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Passarinho

 

 

Só sei fazer poemas com passarinho

Todas as palavras cabem em passarinho

Dor, por exemplo, é uma palavra que

A gente não pensa em passarinho

Mas dor é passarinho

Na palavra gaiola

Saudade é uma palavra passarinho

Que procura terras distantes

Deus é passarinho no mamão

Amor é a palavra passarinho disfarçada

De passarinho.

 

 

 

 

 

 

Metáfora do rio como destino

 

 

O rio Maranhão nasce na lagoa Formosa

Áfono, raso, torto quase um não rio

Uma árvore do Cerrado deitada no chão

Não sei por que cobiça insiste

Se apenas lhe cabe ser água a mais no mar

O Maranhão ambiciona mais

Quer ser o rio da minha vida

Por algum claro destino ou cisma

Levar-me a crer que os leitos dos rios

São apenas tempo, não lugar.

 

 

 

 

 

 

A bruxa dos pequenos papéis

 

 

A bruxa dos pequenos papéis

Dará destino às anotações

De números de telefones que

Já não se sabe a quem pertencem

Receberá os guardanapos untados

Por bocas e poemas

As folhinhas de parede no primeiro dia do ano

Seguinte

E todas as folhas amassadas

Porque cada folha amassada

É um pequeno papel mal vivido

Que retém em si a reminiscência

Da mão que a aperta

A bruxa dos pequenos papéis

Zela para que todos os pequenos papéis

Sejam guardados

Para um dia queimá-los ou

Redimi-los de um esquecimento

Injusto.

 

 

 

 

 

 

A visão iletrada

 

 

Leio meu país

Com a visão iletrada

E o sorriso envergonhado

Faltando dentes

 

O país onde só as solidões

Grandes podem existir

 

A dos meninos

Das estatísticas

E a das fronteiras

Distantes

Em territórios vazios

De país

 

Leio meu país

Com o coração dos que

Nada sabem

Trancados neste lugar

Imaginário

 

De montanhas para baixo

E cidades desabitadas

 

Na posta-restante dos extravios humanos

Nasci neste país

Imenso e imerso

Em mim.

 

 

 

 

 

 

Etimologia da palavra romance

 

 

Pegam uma coisa

E a chamam de pedra

A ela atribuem substância

E passamos ao convívio

Dessa coisa

De matar passarinho

De colocar no trilho do trem

De fazer casa

E de calçar as coisas pensas

E toda vez que pegamos

Uma dessas coisas

Chamada pedra

E a atiramos ao rio

O fundo da coisa nominada rio

Já não é mais só fundo

Porque uns pés inesperadamente

Podem tocar a pedra e cair

E inventar uma outra coisa

Que alguém, com a mão estendida, possa

Atribuir substância de fazer casa

E de calçar as coisas pensas.

 

 

 

 

 

 

Flores de Kafka

 

 

As cores sequestradas

Mistificadas em jardins

Ciano, magenta, amarelo e preto

Adesivos, banners, catálogos, prospectos

Brindes, camisetas, painéis

Uniformes anunciam a impossibilidade

De não estar mais dentro daquelas cores

De viver além do azul ou do vermelho

De fugir da identidade

De jogar o corpo fora da escala.

 

 

 

 

 

 

A marche do enfant Rimbaud

 

 

Um militar

Tem tendência a passarinho

Pode ser a saíra

Ou o soldadinho

Todo dia carrega seu fuzil

Engraxa suas botas

Canta o Hino à Bandeira

Um dia descuidaram

E fugiu o passarinho

Levou cantil, botas e fuzil

Encontrou outros tantos

Companheiros

Foi fazer revolução

De passarinhos.

 

 

 

 

 

 

Noites de Bergman e Fellini

 

 

Nessa companhia de teatro amador

Fingimos

Mas uma gripe impediu que a atriz

Principal atuasse

Nunca devolveremos os bilhetes

O público que se amontoe na porta

O espetáculo seguirá

E ninguém dará conta

Da grande atração no cartaz

Quando a bilheteria fechar

E o definitivo aviso pender: esgotado.

 

 

 

 

 

 

Ilumina

 

 

Entra pela noite fria

Caminha sem caminho

Até aqui tudo foi náusea e a mente, palidez

Que estás vendo

São cântaros derramados

Deita

A nascente tem sede

O abrigo tem medo

A força insubmissa

Esplende

O esquivo é algo manifesto

Em matemática, luz e expansão

Salmodia

E agora que sabes

Recolhe tua água

Para o ofício da volta.

 

 

[Do livro Poemas do núcleo rural. Penalux, 2022]

 

 



junho, 2022



Marcelo Benini nasceu em 1970, na cidade de Cataguases, Minas Gerais. Publicou O capim sobre o coleiro (poesia, edição do autor, 2010), O homem interdito (crônicas, Intermeios, 2012), Fazenda de cacos (poesia, Intermeios, 2014), Currais concretos (poesia, Intermeios, 2018), Poemas do núcleo rural (poesia, Penalux, 2022). Vive em uma área rural próxima a Brasília/DF.

 

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