©sguimas

 
 
 

 
 

ONDAS

 

 

Sua prótese peniana maleável tinha se rompido, o que significava que já se fazia impossível ter alguma ereção. E os dezoito anos, hein? O pau duro chegava a encostar na barriga. Nada igual à meia bomba dos quarenta e à bomba nenhuma dos sessenta em diante. E nem tinha transado tudo o que devia naquela época, desde cedo tendo que assumir o papel de arrimo da família depois que o pai morrera. Arrimo. Justamente o que faltava agora. Foi desfrutar de uma vida sexual realmente digna desse nome depois dos trinta. Controle de mãe e responsabilidade com irmão ninguém merece. Nada mais brochante. Quer dizer, isso também. Galinhou muito para tirar o atraso, fugindo de se prender de novo. Depois de décadas surfando na crista da onda, vieram os problemas de disfunção. Sem drama, tomou as devidas providências. A colocação da prótese não era a melhor coisa do mundo, mas permitiu que continuasse a traçar carne nova, sua predileção. Tinha verdadeiro nojo das mulheres da sua idade, e a simples ideia de lamber uma buceta velha fazia com que sentisse calafrios. Elas ficam secas também, pode morrer de cuspir ali que continua igual ao deserto do Saara. Boa de chupar só Juliana. Trinta e nove anos a menos. Nunca tinha comido mulher mais gostosa. E não só isso, ela era o pacote completo: sem filhos, com tempo livre, cabeça boa e o corpaço definido na academia. Aliás, puxara papo entre uma sequência e outra, pois treinava no mesmo lugar. Se existia uma coisa que sabia fazer bem, era xavecar mulher. Catou foi de primeira. Facinho, facinho. E a coisa engatou. Juliana não perdeu tempo e logo se mudou para a cobertura na Enseada. No início, um mar de rosas. Quase o paraíso na Terra. Quase. Juliana gostava de sexo. Gostava, não. Era tarada. Não lembrava mais quando tinha pegado uma com tanto fogo no rabo, talvez nunca. Mas a morena do Tchan realmente se deliciava no rala e rola. Insaciável, queria dar todos os dias, duas ou três vezes ao dia. Em posições que nem no Kama Sutra! A primeira faz tchan, a segunda faz tchun, e... Mesmo com a prótese, passou a sofrer para acompanhar o embalo. O andrologista, solícito, receitou cialis, alertando que o resultado podia não ser lá essas coisas. Melhorou uns dez por cento. Mas já foi demais. Começou a ficar empapuçado. Armava o pinto só por obrigação, mas prazer mesmo não tinha mais. Juliana não dava trégua. O diabo no corpo: a única explicação. Parecia a mãe dele reencarnada, exigindo coisas, pressionando. A velha queria dinheiro, Juliana, tchaca tchaca na butchaca. No fim, era exaustivo igual. Submeteu-se. Mais uma vez aguentou sem reclamar. Até que a prótese quebrou. Com a graça de Deus! O alívio, o alívio, ah, o alívio. Você não vai trocar essa porcaria, não? Vou sim, minha filha, assim que puder, mentiu ele. Não queria trocar era nada. Juliana ameaçou ir embora uma vez, duas. Tem paciência, minha filha, tem paciência, ele dizia sem convicção. Na terceira, ela pegou suas coisas e saiu batendo a porta. Tchau, minha filha, vai com Deus. Paz e sossego finalmente. Deitado na rede pendurada na varanda gourmet, ele passou a observar o mar em frente, em seu eterno vaivém. As ondas se esticando na areia até o máximo e depois retrocedendo.

 

 

 

 

 

 

ÁUREOS TEMPOS

 

 

