©andré hoff | casa mário de andrade 
 
 
 
 
 
 
 
 




3.2 O mal que estava ali



As cidades de Le Corbusier são fantásticas. Seus planos diretores para São Paulo, Montevidéu, Paris, todos, são visão de um futuro que ainda não se consolidou. A única cidade projetada por ele, levada a cabo, mas sem a grandiosidade de arranha-céus e sem a maravilha dos grandes vãos, pilotis e avenidas — para carros — é Chandigard, na Índia. Mais que Gropius ou qualquer outro arquiteto do século XX, Le Corbusier foi e continua sendo marca de modernidade, um ícone dela, seu melhor representante, e muitas vezes uma espécie de condutor. Em filmes atuais, em cartazes, em ficções, encontramos o discurso de Le Corbusier, quer como mostra do como pode ser um mundo mapeado pelas forças extremas da direita, por governos totalitários, que igualariam as pessoas e tirariam do homem justamente o que uma convenção nomeia humano, quer como representação dos discursos da esquerda, que igualariam todos os homens, os quais morariam e viveriam próximos uns dos outros, próximos dos locais de trabalho, próximos a parques e ao lazer, mundo que, por convenção, seria considerado máquina. São duas faces de uma mesma fantasia, extremamente presente nas grandes cidades, em discursos variados, no próprio modo de pensar a sociedade moderna. Nos textos de Mário, muitas vezes sua descrição das cidades grandes lembra um croqui de Le Corbusier, uma fantasia do mundo moderno, todo máquina, ou todo asfalto ou todo arranha-céus, no dizer de Mário. (O prédio mais alto do Brasil foi durante décadas o edifício do antigo Banespa, bastante simplório para os padrões americanos e asiáticos, por exemplo, de "arranha-céu". Mas imaginemos o que foi a mansão Martinelli, no Centro de São Paulo, na década de 1920-30.) Na narrativa Balança, Trombeta e Battleship, mesmo que São Paulo tivesse muito de Londres, o prédio mais alto de Londres na década de 1920 era a torre do parlamento, também tímida em relação às previsões de Le Corbusier e dos futuristas. Mas, supondo que São Paulo tivesse muito de Londres e que fosse uma cidade "moderna" na famosa acepção ou não de modernidade de Walter Benjamin, era uma cidade pequena45.De qualquer forma, Battleship deixa para trás a cidade para encontrar "ruelas sem calçamento que rodeavam o prado" e "bosquetes esparsos de arvoretas plebeias, a faixa branca de uma rodovia bem tratada" e, voilà, a "jungla selvagem".

A visão do mundo não europeu pobre, perigoso, com florestas vastas e impenetráveis, permeia muitos discursos do homem europeu e talvez não fosse possível encontrar um ponto de partida que fundasse esse discurso. A primeira peça de seda chegou a Roma por volta do ano 100 a. C. e durante séculos a Europa importou do resto do mundo animais, alimentos, preciosidades, escravos, etc. Juntamente com uma visão sobre a luxúria do Oriente, por exemplo, está a visão de um mundo violento, exótico, estranho, selvagemente belo. Talvez o estudo mais complexo sobre o tema esteja na obra de Edward Said46 e não é caso de comentá-lo aqui, porém há muitos textos atuais que discutem a visão do europeu também sobre, particularmente, as Américas47, sob um prisma similar ao de Said: uma invenção da Europa. Também não é caso de discutir o contexto que permitiu a construção desses discursos, mas não custa trazer à memória que o Brasil, desde o período do achamento, foi fonte de inúmeras visões sobre suas fantásticas matas. A floresta em São Paulo — não tão absurda assim se pensarmos na Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, que é a maior área de floresta do mundo no meio de uma cidade, ou se pensarmos em Curitiba, por exemplo, que tem trechos de matas intocadas em vários pontos da cidade — chega a ser ironia fina no texto de Mário. Seria uma lembrança da Amazônia de suas fontes para Macunaíma, um lugar mítico, onde o maravilhoso, o fantástico ou o mitológico é possível? Seria um afastamento ao contrário do que ocorre na Bíblia, pois a punição é o afastamento do Éden — e de Deus — e não o banimento para uma floresta? Seria a oposição, constante na Literatura Brasileira, entre cidade e campo? Ou seria somente a constatação histórica de que não há lugar para homelesses48 no Centro? Tudo isso ao mesmo tempo? Mas fato é que Battleship neste momento da narrativa se encontra numa floresta, de onde vê campo e um "burro pastando". Esta passagem — a correria atrás da menina — que faz com que o rapaz sofra um "sentimento de perda que doeu muito", pois Battleship era "desacostumado de sofrer" (ou seja, afastado do mundo real das paixões, ele não pode sofrer, pois não conhece o gosto do sofrimento), remete-nos a outras correrias de cunho semelhante, como as mitológicas gregas, que ora acabam em desgraça, ora em conquista. A corrida é um tipo de luta erótica e por vezes sem vencedor. Já a imagem da velha "amulatada" nos remete a uma imagem cristã — embora apócrifa —, a de Ana a ensinar Maria. Porém a senhora pouco tem de professora, sendo a exceção o fato de ter mostrado às meninas um pouco das artes da mendicância, que é mais uma das ironias do processo do psicopompo, do professor, de Hermes, de Prometeu.

Então, Battleship estende os doces como se estende comida a um cão abandonado ou como se estende um adereço brilhante para um nativo da terra recém descoberta. O que a língua separa pode ser unido por outros sentimentos, incluindo o de profunda gratidão.

Se o nome das meninas representa algo na narrativa, afora um jogo meramente fonético, inusitado ou incoerente, Trombeta, nesse momento, pode bem ser aquela que anuncia a chegada do moço, anjo ou demônio. A questão de Battleship ser o anjo já foi aventada, mas ainda não a possibilidade de ser o demônio de tantas histórias populares — comuns em várias sociedades —, do diabo que chega como um estrangeiro ou viajante que muda a vida das pessoas, muitas vezes seduzindo uma mulher ou a levando embora. Há nesse momento da narrativa um adendo que explica a presença das três mulheres no lugar e também seus nomes estranhos. Os nomes não são pouco peculiares apenas para Battleship: são apelidos incomuns no Brasil, o que reforça a ideia de que há realmente um peso mais que semântico neles, um apelo de um discurso de peso que os atravessa, justamente o que é discutido ao longo deste texto.

Battleship encontra uma família, bem diferente da sagrada família da iconografia cristã, com pai, mãe e filho. Pela primeira vez pensa em dinheiro como uma "precisão constante e não apenas como precaução imediata". Compra presentes, leva-os e os deposita como fosse um rei mago aos pés de Trombeta, a chorar de emoção, mas diferentemente dos reis magos, Battleship se vê; então, não reconhece o sagrado na menina, o que leva a crer que se presenteia a si mesmo. Então Trombeta sente "pela primeira vez o sentido da gratidão", vivendo, como o rapaz, muitos sentimentos pela primeira vez. Nesse momento, ela também é despertada de um torpor, de um ser "pior que irracional". Eva vê-se que está nua e precisa improvisar roupas de folhas ou peles. Nesse momento, os dois notam "que nunca tinham sido felizes": eles descobrem o prazer da "dádiva", como um "sol macio". Este trecho antevê a outra descoberta, a do desejo sexual, mas ela também faz parte de uma corrente de descobertas pessoais. Em outras esferas, os textos de Mário (até mesmo os pessoais) descrevem descobertas e deslumbramentos: ora Macunaíma descobre um mundo (à Corbusier) de máquinas, ora Elza descobre um universo estranho, de afeição e de desejo genuíno pelo que desprezara. Da mesma forma, Nísia49 descobre, na dor, na solidão, numa espécie de banimento, a solução — infeliz — para suas dores. Um discurso muito forte de banimento, aliás, percorre todas essas narrativas:


  • Nísia é como que banida de sua terra natal e vai para o centro do mundo, mas lá deveria viver melhor. O território de São Paulo, de Nísia, é deveras semelhante ao território de Trombeta;
  • Trombeta e Balança vivem um banimento em vida, morando numa floresta;
  • Macunaíma precisa ir à cidade tentar recuperar a Muiraquitã, mas retorna infeliz e, como Hércules, traído, morre após tantos trabalhos;
  • Battleship também é uma espécie de banido, em vários sentidos — e o que vê refletido nos olhos da menina é isso.

