Sinfonia Nº 2 Em Mi Menor, de Rachmaninoff

 

 

Ontem à noite, no teatro, meus olhos percorreram teu corpo por longos movimentos da orquestra. Admirei os cabelos negros e curtos de que tanto gosto, o jeito de menina inteligente colocando os óculos, e alegrei-me com a tua respiração ofegante, compassada, sinfônica. Realmente te quero muito bem. Mas, durante a volta para casa, aquele silêncio alertou-nos que algo estava errado. Pode ser que a chuva tenha contribuído para tal estado de melancolia. Pode ser, mas ali falavas sobre a vida impunemente, fazias até planos, sem perceber que pisavas sobre mágoas e, como tal, cair seria irremediável.

Em outras vezes também foi assim. Não sei se é delicado de minha parte contar essas coisas, mas o fato é que o amor para mim nunca terminou bem e não creio que agora venha a ser diferente, apenas tenho por ti um respeito maior, este, sim, um sentimento novo em minha vida. Essas coisas que vivemos hoje e cremos tratar-se de provas inequívocas de um amor verdadeiro, ah, minha cara, não te iludas, são apenas retardos para o acorde seguinte. Essa é a harmonia de todo amor.

Se acaso me perguntares sobre as noites passadas em claro, as animadas conversas em cafés e livrarias e as ternas promessas, serei obrigado a te dizer com todo cuidado não se tratarem absolutamente de coisas originais, talvez, reconheço, sejam agora mais intensas e interessantes, apenas isso. Também não será inédito para mim quando a definitiva mágoa florescer entre nós. De outras vezes também acreditei impossível tal vileza. Então, não imaginas o fim de todas as cartas e bilhetes escritos com a mesma obstinação com a qual nos empenhamos agora?

Ontem à noite, olhando teu corpo durante o terceiro movimento, um adágio, eu me lembrava que por outras duas vezes tive a mesma absoluta certeza de amar definitivamente. Isso de maneira alguma me incomodou, muito pelo contrário, fez-me sorrir.

Como em um pequeno sonho me vi novamente aturdido e com alianças no bolso. Eu caminhava nervosamente, conferindo a todo o momento se os dois objetos ali permaneciam. Volta e meia tive a impressão de ouvir o tilintar seco do ouro em meio aos ruídos confusos que vinham da rua. Finalmente cheguei ao conjunto de lojas do centro. Conheces esse lugar e sabes que não existe ponto mais ascoso e decadente. Sabes que só de entrar ali a alma embolorece, mofa, murcha. Caminhei por entre aquelas lojas vazias e decadentes e já no fim do corredor, em um canto escuro sob a escada, encontrei a mesma placa das outras duas vezes: Compra-se ouro. Percebi envergonhado que o homem me reconhecia, como se lembrasse bem as outras duas vezes em que lá estive. Parecia ciente das minhas razões e do meu opróbrio. 

— Cento e cinquenta reais, e é tudo.

Pela terceira vez aquele ourives me humilhava. Ele sabia muito bem que as alianças haviam custado pelo menos dois mil reais, mas também sabia que eu não estava ali pelo dinheiro. Ele esperava por mim pacientemente a cada ano. O amor havia se tornado um estranho vício de fazer maus negócios.

 

 

 

 

 

Compêndio da Anatomia dos Amores Mortos

 

 

Cada amor malogrado tem a sua própria maneira de deixar ressaibo. Eis por que a natureza tem sabedoria, posto que amores não se destinam ao esquecimento. Esquecer é um remédio alopático, que só faz empurrar o amor lá para dentro, entranhando-o, calcificando-o dentro de nós e nos tornando museus de histórias mortas.

Cada um que se vire e crie para si uma maneira peculiar de arrastar seus amores. Eu tenho a minha e aqui a revelo sem receio de alogia ou julgamento. Tenho a aptidão de receber em meu corpo o espírito dos amores fúnebres e dar novamente voz a cada um deles. Esse fenômeno, todos já o conhecem por psicofonia. No meu caso, o singular é que todas as moças em questão ainda estão por aí, vivinhas. Algumas se casaram novamente, outras tiveram filhos, enfim, tocaram a vida, como se diz.

A coisa dá-se sem qualquer previsibilidade, sem aviso, nem sintoma. Normalmente em casa, mas às vezes também no carro. Basta uma fração de segundo e no meio de uma atividade qualquer começo a falar com a voz de um amor antigo. E retomamos então um diálogo interrompido no passado. 

Não se trata de um arremedo ou pantomima vulgar. É simplesmente o dom de captar com sutileza uma expressão única, um modo de falar ou um tom de voz que revelem indubitavelmente a autenticidade do fenômeno. Se uma delas pudesse me flagrar nesse momento, não duvidaria estar diante de si mesma. 

Ao contrário dos médiuns comuns, que ao final de cada sessão ficam exaustos, sempre volto a mim renovado. Curioso é que mais de uma vez já ocorreu de uma intervir na conversa da outra. Normalmente querem mostrar importância. Relembram o primeiro olhar, o primeiro beijo, a primeira noite. Fazem questão de contar das viagens, das praias, das cachoeiras desertas, dos jantares caros.  Quando uma se sente preterida não poupa nem as mais recônditas intimidades. Assim são as mulheres. 

Ontem mesmo uma delas veio. Ficou hora me contando sua vida infeliz, um casamento errado. Chegou a dizer que daria tudo para voltar no tempo. Confesso que aqueles olhos negros ainda me balançam.

Um espírita provavelmente levaria tudo isso muito a sério e diria tratar-se de um processo kármico. Um psicanalista chegou até a me recomendar que o procurasse.

Mas eu não vejo necessidade alguma. Somos muito mais felizes agora.