O professor lamentavelmente é um dos poucos homens em seu departamento e o único hétero. De vez em quando se pergunta que desatino o levou a estudar Letras, o clássico curso "espera-marido". E, como se a graduação não fosse derrota suficiente, se meteu, na sequência, a fazer mestrado e doutorado em Teoria Literária. Bom, ao menos isto: ainda que haja muitas analistas, são poucas as teóricas, graças a Deus! Provavelmente porque a teoria exige uma abstração maior do que a mente das fêmeas é capaz de alcançar. O professor entra agora na sala de aula cheia de fraquejadas e sente uma leve irritação. A maioria é jovem, mas há também as coroas, que deixaram o ensino superior para quando os filhos crescessem. Insanas! Não veem que é tarde demais? No meio delas, um ou outro espécime do "gênero universal", como dizia a francesa sapona, mas invariavelmente gay. O professor se ressente de ver sua amada área de conhecimento tomada por seres que secretamente despreza. Se tivesse sido contemporâneo dos fundadores, poderia ter tido mais sorte. Naquela época, elas ainda não compunham maioria. Professores e alunos vestiam ternos e se chamavam pelos sobrenomes. Se entre eles existiam pederastas (os antigos gays), era coisa muito bem escondida. Saudoso passado! Mas teve a infelicidade de lecionar neste momento em que o feminismo já está na sua terceira ou quarta onda, vejam vocês. Tantas ondas e nunca se afogou. Quem sabe um tsunami um dia varra todas as feminazis da face da Terra. Os anjos digam amém! Mas não adianta, quando uma morre, logo é substituída por outra, ainda mais ouriçada e insolente. Há dois anos o professor se sente acuado, frustrado, injustiçado. Nada menos do que seis mocreinhas entraram com um PAD contra ele, acusando-o de assédio. Antes costumava tecer comentários sobre os corpos das pupilas e, de vez em quando, bolinar alguma que entrasse sozinha em seu gabinete para tratar de suas insipientes dissertações e teses. Que mal podia haver nisso? Em outras décadas, se a presa era séria ou fiel ao namorado, simplesmente ficava paralisada ou se esquivava com jeitinho. O professor nunca teve vocação para estuprador, então, nessas horas, sabia recuar. Até porque sempre havia as vagabundas, aquelas que aceitavam seus avanços, a quem levava aos motéis da rodovia. Pareciam desfrutar tanto quanto ele, apenas para em seguida chantageá-lo por aprovações ou oportunidades acadêmicas. Arrivistas! Mas as biscatinhas de hoje estão contaminadas de radicalismo, chegam ao cúmulo de querer acabar com as cantadas e a paquera. Se não fosse pela intervenção de seu amigo reitor, que conseguiu o milagre de abafar o caso, estaria perdido. Em troca, o Magnífico exigiu que refreasse seus instintos dali por diante, apenas para evitar novas dores de cabeça. O professor já poderia se aposentar, pois tem tempo de serviço suficiente, mas resolveu esperar até a "pé-na-cova", pois o prospecto de ficar 24 horas na companhia da baranga da esposa o aterroriza mais do que a exoneração. Então, lá está ele diante da turma, acabrunhado, mirando as paredes do fundo para evitar contato visual com essas pós-histéricas. Mal acaba de apresentar o programa da disciplina e vê com o canto do olho que uma delas, ninguém menos do que a cotista escurinha, levanta a mão. Sim, querida, pode falar. Meu nome é Carolina, professor. Ah, claro, desculpe, diga, Carolina, qual é a sua dúvida? Na bibliografia do curso, só tem homens brancos, professor. Não vamos estudar nenhuma autora, nada de negras, negros e negres? Nada de lésbicas, gays, não binaries e transgêneres? O professor sente a pressão subir, um dia alguma das abusadas ainda vai matá-lo. Perscruta o recinto, na esperança de encontrar risos ou desaprovações sobre a fala da afropetulante. Mas só vê cabeças balançando afirmativamente. Uma resposta atravessada, das que costumava dar nos áureos tempos, quase escapa de seus lábios. Mas o medo de mais um PAD o detém. Vou ver o que pode ser feito, Carolina, pesquisar se há autores relevantes nesses grupos que você mencionou. Obrigado pela contribuição. Agora, vamos em frente.

 

 

 

 

 

 

A CULPA DE EVA

 

 