O banimento é a distância, triste e solitária. Talvez o melhor exemplo dessa tristeza na literatura erudita seja ainda Ovídio, mas também no mito a distância é triste, pois é a marca do afastamento, tanto de Deus quanto da terra natal50. Então, Trombeta e Battleship unem-se, sem saber, com o mesmo sentimento de pobreza, de infelicidade, de afastamento, de solidão.

É possível crer numa segunda guinada do texto, a partir desse momento. Acabado esse rito de passagem, tem-se início outro, mais complexo, que envolve mais uma personagem, Balança. Enquanto Battleship lava Trombeta, existe camaradagem, amizade, a conjunção possível após as descobertas em reflexo mútuo. Mas os olhos de Balança veem algo mais, pois a nudez não pode existir sozinha, pois é a marca do pecado. Há uma nova perseguição, mais erótica porque mais nua, mais erótica porque mais "hirsuta" do dizer do narrador para o tipo de cólera sentida por Balança, uma cólera que é também dúvida. É sua vez de viver a dúvida e de viver a descoberta. Não nos esqueçamos de que sua amizade com Trombeta iniciara igualmente após dois confrontos, após uma batalha sem vencedores, o que também tem algo de mítico. A disputa de Gilgamesh com seu inimigo, no épico sumério51, acaba em amizade que só a morte separará. E nesse momento, dessa luta, há o "deslumbramento", um jogo íntimo de um mundo "longe". 

É formado o triângulo amoroso. É um triângulo escaleno, por mais semelhantes que possam ser seus componentes, entretanto é um triângulo clássico: três vértices, três interesses distintos, complexos, ambivalentes, cingidos. Balança e Trombeta são meio irmãs, meio amigas — e a amizade de mulheres como elas (e como a de Nísia com sua ex-escrava) dariam, por si só, um texto à parte. Paralelamente, Trombeta é a encontrada por Battleship e é aquela que recebe suas dádivas e é ainda aquela em que ele se vê (e ela nele), mas é com Balança que Battleship fica em "aguda indiscrição". 

Temos uma segunda situação, tão delicada quanto a primeira: aqui há também um encontro, mas diferente do encontro com Trombeta. Aqui, o vestido azul "disfarça a virgindade que eles tinham perdido na água". Surge um pequeno porém inquietante indício de desejo proibido, pois Battleship tivera em princípio "o desejo de prestígio e de apadrinhar, isso apenas"52. Ocorre que, assim como há "homens e mulheres neste mundo", há homens e mulheres nesse mundo que nos são interditados. 

Numa primeira leitura, pode ficar a insinuação não muito agradável de pedofilia e talvez a sucessão de palavras "menina", "meninas" transmita esse sentimento. Battleship já era um jovem cavalheiro e as meninas, embora jovens para os conceitos atuais, estavam em idade núbil. E veio o turbilhão. Em termos freudianos, a rejeição, o luto, a dor.



4 Freud e a máquina



O interesse pela obra de Freud não foi infenso aos interesses estéticos de Mário de Andrade. Não foi o único, pois a nova ciência inseriu-se violentamente na sociedade, tendo muito mais sucesso que outras, como a própria Linguística. Como observou Bakhtin, em obra publicada em 1927, com a assinatura de Voloshínov:


O sucesso da Psicanálise nos amplos círculos da intelectualidade europeia começou ainda antes da guerra53, mas [sobretudo] no pós-guerra, sobretudo em países da Europa e nos Estados Unidos. Pela amplitude dessa influência nos círculos burgueses e intelectuais, a psicanálise há muito superou grandemente todas as correntes ideológicas de sua atualidade (...)54.


Completando que talvez seja a "expressão mais nítida e ousada" das "aspirações ideológicas da filosofia burguesa"55.

É interessante cotejar essa observação de Bakhtin (ou de seu círculo) com outra, dessa vez de Mário de Andrade, em carta aberta56 ao editor do Diário Nacional, datada de 1927, sobre as críticas feitas a Amar, verbo intransitivo:


O livro está gordo de freudismo, não tem dúvida. E é uma lástima os críticos terem acentuado isso, quando uma cousa já estigmatizada por mim dentro do próprio livro. Agora o interessante seria estudar a maneira com que transformei o lirismo dramático a máquina fria de um racionalismo científico. Esse jogo estético assume então particular importância na página em que "inventei" o crescimento de Carlos, seguindo passo a passo a doutrina freudiana57.


Há nesse discurso de Mário não o que poderia parecer irreverência, mas um novo riso. Atravessando sua tentativa de desvendar um país, vemos o descrédito, pois afinal que seriam, mesmo, consciente, inconsciente, subconsciente numa realidade tão vasta como a de cultura? Porém, Freud faria parte dos discursos, para neófitos ou não em relação aos estudos freudianos, exatamente como ocorre hoje quando vulgarmente se diz que as pessoas foram "rejeitadas", que têm "traumas", que são "neuróticas", etc. Essas preocupações parecem ter seguido os passos do Autor, em sua procura por uma estética pessoal, brasileira ou não, tanto que nos contos de Primeiros contos, as considerações freudianas estão lá, para mais ou para menos, mais ou menos claras (compare-se a obviedade da descoberta do pênis em Tempos de camisolinha, a concepção muito semelhante à freudiana para a identificação em Frederico Paciência, as questões sobre Complexo de Édipo em Peru de Natal e outras menos claras nos demais contos, como O Poço, em que as preocupações sobre culpa e medo foram expurgadas na última escrita).

Há duas possibilidades de se fazer leituras freudianas em BTB: a) imaginar que os discursos freudianos percorrem o texto intencionalmente, ou seja, que as leituras de Mário tiveram intenção aberta no texto. Tal caminho não pode perder de vista o fato de que o texto tem rascunho da década de 1920 e que os discursos sobre psicanálise há muito já ultrapassaram os limites dos discursos primitivos de Freud. Se Freud, como deseja Foucault, é transdiscursivo, ou seja, se a partir dele, outros discursos se constroem, isso não pode passar despercebido ao analista de Mário; b) imaginar que os discursos da psicanálise, principalmente os freudianos, atravessam o texto de Mário, assim como os discursos marxistas e os kantianos, ou seja, como quaisquer outros, visto que Mário é um Autor que produziu principalmente entre as décadas de 1920 e 1940.

Num triângulo amoroso, seria interessante discutir a rejeição e a projeção, para quem desejasse seguir o caminho "a". Não é pretensão deste trabalho, infelizmente. E entendemos que os apontamentos feitos aqui dariam margem para várias teses inteiras.



