©tomasz kowaluk

 
 
 
 
 
 
 

"Lá em cima do piano tem um copo de veneno. Quem bebeu morreu".

(Parlenda infantil)



Em memória do professor Milton Santos



Ele pede ao motorista que pare na frente de um prédio da Barão do Rio Branco. O motorista diz que não há nada ali, que o prédio, inclusive, está abandonado. Ele insiste e diz que é ali mesmo e que vai ficar por ali. Dispensa o motorista. Sai do Audi preto colocando no asfalto gelado primeiro o pé direito, algo que ele faz ao entrar em aviões, trens ou igrejas. O sapato de bico estreito, Tom Ford, toca o chão molhado. Ele sai e ajeita a lã cashmere do casado verde-oliva da Burberry, transpassado, sentido o ar de 3 graus com sensação de -1. O carro sai, silencioso, preto e brilhante, e ele leva as duas mãos à boca para soprar ar quente nelas. O polegar e o indicador da mão direita se tocam e ele olha para o buraco feito ninho lá dentro. O ar quente conforta. Levanta os olhos e pergunta para a mãe, do lado oposto do vazio deixado pelo carro: "Está com frio?".

Ela se transformou em uma velhinha de ombros caídos e ancas largas. Os botões do casaco em pied-de-poule não alcançam mais as casas do outro lado. Ela balança a cabeça negativamente, antes de ajustar a gola alta de uma blusa de lã amarelo queimado, e depois coloca a franja branca atrás da orelha, deixando entrever um brinco redondo com uma pedra em cabochon azul. "O frio é uma coisa da cabeça", ela diz, "vamos? O que era, afinal, tão importante para você me trazer aqui de novo? Sempre que quer falar de coisas profundas, quer fazer ainda que mais uma vez esse caminho enfadonho". A voz marca a palavra "profundas". A velha ironia de Dona Thêmis.

De uns tempos para cá, ele dera de perambular pelas ruas do Centro, em direção ao Palácio das Araucárias ou ao Cemitério Municipal. Algo que passava ao largo da compreensão dos amigos juízes, dos amigos "de jornada", como diziam, para ele era um misto de prazer cívico com uma obrigação para com a história. Esperava dias de feriado ou os dias de mais frio no inverno, quando a temperatura prende em casa quem pode se dar ao luxo de ficar dentro dela, para passear sem pressa. É bem provável que alguém se perguntasse sobre a sanidade do homem, andando pelas ruas mais perigosas do Centro, vestindo quarenta mil reais em roupas, como é provável que os amigos mais próximos tivessem pequenas dúvidas, como moscas vagando por sobre uma fruta já meio passada, sobre a saúde mental do colega. Esperava o vazio das ruas, olhando discretamente para a direita e para a esquerda, para encostar a testa numa das poucas paredes restantes do período colonial — e sua muralha pessoal, seu muro de Salomão, era a Casa Romário Martins. Ao colocar a testa ali, quase tocando o cabelo basto no reboco branco, fazia sua própria ponte com o passado, algo como conversar com ele, como quem conversa com um anjo, com um demônio ou com aquele amor que não volta mais. Aliás, era só. Dava menos trabalho ser só, e assim podia organizar por cores os casacos no closet, sem que ninguém ironizasse o fato de ser virginiano, lunático ou fútil. Para ele, bem, para ele todos temos nossas incongruências. E vagar por ali não era incongruência alguma.

