilho

e não se chama afinidade

 

Olho-te como quem

vê um gafanhoto enorme

a se abrigar

no para-brisa do carro

um homem elegante e de olhos verdes

com barba ideal para noites de inverno

nesse frio de cristal

onde o bicho repousa

 

Inclino-me

e evito acelerar

para que ele não voe

e pouse

suas pernas finas

suas breves mãos

nesse meu corpo

num lugar onde o vento

faça a curva

 

 

 

 

 

 

A M O R

 

 

No fundo de um escritório

uma mulher comovida espreita a praia

sob o peso de telefones.

e um terceiro andar sem janelas.

 

Agora só na areia consegue escrever palavras

atiradas a um mar

que está distante.

 

Na frente moram o chefe o presidente

colegas, o trivial variado da oficina,

mas ela só a vista a praia:

uma casa a caminho dos degraus

o verde agudo no morro

 

Mais que o mar

ouve uma voz

— no fim da escada —

inaugurando antigas vozes dentro dela

 

 

 

 

 

 

F A C T U A L

 

 

Com meio sorriso

meio juízo

ele observa meus gestos

minhas pernas

ouvir o assobio do outro

suas metas

e as próximas etapas

deste verso

 

(repara no tapete, na sujeira,

no mistério real da cafeteira)

 

... e conclui que quer participar

um pouco das palavras

no poema

 

esse meu breve hospício

particular

 

 

 

 

 

 

R Á F A G A

 

 

meuamor meuamor meuamor

repito a ancestral palavra

semente que não morre e não avança

no meio da Paixão

 

meuamor à noite meuamor de dia

de perto ou de longe de costas

de perfil

à sombra

e sob um céu positivo de 40 graus.

 

meuamor é epidêmico

epidérmico

é tua fala no meu corpo

minha boca no teu peito

tua língua entre essas pernas

sobre essas penas

 

 

 

 

 

 

 

C r ô n i c a  íntima

 

 

Dentro da noite o tango

o trem do que passou

o peso desses discos

a marca dessas fotos

o colorido filme

o argumento que já decoramos em família

 

 

E não adianta ver ouvir tocar

sentir ambientes

palmilhar paredes.

A hora é outra

o mesmo som

tão diferentes do que foi

e do que é.

 

 

Uma avalanche de lembranças

mais o desgosto da cunhada

ao pé do gramofone.

 

 

Por que as pessoas

só falam do passado?

Ela repete quase soterrada.

 

 

Mas os pretéritos persistem.

Nosso presente

à volta do silêncio

não existe

 

 

 

 

 

 

Ponto de   ô n i b u s

 

 

... aí, para completar ela veio embora

e deixou por lá a avó sozinha

de cem anos mais ou menos,

mas logo em seguida teve de voltar

porque a sobrinha adoeceu... logo

na hora em que ela pensava

que ia descansar... Então arrumou

um emprego, todo dia por um mínimo

com faxina e tudo... Sabe quando

por esse emprego eu ia me empregar?

No dia de São Nunca. Mas, se precisar,

mato a cobra e mostro o pau. Faço

qualquer coisa pior. Pior que é isso.

 

 

 

 

 

 

I M P R E S S Õ E S  da sangria

 

 

I

 

 

As galinhas dão as costas disfarçando

a futura imolada — quieta —

o pescoço depenado e oferecido

pulsa

pulsa

até escorrer

tigela abaixo

 

 

 

Estremece

asas ainda presas

depois livres

no galinheiro em paz.

 

 

 

II

 

 

O homem ameaça um carinho

ao apanhar a faca.

 

 

A mão se fecha

sobre o pescoço à mostra.

 

 

Uma certa paixão envolve o pátio

na hora de cortar

a jugular.

 

 

No almoço

nem lembrança

da bichinha

que era branca.

 

 

 

 

 

 

P L U R A L

 

 

As tardes se desdobram

nos domingos de camarão, de vinho

Pornografia à vista nos edifícios

soldados às segundas-feiras.

 

 

As meias-tardes

entre cafés e projetos longínquos

rarefazem

uns abacaxis de mármore

nas fruteiras.

 

Pores-de-sol

Entre sono e visitas aos parentes

se constroem e são blocos de um concreto inconfundível

transparentes.

 

 

Insuperável —

engolir tantos brindes

aos domingos.

 



junho, 2022



Suzana Vargas é gaúcha de Alegrete. Poeta, autora de literatura infantil e juvenil e ensaísta. É Mestre em Teoria Literária pela UFRJ, professora de literatura e de oficinas de criação literária. Realiza projetos de estímulo à leitura e curadoria para feiras e bienais do livro. Criou e dirige o Instituto Estação das Letras. Possui 16 títulos publicados dos quais seis são de poesia, entre eles Sombras Chinesas (Massao Ohno Editor/SP), Caderno de Outono (Relume Dumará/RJ, finalista do Prêmio Jabuti) e O Amor é Vermelho (Garamond/RJ).É traduzida na Alemanha, na Espanha e na Itália entre outros países. Figura em diversas antologias no Brasil e no exterior.

 

Mais Suzana Vargas na Germina

> Poesia
 

::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::