5 Uma narrativa metafórica?



Antes de se iniciar a discussão, cabe uma pergunta que pode parecer absurda: BTB é uma narrativa "propriamente dita" ou é "metafórica em absoluto" tal qual narrativas como História do Olho, de Bataille, dita nonsense ou surreal, como pede a crítica? É como Da cabeça aos pés, de Joe Orton, absolutamente política na melhor tradição de Swift? Ou ainda é antevisão das narrativas da vanguarda francesa típicas dos anos 1950 em diante, com total desconstrução da noção de tempo e de espaço? Há uma história propriamente dita ou — como nos ensinou a teoria literária que se fragmentou em milhões de listas taxonômicas — um enredo? E não interessa discutir aqui se a narrativa é uma pequena novela, um trecho de um romance inacabado ou um conto, justamente porque, hoje, é irrelevante tentar algo nesse sentido. Caberia aqui um comentário de Barthes sobre a ficção: "Chegamos a um ponto da modernidade em que é muito difícil aceitar inocentemente a ideia de uma 'obra de ficção' ; nossas obras são doravante obras de linguagem; a ficção pode passar por elas, de viés, presente indiretamente58". Tal comentário não se encaixa como uma luva para Mário porque ele se apropriava abertamente de situações da vida real para construir seus discursos narrativos — ou críticos — e sim cabe porque vivemos um momento de discussão acadêmica pós Barthes, pós Foucault, pós Derrida, etc.

De qualquer forma, até quando repete situações já discutidas em outros textos ou quando deixa claro em demasia as fontes de suas inspirações (o que para nós não interessa nesse ponto da análise, mas talvez interesse para quem faz crítica genética, e ainda para biógrafos, historiadores, etc.), é um dos textos mais complexos no vasto projeto discursivo de Mário de Andrade: suas camadas nem sempre são perceptíveis e somente após verificação do intrincado jogo de discursos é que se pode perceber a transparência de uma sobre outra como se o Autor houvesse dispostos inúmeros tecidos leves um sobre o outro, sendo que se é permitido notar a existência de todos e ao mesmo tempo de um só. Também discutir inacabamentos não interessa. A única impossibilidade para uma discussão séria poderia ser justamente a edição crítica, que permite que o estudioso vá para lá e para cá, ora tomando a narrativa "final", ora tomando os primeiros rascunhos como base de discussão. Mas o texto tem forma — tanto que possibilitou uma edição que permitisse ser tomado como "conto" — e é a partir dele que se construiu este texto. Então, a pergunta (semelhante a uma provocação) que se faz é a seguinte: se BTB é um texto metafórico, é uma metáfora para o quê? É um texto "de formação", como se diz de Macunaíma ou seria um texto sobre o amor?

Primeiramente, vale fazer uma pequena e quase involuntária análise do que se diz sobre Macunaíma. É sabido por todos que o livro de Mário foi dedicado a Paulo Prado, amigo íntimo do escritor e principal incentivador da Semana de Arte Moderna. Oswald de Andrade disse que "Retrato do Brasil é o glossário de Macunaíma"59. É sabido que Macunaíma foi publicado um pouco antes de Retrato do Brasil e também que Paulo Prado ainda não publicara seu ensaio por pudor ou receio. O texto de Paulo Prado é de 1926; a publicação ocorreu alguns meses após o lançamento de Macunaíma, que ocorreu um julho, mais precisamente. O prefácio de Mário, referindo-se ao que viria a ser o texto de Paulo Prado é datado "1926". Não se pode precisar até que ponto, realmente, a obra de um tenha influenciado a do outro assim como não se pode precisar até que ponto um acreditava nos discursos do outro. De qualquer forma, façamos um brevíssimo resumo da obra mais conhecida de Paulo Prado: tirando-se as descrições sobre as belezas brasileiras e as referências eruditas sobre viajantes, personalidades, números, temos que o Brasil — e por extensão o brasileiro — seria uma fusão da luxúria com a cobiça. O português, melancólico, teria vindo ao Brasil e se deixado levar pela fome das riquezas. Influenciado por um poder "natural", teria se envolvido com índias e com negras, o que explicaria a formação racial do país, enfraquecida por tantas misturas. Já os Estados Unidos seriam fruto de um inglês voluntarioso que, com trabalho e fé, ajudou a formar o país60. Não discutimos Macunaíma e sim BTB, mas, como mencionado, BTB teve sua gênese à época da publicação de Macunaíma. O que teria mudado da gênese para sua forma "definitiva"? Não podemos precisar, mas o conjunto de discursos sobre o Brasil (comum em Paulo Prado e em tantos outros intelectuais61) parece atravessar também BTB.

Se tentarmos procurar apenas uma resposta para o texto de Mário, possivelmente não a encontraremos. Nenhuma corrente atual de crítica sequer cogita tal hipótese. Porém, podemos investigar o texto de Mário (lembrando que aqui "texto" é quase sinônimo para "discurso"). Evidentemente, pode saltar aos olhos em BTB a preocupação com a relação amorosa, assim como pode saltar aos olhos a preocupação com o encontro com o outro, uma questão, portanto, de alteridade, e assim por diante. Se formos nos basear pelas intuições de Telê Porto Ancona Lopez, veremos que a preocupação de Mário era transformar em literatura um encontro da vida real. Ora, em Mário isso é um problema realmente sério, por vários motivos: a) nenhuma disciplina conseguiu definir exatamente a diferença entre o real e o não real; b) nenhuma corrente conseguiu definir o que era literário e não literário; c) as discussões sobre o histórico e o não histórico costumam ser improfícuas; d) as questões textuais, em qualquer nível de "texto" são díspares o bastante para não nos indicar saídas simplistas. De qualquer forma, temos um texto, temos um Autor e temos documentos históricos sobre uma viagem, sobre um encontro e sobre uma produção literária (sem questionarmos qual seria a "real" intenção desse Autor). Se BTB é o tornar literário um encontro, numa viagem qualquer, isso esgota nossa análise e nada precisa ser discutido.

Num outro nível, como abordado nas duas primeiras partes deste texto, se BTB é a intertextualidade com a Bíblia e com Vieira, isso também esgota nossa discussão.

Em outra esfera, a discursiva, parece haver interdiscurso do texto de Mário com outros discursos, e parece residir aqui nossa dúvida: com quais e por quê? Como vimos acima, o discurso de Paulo Prado disse o que disse e parece ter provocado em Mário interesse, o que pode ser avaliado em cartas de Mário a Paulo Prado, em outras cartas de Mário, em textos críticos, em textos sobre Mário e ainda em outros textos da mesma época. Pensar o Brasil em suas origens, pensar numa formação para o Brasil, pensar o Brasil com raízes, tentar desvendar o Brasil. Tal discurso não é novo. Percorre séculos, mas a vontade da verdade (numa acepção foucaultiana) do século XIX para o XX tentou taxonomias novas para a História e também para as estruturas orais. Ainda hoje, a vontade de se descobrir a "verdadeira identidade do Brasil" é muito forte. Vejamos um trecho recente sobre a questão:


Em vez de analisar o Brasil a partir de seus antagonismos econômico-sociais, o autor de Os Sertões, na tentativa de entender a falta de "tradições nacionais uniformes" (OS:14) empolgou-se com um esquema explicativo baseado numa teoria geral da civilização, de cunho étnico ou "racial". Euclides testemunhou, como resume Gilberto Freyre, "um choque violento de culturas: a do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e parada dos sertões". Esse choque se enquadrava em uma visão da história, em que Euclides, como contemporâneo do Imperialismo por volta de 1900, compartilhava da convicção social-darwinista de que o avanço da civilização resultaria no "esmagamento inevitável das raças fracas pelas mais fortes"62.