Fez um sinal para a mãe, dando o braço para ela. Atravessaram a rua e ali estava o primeiro ponto da via crucis. Dizia-se que naquele lugar tinha morado Zacarias de Góes e Vasconcelos e sua bela esposa, Carolina de Vieira, que odiava o Sul com todas as suas forças, da farinha de pedra ainda servida aos escravos, feita com pinhão socado, às árvores "desmilinguidas" de tufos nas pontas, à neve que caía nas fazendas mais distantes do centro mirrado e feio, de uma cidade escolhida para capital, com 27 quarteirões e seis mil almas grosseiras, que mal sabiam fazer o sinal da cruz do lado certo, e ainda usando a língua dos índios ou dos pretos. Mas ali e não em outro lugar, o Paraná tivera seu momento zero. Era como se o poder — que já existia antes da vinda de Zacarias — emanasse dali. Ali era a fonte primitiva, a água primordial, o Éden esquecido do poder local. De uma das esquinas da Barão do Rio Branco, ele olhou para as outras três. Pensou num xis. Nas extremidades opostas de uma das barras do xis havia uma farmácia de um lado e uma ótica do outro, no térreo. Acima desses comércios erguiam-se enormes estruturas modernosas dos anos 1970. No outro eixo do xis, uma revendedora de telefones celulares de um lado e o que sobrou da arquitetura eclética do século XX, do outro. Por razões que não cabem aqui, e que devem levar ao ringue os professores da reitoria não muito distante dali, ele acreditava piamente que Zacarias havia de fato vivido nesse pedaço sagrado de terra, num casarão colonial engolido pela sanha mercantil de começos do século passado. E para horror de Carolina Vieira, cujas poucas fotos encontradas no Museu paranaense ou no arquivo público mostram uma cara de enfado e saudades de Valença ou do Rio.


— Vamos, mamãe! Há muito que vermos!


— E vê se me conta logo o que me trouxe aqui por favor!


Dias antes ele julgara um caso muito simples e muito monótono, para falar verdades. Estava longe, portanto, de ser o caso de sua vida ou ainda um caso de notório interesse público. Chamavam as pessoas envolvidas em casos assim de água de salsicha. Um juiz da estirpe dele nem deveria julgar essas picuinhas porque havia muito mais com o que se preocupar: o país! A nação! O rompimento das noções de um Estado Democrático de Direito! A falta de diálogo entre os poderes! Quem sabe, uma vez desembargador, poderia se envolver com situações mais relevantes. Mas era jovem. E o caminho que leva a Brasília é longo, isso é sabido. Ministro! E ainda se pode encontrar saúvas bem no centro geográfico do país quando lá se pisa.

Mas o caso o incomodava. Como uma pulga. E é por isso que usamos expressões como "pulga atrás da orelha". Mas a pulga, pequeníssima, dá saltos longuíssimos e é um dos animais mais antigos da Terra, bicho que deve ter passado por pelo menos três eras de destruição e apagamento. Sua pulga envolvia um circo, em cujo picadeiro estavam dois jovens estudantes, de uma mesma universidade.

Melhor ouvinte que a mãe não havia. Ela ficava quieta, olhando para as pessoas que dormiam na rua, quando grudava com mais força no braço dele, para as marquises sujas, as portas cerradas das lojas onde alguém tinha pixado, com fontes aludindo espinhos, algo que ela não conseguia ler. Mas os desenhos eram reconhecíveis: um Bob Marley, um punho levantado, um "a" anarquista.

Por um erro geográfico ou histórico, Dona Thêmis era chamada em sua época de "a Evita dos trópicos". Ela mesma ria disso, dizendo "ah, Evita era nórdica, né?". Nascera morena, ficara loira, ostentava roupas compradas na Europa e joias discretas. Na sociedade curitibana, era conhecida como herdeira direta do casal Góes e Vasconcelos. E uma coincidência de nomes, Vieira, ajudou a construir uma imagem de nobre matrona. Como se casara com outro herdeiro do mesmo casal, eram como primos, primos casados, que mantinham a limpeza do sangue mais puro desde a fundação do Estado. E ele, um herdeiro direto e reto de Góes e Vasconcelos, tinha orgulho disso. E pessoas como Raphael Greca desde sempre costumavam ligar o nome do casal atual com o nome do casal do passado, tendo isso se intensificado com o advento da internet, quando as imagens de um casal e de outro passaram a ser colocadas lado a lado, como num mural imaginário da cidade de Curitiba. Ou como num mural de colégio, em que criancinhas colocam recortes de personagens marcadamente violentas como heróis nacionais. Mal sabiam as pessoas que o casal atual desprezava — e muito — a comparação. O casal antigo viera da Bahia e a falta de beleza de Zacarias não tinha sido amenizada sequer pela excelência do escultor Roberto Lacombe.