A culpa é de Eva, professora, que comeu o fruto proibido. Oi? De Eva, professora, por causa de Eva, somos condenadas a ser submissas aos homens. A professora sente como se tivesse levado um tiro. Como é possível, meu deus, como é possível, que ouça esse comentário numa sala de aula de um curso superior? A discussão era sobre desigualdades de gênero. Estatísticas e mais estatísticas. Cerca de 22% de acréscimo nos casos de mulheres mortas simplesmente por serem mulheres, apenas no primeiro trimestre. Quase 60% de aumento nas denúncias de violência doméstica em relação ao ano anterior. Números que devem ser ainda maiores, considerando-se a má vontade de alguns agentes para dar a esses crimes o nome que devem ter — feminicídios — e a vulnerabilidade que impede que muitas denunciem seus agressores. Então, tudo isso é culpa da pequena e mítica Eva? Que danada! A professora olha para a aluna que fez a observação, na esperança de ser alguma piada. Não é. A menina está séria, assim como as suas colegas. Dos rapazes nem esperava reação diferente. Mas das moças... Ao que parece, aquele comentário está dentro da normalidade de todas. A professora também se sente culpada, não por ter experimentado o fruto do conhecimento, mas porque não tem sido capaz de partilhá-lo com a mesma eficiência de quem dissemina falácias para manter privilégios. A garota que pronunciou a máxima repetida à exaustão, mesmo nos dias de hoje, é jovem, deve ter menos de vinte anos. Trabalha durante o dia, como a maioria que vem para a aula no turno da noite. A raiva surda, sua velha conhecida, faz o sangue da professora ferver. Não é da aluna que tem raiva, mas da estrutura com a qual se debate desde que nasceu há quase sessenta anos. Sendo o único e tardio rebento de um casal que tentou por anos procriar, não pôde ser o filho que o pai tanto aguardava. Apesar de nunca ter ouvido isso dos lábios paternos, sempre soube que foi apenas um prêmio de consolação. A chegada de um menino teria sido mais celebrada, mas ele teria sido mais amado? Não é possível saber ao certo, porém, ela fez tudo o que estava ao seu alcance para mostrar que era tão merecedora de amor quanto um garoto. Ironicamente, na ausência de irmãos, acabou recebendo mesmo mais atenção. Sem outras alternativas, o pai, que não tinha podido estudar, investiu o pouco que tinha na educação da filha. Desde cedo, martelou em seus ouvidos que uma mulher deve se formar e ter uma carreira, não devendo nunca aceitar uma posição de dependência ou subjugação em relação a ninguém. Assim, ele, que, como a maioria dos maridos de sua geração, tratava a esposa como uma escrava de cama e mesa, foi o primeiro a incutir ideias feministas na cabeça da descendente em cujo sucesso espelharia a própria realização. Testemunhou, orgulhoso, os esforços dela para galgar os níveis mais altos de escolaridade e passar nos concorridos concursos da área acadêmica. Mas até a sua morte não houve um único dia em que não avaliasse que um filho poderia ter ido mais longe. E não estava de todo errado, pois, em sua trajetória, ela teve mesmo que lidar com a competição muitas vezes desleal dos homens, com suas táticas milenares de sabotagem. Encarou, por exemplo, o insidioso assédio moral de seu orientador, que a tratava como uma completa incapaz e que apenas se manteve em silêncio quando a tese dela recebeu efusivos elogios na defesa. Passou por cima, sabe-se lá a que preço, até mesmo das sequelas causadas por um estupro no campus, algo que guardou para si, pensando que os colegas provavelmente respeitariam ainda menos uma mulher estuprada. Engoliu tanta coisa para chegar até ali que nem ela às vezes acredita. Agora está diante dessa turma, fugindo da aposentadoria, não pelo medo da solidão de uma casa vazia, como as más línguas dizem a seu respeito — afinal, nunca se sentiu mais sozinha do que quando esteve casada —, mas porque esse é o seu universo conhecido, em que lutou com unhas e dentes para ser minimamente valorizada. Ou pelo menos era. Até ele começar a ser invadido pelas mesmas ideias retrógradas que circulam com toda a força fora dali. Você está dizendo essa frase, mas não é no que acredita de verdade, é? É só o que a princípio consegue devolver à aluna, apenas uma pergunta, mas que parece ter o efeito de causar nela a mesma cisão do raio divino que rompeu para sempre os muros do Éden. Bem, professora, eu, como estudante de Sociologia, não consigo acreditar nisso realmente, mas, como alguém que faz parte da minha igreja, tenho que acreditar. Sou obrigada a acreditar que foi a mulher que introduziu o mal no mundo. Ou não sou?

 

 

dezembro, 2022

 

 

Divanize Carbonieri é doutora em Letras pela USP e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT, em Cuiabá. É autora de nove livros, entre eles, Entraves (poesia, 2017, contemplado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura), Passagem estreita (contos, 2019, finalista do Prêmio Jabuti), A ossatura do rinoceronte (poesia, 2020, vencedor do Prêmio Flipoços) e Nojo (contos, 2020). Integra o Coletivo Literário Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras – MT.

 

Mais Divanize Carbonieri na Germina

> Poesia
::  revista  ::  uns  ::  outros   ::  poucos  ::  raros  ::  eróticos&pornográficos  ::  links  ::  blog  ::