 

 

 

 

 

O Sorriso dos Infelizes

 

 

Ainda existe em minha memória o menino que tocava bandoneon nas ruas de Santelmo. Esse menino não existe mais e talvez eu mesmo já não exista. Eu e aquele menino nos perdemos no tempo. Não sei as causas que o levaram ao desaparecimento, isso caberá às autoridades de Buenos Aires investigarem e darem uma explicação convincente à população e aos milhares de turistas que visitam a cidade. Quanto a mim, sei exatamente por que deixei de existir, mas isso não vem ao caso agora.

Ocorre que eu e aquele menino cometemos erros graves. Eu, o de tirar a fotografia e ele, o de se deixar fotografar. Naquele segundo em que meu dedo pressionava o botão, nenhum de nós poderia imaginar que estaríamos para sempre ligados. É tão raro haver um encontro como aquele, onde há total cumplicidade das tristezas. Passamos a vida procurando por isso e acreditamos por algum motivo que tal afinidade esteja nos olhos da mulher amada. O que vem a ser o amor senão essa esperança de que um olhar seja suficiente? Ocorre que são tantas e tão fracassadas tentativas que resta apenas um cansaço autômato de turistas fotografando. 

As pessoas passavam por mim naquela ruazinha movimentada de Santelmo. Eu percebi que acabara de deixar para trás um menino que tocava seu bandoneon. Mas eu já havia me voltado e tirado a fotografia sem pensar no que estava fazendo, e a possibilidade de sorrir estava perdida para sempre.

Peço desculpas se volto a esse assunto. Talvez recordar essas coisas seja um incômodo para ele. Sua vida prosseguiu. O trabalho na fábrica, a mulher, os filhos, o aluguel, as contas a pagar. Há tantas coisas que já lhe absorvem os ares do pulmão e eu venho aqui importuná-lo com essas lembranças. Além do mais, não se trata de nada além da fotografia de um menino triste tocando bandoneon nas ruas de Santelmo. Uma foto tirada casualmente por um turista no mês de abril, em Buenos Aires.

Guardo a foto mais uma vez na gaveta e com os olhos fechados continuo a ouvir o som improvável do bandoneon. Imagino que aos domingos, vendo o jogo de futebol pela televisão, ele também se recolha em seu silêncio e ainda se lembre do menino que já morreu.

 

 

 

 

 

O Domingo dos Ipês (Trois Gymnopédies)

 

A flor se desprende do talo e cai com delicadeza de flor. Cai como a melodia: douloureux, triste, grave. Antes de chegar ao chão, destino que lhe impõe responsabilidades humanas, a flor estala de amarelo o contraforte azul que é o céu.

Só é perceptível na flor o amarelo, assim como só é perceptível a felicidade no olhar de um pai que pressente o filho. Pintem de azul todos os calendários no mês de setembro! Sem manchas brancas, sem tristezas plúmbeas. Apenas azul-setembro.

As flores vão caindo e juntando-se a muitas outras flores sobre a grama gris. Não chove há três meses. Pergunta-me a amiga que gosto há em viver em uma cidade tão insípida? Digo-lhe que é o céu, pois que abaixo dele nada combina bem. À umidade de doze por cento até as almas ressecam, concordamos. Tem-se, então, a vida nessa cidade de estranhos hábitos, o de ignorar o nome da moça que vive no apartamento ao lado, de não se dizer bom dia no elevador e de caminhar olhando sempre o chão.

Diariamente em seu aeroporto pousam enxames de moscas varejeiras. As reuniões estão marcadas, os gabinetes prontos. Funcionários, ministros, juízes, poetas, artistas e empresários, todos se lançam às ruas, no delírio infeccioso da ambição, no júbilo das consciências obnubiladas. Eis a cidade em sua manhã de meretriz.

À noite, recolhe-se lânguida e desonrada. Caberá às faxineiras o infortunado ofício de fazer desaparecerem os dejetos morais.  

Há, porém, um dia, apenas um dia, onde a amargura retinta dessa cidade se aplaca. Acontece uma vez por ano, em um domingo, sem que nada seja combinado. O domingo dos ipês não está no calendário. Ocorre apenas que todos o sentem. É urgente sair às ruas e tirar da gaveta a fantasia. Saem enamorados, em grupos, anônimos, famílias de todos os tipos enchem os gramados de vida abundante. Parecem novamente como quando aqui chegaram: ingênuos, de boa alma, desejosos apenas de criar seus filhos com afeto e probidade. Vêm-se então grandes extensões povoadas; toalhas de piquenique estendidas, mães zelosas, pais felizes. O vendedor de água de coco exulta. A cidade prenuncia a chuva e brinca, alegra-se, ainda que seja por um dia.  Em um único dia sabe que não anoitecerá emporcalhada, conspurcada. Na manhã seguinte, dezenas de fotografias de ipês, com seus paroxismos de cor, estarão a cambiar em e-mails. Cada qual querendo mostrar sua árvore mais amarela, seu céu mais azul.

Eu sou um dos solitários que vaga pela cidade observando a vida. Caminho pelo gramado e escuto, vindo do sexto andar do edifício em frente, a moça tocando seu piano douloureux, triste, grave. Deito sob a copa de uma árvore e me deixo cegar pelo oceano azul-setembro. A flor se desprende do talo e cai sobre mim com delicadeza de flor. Como se ipês tocassem violinos.

 

 

[Contos do livro O homem interdito. São Paulo: Intermeios, 2012]

 

 

 

 

 

 

Marcelo Benini (Cataguases/MG, 1970). É autor dos livros O capim sobre o coleiro, de poesia (edição do autor, 2010) e O homem interdito, de crônicas (São Paulo: Intermeios, 2012). Vive em Brasília desde 1974. Mais em www.facebook.com/ocapimsobreocoleiro.