E ela continuava ouvindo, sem emitir nenhum som. Há lugares em que as pessoas falam com uma estátua de pedra, afinal. Talvez fosse sua função. Para ela, a primeira casa dos antepassados não era naquela esquina em que ele acreditava ser e sim na esquina entre a Barão do Rio Branco e a Rua das Flores. Mas mulheres devem se calar às vezes. Elas escutam e obedecem, como tinha feito Carolina antes, as filhas de Carolina depois, as netas e bisnetas. E dali eles sobem a Barão, dobram a Rua das Flores e vão até a esquina da Monsenhor Celso, onde há um banco Itaú. Há um prédio fincado na esquina, um prédio baixo, com janelas em ogiva, que parece uma fortaleza em miniatura. Ele se sente constrangido pela presença da mãe. Então, nesse dia não encosta a testa na parede antiga. Sequer param, em verdade, e ele continua com sua história de julgamento.

A terceira casa, visitada por Dom Pedro — logo essa! — tinha pertencido a um mestre-ferreiro de nome Michel Miller. Sem saber onde ficava, seguiram em direção ao Palacete Wolf. Passaram pela Praça Tiradentes, fazendo o sinal na cruz em frente à Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais e subiram a rua de pedras até avistarem o cavalo babão. Passaram rapidinho por ali e seguiram em direção ao Museu Paranaense. Se o caminho fosse cronológico, teriam de voltar à Barão do Rio Branco: ali esteve o Palácio Liberdade durante décadas, mas ninguém os observava com um check list e eles podiam não ser tão precisos. O passeio era para falar de um caso jurídico, lembremos e não da história dos donos do poder na cidade. Passaram por outros pontos, sem lhes dar atenção, como as ruínas de São Francisco e o estacionamento atual onde existira um dia uma construção que abrigara uma das únicas sociedades negras da cidade. Mas para que falar disso? De ruínas? De grupos minoritários?


O menino trabalhava como taxista da Faixa Vermelha. A menina, manicure num salão do Shopping Muller. Aventou-se que ela fazia alguns serviços sexuais, mas isso estava completamente fora do escopo da discussão. Mas pesou. De um modo ou de outro, pesou. Mesmo que algo não seja dito, pesa, porque as palavras não ditas podem ter peso maior que as palavras ditas. Da mesma forma que pensamos que o ar não tem peso ou que as plumas pesam pouco, as palavras sufocam — e uma tonelada de plumas matará assim como uma tonelada de chumbo. Pagavam a faculdade com esses serviços. Num certo dia, sem se conhecerem, a moça pediu um táxi e avisou que pagaria em dinheiro. A Central enviou o táxi. Finda a corrida, ela avisou que não tinha o dinheiro e que ele jogasse o valor para a corrida seguinte dela. Ele disse que não havia essa modalidade de pagamento. A partir dali, não se sabe o que houve. Só que se desentenderam e ele a levou de volta para o lugar onde a corrida havia iniciado. No dia seguinte, a foto dele, retirada do site da Central estava no Face e no Insta. Quando ele chegou à faculdade, foi recebido como estuprador. Nem ele nem ela sabiam que estudavam na mesma instituição... e que tinham muitos amigos em comum.


Do Museu Paranaense, subiram em direção ao cemitério, pegando a Ermelino de Leão e depois a João Manoel. Nem um nem outro parecia cansado. Dona Thêmis, no entanto, se mostrava enfadada com a história besta, soltando suspiros. Saía uma fumacinha da boca da mulher.

Subiram as ruas estreitas dessa cidade de mortos, mais silenciosa no frio. Antes de continuarem a conversa falaram da estranheza da palavra "necrópole" e ainda do passeio que fizeram em Pompeia até a Casa dos Mistérios. Ladeando a estradinha, havia pequenos monumentos aos mortos. Ele tinha lembrança da morte. Ela, da vida, e lhe disse que devia estar confundindo as viagens.