Willi Bolle percebe incoerências — aos olhos de hoje — no pensamento do autor de Os sertões. Ele lembra que os românticos haviam tentado a construção de um passado para o Brasil e que Euclides tentou a construção de um brasileiro "verdadeiro", o homem do sertão. O pensamento de Bolle não admite a tentativa de encontrar um mito formador, não permite a visão de uma nação pela perspectiva de "antagonismos" ou de "forças antagônicas", e não permitiria, ainda, a discussão da construção do Brasil como uma nação de três raças. De fato, os discursos atuais não permitem nada disso. Hoje, pensa-se que todas essas questões se atravessam entre si, deixando de lado a possibilidade de uma visão monológica da história, da antropologia, da sociologia, etc. Entretanto, o mesmo discurso que refuta todas essas ideias admite a hipótese de haver um romance "de formação" para o Brasil, Grande sertão: veredas.

Os textos de Mário tentam uma construção do Brasil, ora pela língua, ora pela história tradicional, ora pela oral. Há, por vezes, intuições maravilhosas que se aproximam do pensamento atual, de diferenças impossíveis de serem descritas ou taxonomizadas. Prova disso é quando mescla vocabulários de várias partes do país e quando tenta um giro alucinógeno pelos mais distantes rincões do Brasil para mostrar o quanto o país é grande, vasto, distinto e múltiplo. O reverso dessa moeda é justamente o lugar-comum que traz junto. José de Alencar também tentara processo semelhante, sem ter conhecido a Amazônia, por exemplo. Mas não podemos exigir de Mário um posicionamento da crítica atual: as ideias de diversidade, dissolução da oposição entre arte erudita e popular, o multiculturalismo, etc., são recentes.

Diante desse quadro não tão simples, é possível pensar BTB como mais um texto de formação, uma tentativa de encontrar ecos primitivos que explicariam a formação do Brasil ou, ao menos, de São Paulo. Num dos "tecidos transparentes" que formam a narrativa, temos que Battleship é justamente um estrangeiro — e não um estrangeiro qualquer, pois é inglês, representante do povo que formou em parte a grande nação americana. No Brasil, encontra negras. Por mais bem intencionado que esteja, ele encontra negras, ingênuas como as índias dos primeiros colonizadores (repare-se na diferença: para os americanos, os textos indicam outro vocábulo — pilgrim ou pioneer). Ao travar contato com elas, desejando ser uma espécie de padrinho, acaba por se apaixonar ou por descobrir a sensualidade. Nesse estranho Éden — algo do imaginário do século XIV — , ficam claras outras vontades, outros desejos.

Paralelamente, temos não apenas uma alegoria da formação do Brasil como também outra particular, a da formação de São Paulo, cidade e estado. Sabemos todos que as maiores fazendas de café estiveram na região hoje denominada Sudeste, mas que o dinheiro dessa riqueza centralizou-se em São Paulo. Ao mesmo tempo, diz-se que São Paulo, principalmente a cidade, deve muito ao imigrante, de várias partes do mundo. E o que temos em BTB? Outra alegoria sobre o início das coisas: imigrante + cidadão "autóctone". Porém, muito para além do discurso de Paulo Prado, hoje absolutamente discutível, o de Mário vai bem mais fundo: sua alegoria é ao mesmo tempo Gênese e Apocalipse, alegria e tristeza, felicidade e melancolia, rito de passagem, epifania e ainda uma descoberta (freudiana?) de que não se deve prender ao passado.

Aqui entra — deveríamos dizer "finalmente" — o que ficou fora do texto: a preocupação com o subtítulo, o descobrimento da alma. Primeiramente caberia a indagação: por que o uso de "descobrimento" e não o uso de "descoberta"? São palavras que poderíamos dizer sinônimas, de qualquer forma, significando "tirar o véu", "trazer à luz", "encontrar". Mas Mário parece preferir a mais corrente. Já verificamos que tanto Battleship quanto as meninas são descritas como aqueles que descobrem coisas. A ênfase é dada para o rapaz, mas as moças também passam por um extenso território de encontros e descobertas, físicas e psíquicas. Paralelamente, talvez haja um jogo semântico entre "descobrir", sinônimo para "encontrar" (de supetão ou não) e "desnudar-se", o que ocorre com os três. Em outros níveis, temos a evocação a outra descoberta, a do Brasil, já aludida acima. Porém, o vocábulo é acompanhado por uma expressão, "da alma". Separando-se a locução e preocupando-nos somente com o substantivo, temos que o vocábulo é utilizado em muitos sentidos: religiosos, coloquiais, psicanalíticos, etc. Para não fazermos um levantamento exaustivo da questão, finalizamos com uma pergunta: que alma, mesmo, é que se encontra, a de Battleship, a das meninas, a do país, a da cidade, a da cultura?

Raquel Rolnik analisa os graves problemas paulistanos da década de 192063. O dinheiro estava se deslocando do café para outros produtos, a cidade crescia, a despeito de um projeto bom de infraestrutura, a cidade parecia caminhar mais depressa que a engenharia, a década de 1920 estava espremida entre a gripe espanhola e a Queda da Bolsa de Nova York, a gestão da cidade não sabia o que fazer com tantos pobres, cortiços, favelas, algo que ecoa até hoje no modo como a cidade de São Paulo gestou-se a si mesma, sempre a partir do olhar e do desejo dos donos do poder. Se por um lado a cidade se maravilhava com a Avenida Paulista, no mais alto dela, e posteriormente com o surgimento de arranha-céus (a cidade era comparável a Buenos Aires, Chicago, Nova York), por outro tinha de lidar com um resquício colonial terrível: onde colocar os pobres? E até mesmo onde colocar a classe média emergente? Se o projeto de Mário de Andrade era algo alegórico para essa cidade que crescia a olhos vistos, então BTB pode ter essa leitura: a de um texto de formação não para um indivíduo mas para uma comunidade.



6 Ave, palavra!



A Linguística pós Sausurre nos alertou sobre as diferenças entre o texto escrito e o oral. Centenas de milhares de trabalhos terão sido escritos no decorrer do século XX e seria, hoje, absurdo fechar os olhos para a grande rede de discurso que se formou no interior da disciplina a que chamamos, justamente, Linguística. Embora os discursos sobre estas diferenças não estejam consolidados, o professor de literatura e de língua conhece-os bem. Devido a esta realidade — vasta o bastante para não caber aqui — estudos sobre vocabulário tem caído em desuso, exceto os levantamentos vocabulares dentro de áreas específicas da Linguística e exceto "dicionários" sobre a obra de autores como Guimarães Rosa.

Hoje, parece anacrônico tratar do vocabulário, mesmo na poesia, uma vez que os textos poéticos ganharam uma liberdade tal que fez grande parte do próprio público leitor — e do mercado de publicações? — preferir narrativas. No caso de Mário de Andrade, porém, ainda parece relevante tratar do vocabulário de seus textos, dada a força discursiva de suas escolhas, em vários níveis. Em seu projeto artístico, o Autor não descuidava de amarrar o texto em diferentes etapas e em diferentes patamares, incluindo a escolha vocabular. Em BTB, em particular, a escolha vocabular não vibra apenas sobre si mesma — ela é uma liga com outros questionamentos literários, artísticos, culturais, muito para além do texto. Tomadas isoladamente, podem parecer pequenos gracejos linguísticos, mas é forçoso reconhecer — e forçoso porque nem sempre o gracejo é do gosto comum do leitor, sem desejarmos nenhuma análise psicológica ou da recepção desse mesmo leitor — que o efeito é grande, válido e artisticamente pensado.

A questão vocabular não é nova em Mário tampouco nos textos exegéticos sobre o Autor. Somente seus poemas dariam vários trabalhos de crítica, mas aqui nos debruçamos sobre BTB. Sabemos que o homem Mário era interessado por línguas, em diferentes sentidos: primeiramente, era um homem culto, que dominava vários idiomas; depois era um interessado pelos aspectos que hoje chamamos variacionais da língua; que seu interesse fazia-o recolher exemplos das viagens (listas de seu acervo de textos manuscritos mostram isso); que parte do projeto dos modernos era encontrar o rosto "verdadeiro" também de uma identidade linguística para o Brasil; que Mário, reconhecendo as diferenças entre dois continentes, soube ele mesmo fazer as alterações para tornar mais "palatável" seu texto ao leitor português; entre outras. Talvez essa força "discursiva" vocabular seja um dos maiores fascínios do texto de Mário de Andrade (mesmo quando ingênua) unificadora de seu discurso geral: uma palavra ("gauderiamente", palavra sulista) existe quase que por oposição a outra ("uiara", palavra nortista), mas todas guardam um quê de similaridade64, pois compõem o vasto quadro do que seria o Brasil ou a brasilidade. Em outro plano da narração, algo se aproxima a esta existência pacífica de vocábulos: o encontro de diferentes sujeitos, o europeu e o brasileiro, num mesmo território, algo já mostrado.

O próprio título da narrativa, pomposo o bastante para causar estranheza se colocado par a par com outros títulos de Mário, mescla diferentes discursos. Os vocábulos, arrancados a um discurso de Vieira ou emprestados à Bíblia, são incomuns, em sua acepção religiosa. Há pelos menos duas tensões criadas entre os vocábulos "trombeta" e "balança", de um lado, e "Battleship", do outro. Temos dois vocábulos eruditos e um popular e temos dois vocábulos em português e um em inglês. A princípio, a natureza dessas tensões pode parecer simples, mas a estrutura do conto ilumina tal tensão, relevando alguns segredos interessantes. Como mostrado na crítica genética de Telê Porto Ancona Lopes, os nomes das meninas aludem a uma brincadeira da primeira grande viagem de Mário de Andrade (1927), o que pode ser encontrado em O Turista Aprendiz. Os nomes teriam vindo, exatamente, de uma brincadeira que teria se principiado quando do encontro de um menino chamado Josafá. Não podemos precisar o quanto foi alterado nos projetos de Mário dessa tensão, desse peso, desse interesse. Porém, sabemos que mais de uma década separa o projeto inicial do texto retrabalhado nos anos 1940 e publicado nos anos 1990. De qualquer forma, temos, primeiramente, a consolidação de uma preocupação não apenas moderna mas típica da produção intelectual de Mário de Andrade: a procura de uma identidade brasileira que se oporia, por extensão, a uma identidade estrangeira e principalmente europeia. Não obstante as pesquisas modernas serem tributárias das europeias, houve, sim, entre os modernos a procura por saídas "brasileiras" e investigações acerca do "brasileiro". Mário foi um apaixonado por questões de cunho nacional e suas vastas pesquisas sobre música, dança, expressões populares (as vocabulares), medicina popular, etc., são uma das provas de que ele terá sido um dos principais mentores do movimento moderno no Brasil. Opor nomes em português a um estrangeiro por si só indica uma preocupação com o olhar de fora. Curiosamente, o nome não é francês ou alemão e sim um nome inglês65. Como mencionado antes, o Brasil manteve até a década de 20 do século passado fortes ligações comerciais com a Inglaterra. Embora isso sequer seja mencionado em toda a narrativa, um personagem à margem dessa realidade, que apenas conhece o café por seu sabor forte e "melhor que o do uísque", gera uma série de possibilidades de leitura sobre o "outro". Talvez sem perceber, o Autor tenha criado um campo discursivo em que seja possível afirmar que há uma esquizofrênica paixão pelo estrangeiro, ora amado, ora repudiado. Battleship pode ser amado por ser terno, por carregar dentro de si um certo amor cristão (que seria semelhante ao das meninas, elas também fruto de uma sociedade cristã), mas também não é nenhum edificante modelo de ética.

A apropriação de coisas estrangeiras não é novidade em Mário e não se dá somente em relação a nomes próprios. No Rio de Janeiro, o marujo amigo de Battleship visita um "fratello", com essa grafia com "l" duplo e não aportuguesado, muito embora a existência cotidiana de vocabulário em italiano fosse típica da cidade de São Paulo e tivesse frequentado o texto de um sem número de modernos, sendo o melhor representante dessa preocupação Juò Bananeri. Mas o narrador não nos indica a origem do marujo, que poderia ser italiano, numa embarcação inglesa, tendo como destino Buenos Aires. Nada haveria de estranho aí, nesse universo cosmopolita do mar. Por fim, o nome Battleship cai bem com a descrição física da personagem, também ele "grande", fazendo ou não alusão à expansão do reino inglês, potência em cujas terras sempre haveria sol. Nas fímbrias dessa possibilidade de investigação da palavra em relação à personagem, temos o tipo de trabalho de Battleship, ser um pickpocket. Nome e designação quase se opõem66: uma representa a grandeza e outro uma deselegante decadência e pequenez. Se analisarmos o verbo "to pick", encontraremos sentidos interessantes, dependendo do contexto: picked a winner seria escolher bem um vinho; pick someone to pieces seria algo como falar por trás; pick from ou pick out of seria algo como separar peça por peça usando os dedos e assim por diante. Mas não há nenhuma indicação desse cuidado em relação à escolha da "profissão" de Battleship nos textos trazidos à luz. Em Macunaíma — e não seria exagero lembrar que a gênese de ambos os textos são da mesma época — há exploração vocabular levada ao extremo: há não apenas as palavras emprestadas a línguas indígenas, o que salta mais aos olhos, como empréstimos de vocabulário (um tanto aportuguesado como permitia a infinita ironia do Autor) de línguas faladas por imigrantes que vieram ao Brasil. Da mesma forma, expressões brasilianíssimas são usadas o tempo todo, literalmente, ganhando forma e discurso novos67 como "engruvinhada", vocábulo ainda utilizado no interior do Brasil.

Paralelamente, "trombeta" pode ser tomada em outras acepções, como a de "anunciação". Da mesma forma, "balança", o que equilibra, ou o que dá o peso correto, ou o que "julga", na acepção bíblica68. Battleship, como já citado, é o mais poderoso dos navios de guerra (ao menos, antes dos porta-aviões). Embora a construção da personagem aponte para um rapaz sensível (malgrado sua vivência nas ruas), ele é inglês, representante de um país forte, a maior potência do mundo à época da escrita da narrativa. Algumas vezes, a intuição do Autor é fascinante: ele percebe que uma criatura pode não carregar as características a ela imputadas por sua origem, mas em outras ingenuamente descreve as personagens como fruto de seu meio, sem possibilidades de variação emocional que aquela ditada pelos manuais etnográficos ou pelos lugares-comuns ainda em voga. Ao mesmo tempo que aponta para lugares-comuns sobre o brasileiro, constrói um presídio para as personagens. Seria uma zombaria com os autores que Mário tanto desprezava nos anos 1940?