O jazigo da família, em estilo eclético, fora construído com sólidos pedaços de basalto negro. Em cima, dormia um anjo. O braço direito do anjo estava estendido acima da cabeça. O esquerdo, escondia parte do rosto, como se chorasse. Um artista francês, decerto com gosto particular pela arte déco, esculpira asas retas repousadas das costas até os pés, retas e elegantes. O anjo fora colocado ali depois da obra pronta, lá pelos anos 1930. Quem projetou o jazigo teve a boa ideia de fazer uma base baixa, de modo que os visitantes podiam descansar após uma longa caminhada. Ficar ali. Rezar ali. Pensar no pó. Um banco escuro. Filho sentado, mãe sentada. Ele olhou mais uma vez para ela e quem estava com ele era uma mulher de uns 40 anos, com um conjunto de lã ocre e um lenço de seda estampado no pescoço, preso por um broche dourado, em forma de nau portuguesa. Coque baixo, um pequeno detalhe enfeitando o toucado, uma "Evita dos trópicos".

— E o que exatamente te incomoda tanto nessa história? Confesso que não entendi.

— O olhar da menina.

— Você já viu tantas ovelhas, porcos e bois serem sacrificados, na fazenda. Por que o olhar dessa menina incomoda tanto você?

— Ah, mãe, vivemos tempos obscuros, né? O processo foi movido pelo rapaz, que se sentiu lesado pela exposição. Disse que não tinha mais coragem de ir estudar, que as mulheres da sala passaram a hostilizá-lo...

— Os homens, não?

— Não, os homens não.

— E você sabe exatamente o que ocorreu naquele dia? Eles podem ter brigado, ele pode ter sido violento, ele pode ter tentado que ela pagasse a corrida com outros favores, ele pode, de fato, ter respondido a uma violência, com outra, talvez pior...

— Aí que está. Como eu dizia, vivemos momentos obscuros. Como imperativo ético do meu trabalho, eu precisava estar atendo aos fatos. À letra fria da lei...

— Lá vem você com "a letra fria da lei". Frios estão os mortos... Fria é essa pedra em que estamos sentados.

— A rigor, então, eu julgava um caso de exposição de alguém... e ela fez isso. Ela expôs o rapaz! Seria um ato de resistência e de humanização da minha parte não julgar a ação do rapaz procedente?

— Pelo visto, a moça era culpada. Apenas isso. Existe a lei para isso!

— Mas aí é que está, mãe! Eles ambos são vítimas dos tempos, pobres, ferrados, pagando a faculdade a duras penas. Se ele é taxista ou motorista de aplicativo e ela precisa fazer unhas e se prostituir, não são iguais? Ambos são resultado desses tempos de empobrecimento e desespero! 

— E é por isso que você sofre?

— E qual outra razão? Eu errei? O mundo que está errado?


Os gatos do Cemitério Municipal são muito conhecidos. Perambulam por ali noite e dia. Há gatos de todas as cores, sem dono. Mas parecem bem alimentados. Sua mãe lembrou que, certo dia, alguém se sentira ameaçado pelos gatos. Ou irritado, simplesmente, com a presença deles. Distribuiu comida com veneno por todo o cemitério, e a maioria dos gatos morreu. Não demorou muito para que o cemitério fosse infestado de ratos — e isso fez com que alguns moradores da redondeza soltassem lá novos felinos, que tempos depois voltaram a dominar a população de ratos. Há males que vêm para o bem, ela concluiu, e assim funciona o Direito... ele não mata os males pelas raízes; apenas corta os galhos mais podres. E a vida é irônica, senão não seria vida.


A audiência correu rápido. A advogada contratada pela menina mal sabia falar e não tinha perguntas para as testemunhas. A advogada, indicada pelo serviço do Núcleo de Práticas Jurídicas da Universidade, estava preparadíssima. Não deixaria passar um fio de cabelo sem que o analisasse. E tudo se mostrava contra a menina. E o juiz era homem, as testemunhas homens, o sujeito que moveu ação era homem. Quase impossível haver ali uma das alças da balança da justiça pendendo para a moça, que olhava tudo com ares de cabra tonta. Foi isso. Os dois estavam um farrapo só.


— Você terá respostas muito perspicazes para o que eu vou dizer, mas nada que diga, por mais genialmente composto por você, vai mudar a realidade dos fatos.