A vizinhança de algumas palavras emprestadas do inglês recobre o texto como uma névoa. O rapaz teria servido como "stewart" num navio, como já mencionado, e encontra uma "jungla" fincada no meio de São Paulo. Lembremos que o rapaz se move com certa destreza pela "jungla", como não poderia deixar de ser, pois "jungle" se opõe a "forest" como uma mata que pode facilitar a passagem humana. Os dicionários dão como exemplo as florestas da América do Sul, certamente porque os dicionários nem sempre vão de acordo com a natureza das coisas, e isso devia ser do conhecimento desse Autor absolutamente irônico. Há ainda perdidas nessa névoa situações como "speackenglish" como forma verbal, "arranhacéu" como apropriação direta do inglês, mas com grafia diferente da que seria oficial, "music hall", sem tradução, e outras situações semelhantes. Mas seria interessante lembrar como Mário não se utiliza de vocábulos estrangeiros sem interesse discursivo. Em Amar, verbo intransitivo, p. e., Mário descreve a rica mansão como tendo papel de parede de William Morris. Ele aponta para duas situações: a) somente uma família muito rica usaria um papel de um designer tão famoso; b) a família, porém, não usava um papel de parede de Christopher Dresser, muito vulgar para os padrões aristocráticos paulistas e tampouco um papel moderno, como haveria na casa de Warchavski. Nada, então, é de graça em Mário.

Há as hipérboles eruditas dos superlativos ("virtuosíssima") e a preferência pela forma popular ("magríssima" em vez de "macérrima"), ao lado de formas da oralidade ("milréis" como sinônimo de dinheiro e não uma quantia específica) e ainda formas cujo sufixo deixam dúvida quanto à origem ("sujidade" é popular ou erudito?), afora formas estranhas ("aquó", neologismo da expressão latina a a quo, usada exclusivamente em contextos jurídicos, mas que quer dizer "em jejum", mais ou menos dentro do contexto de BTB). Todas surgem dentro de um plano estilístico curioso e de interessante intuição: podemos não gostar do estrangeiro, mas aproveitamos de tudo um pouco. Guimarães Rosa mais tarde levaria semelhante discurso ao extremo das possibilidades de escrita.

Quanto à sintaxe, vejamos os exemplos que se seguem:

 

1. "depois de Mogi já não havia roça mais"

2. "carecia se descartar daquela sórdida"

3. "pra normalizar inda mais nos projetos anteriores"

4. "banzou muito desempregado"


Primeiramente, observam-se certas liberdades de pontuação, como falta de vírgulas em adjetivas ou excesso de conjunções "e". Também há expressões adverbiais, por exemplo, que deveriam vir entre vírgulas, mas há apenas uma. Nos casos acima, verificamos algumas formas comuns da oralidade, a preocupação com o uso de variados metaplasmos para gerar certo ar ou gosto popular e a mescla com escolhas cultas. Há outros textos ou trechos de textos em que Mário tentou uma linguagem "popular". São exemplos disso Nísia Figueira, sua criada e Foi sonho. Os resultados dessas procuras foram catastróficos ou, ao menos, ingênuos. As diferenças da oralidade para a escrita não estão nas variações de grafia e sim nas pausas, dúvidas, atos falhos, repetições, etc. só possíveis em situações verdadeiras de enunciação. De qualquer forma, foram tentativas literárias, deveríamos frisar, e o resultado em BTB parece muito bom. Há uma oscilação muito interessante e produtiva entre o popular e o erudito, o texto flui e, quando há quebra na cadência da leitura, ela está ligada a uma quebra no enredo. O texto é mais lento ou mais rápido dependendo do interesse do narrador em demonstrar medo, preocupação, etc. Numa carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, datada de 1927, Bandeira fala da leitura de [James] Joyce e do como se impressionara com o Dédalo (sic)69. Nessa mesma carta, ele comenta a leitura que fez de Amar, verbo intransitivo. Muito interessante perceber que havia entre os dois essa preocupação, a de trabalhar o nível vocabular do texto com a mesma intensidade de seu discurso.



Conclusões: mitos sobrepostos



O colar é irregular, feito com águas marinhas de cores sutilmente variadas, de tamanhos variados. É um círculo com pingentes diferenciados, porém ligados por uma ideia, a de algo moderno. Não é decô, a despeito dos traços retos e simples, muito menos nouveau ou ainda futurista. Pode e não pode ser comparado com os traçados retos das obras de Corbusier e Gropius, pode e não pode ser comparado com a poesia de Blaise Cendrars ou Akhmátova, e por isso angustia. Foi pensado por uma italiana, no Brasil, que se deixou levar por um ideário — um discurso, como querem alguns, uma ideologia como já ordenou a moda — europeu de modernidade, mas com pedras brasileiras. Um colar de Lina Bo Bardi. O colar é uma mistura, enfim, só possível, todavia, por tudo que atravessa sua concepção ou sua vontade de existência. Ele é coetâneo de BTB.


*


A epifania é evidente para os três jovens "lavados pela água do córrego de chuva". Há uma descoberta mais importante que o próprio sexo para os três. Há a descoberta da vergonha (como lemos nas traduções do Gênesis) e ainda a do ciúme, e talvez a do repúdio (Trombeta chora sua primeira lágrima feminina). O banho — e a limpeza — das meninas é um rito de passagem para uma vida adulta, mas que se entenda que essa vida não é a da descoberta da possibilidade da penetração e sim a da descoberta de algo mais profundo, em outro nível do sujeito, que não diz respeito somente à carne. Mas se o banho é um rito de passagem, então Battleship toma as vezes de psicopompo, de sacerdote, de mestre, de guia. Se Mário utilizou como recurso de produção de seu texto um diálogo com Vieira e com a Bíblia (o que parece irrefutável, embora não saibamos até que nível de interesse), Battleship nesse momento pode tomar a forma de um anjo do senhor, mas não do anjo que protege a passagem para o Éden (pois que estão no Éden) e sim do anjo que escolhe o joio do trigo no discurso de Vieira. Tal atitude professoral, em outro nível, também lembra a do próprio Autor, pelo pouco que sabemos desse Autor, já que o que sabemos dele são construções textuais, muitas vezes de sua própria lavra.

Um amigo muito observador me disse que Battleship, se um anjo, teria mais a ver com o melancólico anjo de Dürer. Trata-se de um caminho fascinante de análise, que fugiria da proposta deste texto.

A vontade do começo, o desejo de se encontrar a primeira voz, matriz de todas as outras é invenção do homem, muito anterior a Mário. Utilizar o Éden ou o Apocalipse para falar do começo não é novidade. De qualquer forma, a lógica "edênica", ou seja, de um começo para as coisas, não faria sentido sozinha, pois não faria sentido exigir do texto de Mário a falta de distorção, comum em suas narrativas (comum no expressionismo, diga-se de passagem, e comum nos textos metafóricos/alegóricos). Como mencionado, há muito mais nas distorções de Mário. É um texto literário, afinal de contas, e não um "ensaio", como propõe Paulo Prado de seu próprio texto.

As sobreposições textuais e discursivas são explosivas num texto como Macunaíma. Para não falar em estratos, o que pareceria serem os textos separados como fossem eras geológicas, há em Macunaíma uma mescla discursiva muito intensa70 há o texto erudito (o da tradição, o do homem moderno que tenta trazer para o Centro o texto, em grande parte das vezes oral, do outro, índio, negro, estrangeiro), o texto oral (em todos os seus prismas, o do dia a dia das grandes cidades), o coletado na grande viagem ao Amazonas, o que a gramática considera inaceitável, o que o moderno considera melhor ou simplesmente curioso, etc. E não temos apenas o erudito e o oral dessa forma. Há o texto erudito da religião, da lei, da escola, do jornal, etc. e cada um deles impregnado e recortado por inúmeros outros, inumeráveis. Esse uso intenso também se encontra em BTB, menos aparente que em Macunaíma, como não poderia deixar de ser.

Há também semelhança mais que curiosa entre BTB e Nísia Figueira, sua criada e Macunaíma. As três narrativas (em forma de rapsódia, idílio, conto, não importa, pois que as narrativas de Mário absorveram exemplar e destemidamente outros discursos, quer em sua forma narrativa quer em sua forma de acontecimento) ombreiam as dos mitos fundadores. Lembremos o interesse do Autor pela cidade de São Paulo e lembremos que as três narrativas (guardadas as devidas proporções para Macunaíma71) referem-se à cidade, já como grande, rica, influente, múltipla.

Quanto aos nomes das personagens, percebe-se que Balança surge menos que Trombeta nos textos sagrados e em Vieira, mas a ideia de balança parece onipresente na narrativa de Mário: uma balança para o bem, outra para o desencadeamento da descoberta sexual, outra para a questão cidade versus subúrbio, etc.

A trombeta ora é soprada por anjos que anunciam a grandeza divina ora por homens que mostram a grandeza de exércitos (o que dá na mesma se pensamos no povo eleito). Difícil saber se o Autor terá avaliado isso quando emprestou a uma menina "verdadeira" seu apelido efêmero. Também não saberemos até que ponto uma seria mais "trombeta" (poder, desafio, força de derrubar muralhas) e outra seria "balança" (justiça, poder divino, a decisão final para a segunda morte). Embora "Juízo Final" fique razoavelmente claro se pensarmos no mau humor de Mário em relação à rainha do café, o termo aparece uma única vez na redação final de BTB, de forma enigmática: na ingenuidade de Trombeta que revela o apelido de Maria a Battleship, que também não poderia entender o que significaria "Juízo Final", dado o seu parco conhecimento da língua portuguesa.

Poderíamos deixar de fora a questão autoral de BTB, pensando na provocação barthesiana sobre a morte do Autor, mas em nosso caso ela é tão presente, que caberia elidir o excesso de zelo e pensar numa função Autor, como quis certo pensamento de Foucault72. Mário deixou tantas pistas sobre a questão que seria interessante interpelá-las. Como já mencionado, os nomes encontrados em BTB referem-se a uma brincadeira ocorrida na viagem ao Amazonas. Deixou-se de lado a possibilidade de entender as meninas como as companheiras de viagem, pois isso já foi discutido com mais propriedade por Telê Porto Ancona Lopez.

Não há nada de absurdo na profana investigação de Mário sobre esse Éden. É bem possível um matagal na cidade de São Paulo como ainda é possível no Rio de Janeiro, que carrega o mérito de possuir a maior floresta em área urbana no mundo. Também não é absurdo que um homem adulto se encante por uma menina, assim como nada tem de escandalosa a ideia de uma criança ter sido educada à brasileira por uma mulher (embora haja desdobramentos de ordem moral e ética, claro, nisso). Então, a narrativa poderia dizer respeito a uma paixão, a uma descoberta ou ainda a um encontro com o outro, como nos ensinam a discutir tantas disciplinas atuais. Mas o que faz o texto de Mário ir além disso, ir além de outras narrativas dele, como Nísia, sua criada e Amar, verbo intransitivo? Talvez porque a maioria dos abantesmas a circular a cabeça do Autor surjam nessa obra.


*


A visão do Brasil sob o prisma europeu cunhou um rosto brasileiro (comparar com as obras de Spix e Martius, tão citadas por Mário e por Paulo Prado) e isso não devia passar despercebido a Mário. Assim, Macunaíma, por exemplo, é negro-índio retinto e depois branco e louro, de olhos azuis. Em BTB ocorre uma "síntese dialógica dos contrários", como sugere Carlos Alberto Faraco em texto sobre Bakhtin73. Por mais que Battleship encontre na menina suja um espelho — se si —, ele é europeu e seu encontro com o outro (embora imaginemos que ele pudesse haver conhecido tantas pessoas diferentes em seu périplo pelo Mediterrâneo) é notável: ele é o europeu limpo que encontra o brasileiro sujo. Na produção mariodeandradiana não é incomum tal ironia, a de mostrar o brasileiro sujo não em oposição a um europeu limpo e sim um brasileiro sujo em oposição ao próprio discurso de que o brasileiro é mais limpo do que o europeu74. A preocupação dos modernos (e de tantos teóricos que se debruçariam sobre essa questão) sobre o encontro do europeu com o nativo surge mais uma vez, de forma curiosa: Battleship descobre a si mesmo (uma das interpretações possíveis sobre a "descoberta da alma") na figura da nativa, sujeito entre duas etnias, ao menos, e suja. Mas a aparência não é agradável e é necessário suavizar o que a epiderme não permite. De quantas maneiras isso teria ocorrido antes de Mário e continua ocorrendo, tanto no discurso quanto na prática?

Mas é importante frisar que esse "eu" que chega de fora, chega em posição de julgamento. Mário acena com a possibilidade de haver desigualdade entre europeu e brasileiro — e há mesmo diferenças — o que dá ao texto um ar de nostalgia do que nunca existiu.

Paulo Prado diz que, na Índia, "a mocidade portuguesa se ia educando nos vícios e crimes da sedução asiática"75. Em BTB, já temos a mocidade corrompida por uma força natural, quase um eco do naturalismo. Por fim, em Mário parece haver uma dupla proibição, interdição, impossibilidade: a cristã, a da moral, e a natural do homem, que não pode ser feliz. O amor é doloroso, não sorri. A fundação do Brasil, idem. Tememos dizer que a de São Paulo, também.


*


A casa de Guilherme de Almeida está aberta à visitação. A família deixou a casa mais ou menos como era no dia da morte dos donos. É uma casa pequena e modesta, à Rua Macapá, 187, no Sumaré, se compararmos com as mansões em que havia alguns encontros de modernistas. A guia informa que às terças ou quartas era para lá que os modernistas iam. Lógico que, hoje, a casa tem uma lista de tesouros: uma Tarsila, um Guignard, um ou mais Lasar Segall, entre outros pintores conhecidos e outros menos. Mas nos anos 1920 e 1930 era mais provável que a casa tivesse apenas objetos trocados por amigos: a primeira edição de um Mário ou de um Oswald, o retrato feito por cortesia por um pintor iniciante, um objeto trazido a uma viagem de descobertas pela Amazônia, a primeira edição de Ulisses. Ali morou alguém que precisava trabalhar para sobreviver — e muito. Não era alguém que vivia para o movimento. Visitando a casa de Guilherme de Almeida se pode ter uma ideia da vida cotidiana de um "modernista".

Ao passear pela mesma São Paulo, o turista aprendiz pode visitar a Catedral da Sé, começada em 1911. Foi inaugurada nos anos 1950 ainda sem as duas torres principais. Digo isso porque a São Paulo que vemos hoje é completamente distinta da São Paulo dos modernistas, entre o fausto da Paulista e a simplicidade da casa de Guilherme de Almeida.

O pesquisador precisa ficar atento a essas temporalidades. O texto de Mário, iniciado nos anos 1920, levou vinte anos para ganhar uma escrita final e mesmo assim, digamos, inacabada. Os biógrafos de Mário são unânimes em mostrar o vai e vem que foi a vida do homem Mário, entre cargos públicos e a necessidade de ganhar a vida. Em vinte anos, também, difícil saber o que ele terá vivenciado e as mudanças que isso provocou. Outro salto temporal para o qual devemos estar atentos é a década da publicação de BTB. Sendo assim, há de se ter em mente que estamos sempre num terreno móvel quando o assunto é linguagem. De todo modo BTB é um dos grandes textos modernistas, e um dos mais importantes se pensarmos num alegoria para São Paulo, a cidade.



NOTAS



45Sobre esta questão vale a leitura de TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. São Paulo: Cosac & Naify, Duas cidades, 2004. O autor comenta sobre o quanto a São Paulo dos anos 1920 alterou-se devido ao dinheiro do café. Na mesma década, vale lembrar também, houve muitos discursos sobre a grandiosidade de São Paulo em comparação à do Rio de Janeiro. João do Rio apontava São Paulo como um exemplo para o Brasil.


46SAID, Edward. Orientalismo — O Oriente como invenção do ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.


47Sem fazer um levantamento exaustivo dessa problemática, citamos pelo menos três obras interessantes sobre a questão: GAMBINI, Roberto. Indian Mirror — The making of the Brazilian soul. São Paulo: Axis Mundi: Terceiro Nome, 2000. COSTA, Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Rugendas e o Brasil. São Paulo: Capivara, 2002. LAGO, Pedro Corrêa do. Iconografia Brasileira — Coleção Itaú. São Paulo: Fundação Itaú: Contra-capa, 2001. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. (Org.) O Brasil dos viajantes. 3. ed. São Paulo: Objetiva, Metalivros, 2000.


48Preferiu-se o plural para a palavra, a despeito de alguns gramáticos não a aceitarem, no mesmo espírito da produção de Mário.


49Do conto "Nísia Figueira, sua criada". In: Andrade, Mário. Contos de Belazarte. 8 ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1992.


50Sobre a questão do banimento e da distância, ver: QUEIROZ, Maria José de. Os males da ausência ou A literatura do exílio. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito — entrevistas com Jonh Meyers. São Paulo: Palas Athena, 1993.


51Em vários mitos mundo afora há uma luta primordial, em verdade.


52O que retoma a questão: é uma ironia a Jean Valjean?


53Pela data da publicação, fica claríssimo tratar-se da Primeira Grande Guerra Mundial. A nota vale pelo contexto em que foram escritos Macunaíma, Amar, verbo intransitivo e os primeiros esboços de BTB, assim como a primeira grande viagem de Mário de Andrade.


54BAKHTIN, Mikhail. O Freudismo — um esboço crítico. Tradução do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 4. Obs.: hoje, diz-se o contrário; a obra é de Voloshinov e foi publicada como sendo de Bakhtin.


55P. 5, op. cit.


56Publicada em ANDRADE, Mário. Amar, verbo intransitivo — idílio. 17 edição. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.


57Evidentemente, Mário refere-se à noção de catarse proposta por Freud, empréstimo aristotélico. A descoberta — pela dor — teria possibilitado um crescimento em Carlos, o que, na narrativa, é algo rápido em demasia para ser verossímil, afora o fato de que pode ser contestado por um leitor mais atento porque o crescimento de Carlos se dá em ações cotidianas, vagas, imprecisas, de um crescimento que, na concepção freudiana, deveria ser absorvido pelo inconsciente. Na narrativa de Mário, o próprio narrador ri dos termos "subconsciente, inconsciente e consciência", perguntando-se justamente pelo que seria este último. Também coloca em xeque as teorias freudianas, fazendo um curioso e extenso levantamento do pensamento antigo, justamente usando uma ferramenta que Freud terá usado em textos sobre o Complexo de Édipo. Tal riso crítico de Mário, ou melhor, tal discurso, pode ser comparado ao de Bakhtin, que se interroga pelas questões sociais na filosofia psicanalítica (de Freud).


58BARTHES, Roland. O adjetivo é o "dizer" do desejo. In: ___. O grão da voz: entrevistas. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


59In: Retoques ao Retrato do Brasil, crítica publicada originariamente em 1929 em O Jornal, no Rio de Janeiro. Cf. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. 9. ed. Organização de Carlos Augusto Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 229.


60Cf. edição citada.


61Para citarmos apenas dois casos, lembremo-nos das representações "brasileiras" de Almeida Júnior, muito anteriores a PP, e das representações do "brasileiro" por Monteiro Lobato, coetâneas a PP.


62BOLLE, Willi. grandesertão.br. — o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2004.


63Cf.: ROLNIK, Raquel. São Paulo: o planejamento da desigualdade. São Paulo: Fósforo, 2022.


64Evidentemente, o sentido aqui não é o tomado por Foucault em "As palavras e as coisas". Nesse texto, Foucault utiliza-se do termo para investigar a visão sobre língua do homem do século XVI


65Claro que Mário cuidava da grandeza não apenas da Inglaterra como a dos EUA. Em A elegia de abril (1941), Mário cita a grandeza de ambos os países. Porém, desde há muito o Brasil tinha interesses e comércio com os EUA. Desde o fim do século XVII o Brasil teve interesses no modo de vida dos americanos, enviando para lá emissários que descreveram o american way of live.


66Quando se fala em oposição, aqui, entendam-se forças discursivas que se chocam e que, por vezes, se atravessam.


67Na linha proposta por Michel Pêcheux, um discurso é a um só tempo o mesmo discurso e um novo. O autor propõe que o discurso (pensando na forma enunciativa dele) seja ao mesmo tempo "estrutura" e "acontecimento", nas palavras do autor. V. PÊCHEUX, Michel. O discurso, estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2002. Em inglês, as palavras utilizadas pelo autor são "structure" e "event".


68E de outras tradições místicas, como a egípcia, em que o morto é julgado em uma balança, sendo que sua alma não pode ser mais pesada que a de uma pluma.


69Cf. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização de Marcos Antônio de Morais. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2000.


70Talvez a melhor metáfora para Macunaíma seja a de José Miguel Wisnick, ao comparar o texto de Mário como uma renda de bilro. Cf. WISNICK, José Miguel. A rotação das utopias-rapsódia. In: BERRIEL, Carlos Eduardo. (Org.) Mário de Andrade, hoje. São Paulo: Ensaio, 1990.


71Nesta, a cidade de São Paulo é a cidade onde o herói buscará encontrar o amuleto que lhe faz lembrar Ci.


72A palavra "Autor" foi usada em maiúsculo durante a escrita desse texto como alusão a uma "função" proposta por Foucault em O que é um Autor?


73Cf. FARACO, Carlos Alberto. Bakhtin, a aventura dialógica. In: PAZ, Francisco Moraes. (Org.) As aventuras do pensamento. Curitiba: Editora da UFPR, 1993.


74Tal ironia também é encontrada em poemas de Oswald de Andrade e em outros discursos, como visto no decorrer da análise.


75Cf. p. 138 de Retrato do Brasil.



REFERÊNCIAS



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________, Mário de. O turista aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.

________, Mário de. Macunaíma — o herói sem nenhum caráter São Paulo: Círculo do Livro, 1984.

________, Mário de. Contos de Belazarte. 8 ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1992.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna — do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. Tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. P. 232.

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março, 2022



Benedito Costa Neto Filho. Doutor em Letras, Estudos Literários, pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). É responsável pela coluna quinzenal Papel Máquina — altas literaturas do Jornal Plural e autor do livro Diante do Abismo, publicado pela Benvirá.


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