Dona Thêmis passou a fazer o que fazia quando precisava ficar calada: arrumar a sombrinha para guardá-la no fundo da bolsa. Não parecia mais a nobre dama da sociedade, altiva, e sim uma mulher a mais, que nesse dia resolveu falar, mesmo cabisbaixa. Não era a mulher dos bailes e dos jantares à francesa e sim uma dona de casa dominada pelo marido. Ela abriu a sombrinha, ajustou o tecido nas varas, fechou a sombrinha, pôs-se a torcer o tecido no tronco do objeto, depois arrumar o drapeado até que ficasse perfeito. Por fim, arrumou a ponta da sombrinha como modelasse um cogumelo em pasta americana. Enquanto fazia isso, disse:


— Quando seu pai morreu, apareceram credores no velório, na sala de casa. Me chamavam a um canto, davam os pêsames e depois desfiavam uma ladainha parecida: que seu pai devia dinheiro de jogo, dinheiro para filhos bastardos, dinheiro de materiais de construção para a casa da praia, etc. Ninguém se importava com os soluços de uma viúva. Você pode se perguntar como, mas ao mesmo tempo que diziam que éramos descendentes diretos do Góes e Vasconcelos, diziam também que éramos maus pagadores e ricos de araque. De fato, vivemos muitos anos das aparências, mas seu pai tinha muita culpa nisso tudo. Certa vez ele encontrou um sem-teto passando frio na rua e resolveu tirar uma caríssima japona de camurça e a deu, simplesmente. Claro que sabia que o indivíduo poderia ser morto por causa dela, que a venderia em troca de comida ou droga... mas lógico que contou a história para todo mundo. Durante um tempo, ficou conhecido como o rico do Batel que tira de si para dar aos pobres. Ganhou menção na Câmara e na Igreja. Eu queria me esconder num buraco, nessas ocasiões em que a história do homem generoso era lembrada.

— E o que isso tem a ver comigo?

— Toda história tem uma sombra, ou uma parte invisível, não sabida. Nem tudo se conta ao padre. Nem tudo se conta ao juiz. Nem tudo você conta a si mesmo...

— Não sei se entendo aonde a senhora quer chegar...

— A gente repete os pais, mesmo que não queira. Há como uma corrente presa a eles. Você está aí sofrendo por um caso besta enquanto passeia pelo Centro em busca do seu passado falso, um passado de Vasconcelos que nunca foram nossos parentes, usando roupas que nenhum dos seus réus teria como comprar numa vida inteira. A vida tem contradições, aparências, tetos de vidro... e a Justiça não é uma balança; é um sólido com muitas facetas. Você chora aqui no túmulo e depois vai para seu apartamento com piscina de água quente. Nada que você faça mudará o rumo das coisas. Você está preocupado com dois miseráveis que a história, a religião e a sociedade colocaram abaixo de você! E que serão esquecidos nas faculdades, nas festas e até mesmo nos cemitérios.

Um gato lambia a pata em cima de um túmulo de mármore branco, cujos detalhes em bronze tinham sido roubados. Olhou para o bicho alguns segundos e voltou os olhos para Dona Thêmis. Agora, ela era uma moça morena, com um toucado alto e preso na nuca. Tinha as mãos postas sobre as pernas. Uma rica renda branca fazia contraste com o xale preto, cor típica da corte de Dom Pedro II. Dia sem vento, frio, um tanto triste. Ele sozinho no túmulo.

Ele levantou, saindo do torpor, quando viu algumas pessoas andando em sua direção. Desceu a rua lateral ao jazigo. Dobrou a direita, e deparou com o túmulo de Maria Bueno, a santa negra esbranquiçada pela história, talvez vítima de um crime passional. Na cabeça, os olhos da menina julgada, da mãe antes de morrer, a faixa que venda os olhos da deusa da Justiça, os olhos do gato que, dizem, pode enxergar no escuro. Tirou os sapatos caros, colocou-os no túmulo da santa e desceu a pé até a entrada central do cemitério. Era bem estranho ver aquele homem bem vestido e descalço perambulando rumo ao Batel. Um ou outro pedestre parou para ver se ele tinha sido assaltado.

 



setembro, 2021



Benedito Costa é escritor e crítico de literatura e arte contemporânea. Vive em Curitiba, onde concluiu o doutorado em Literatura pela UFPR. É responsável pela coluna quinzenal Papel Máquina — altas literaturas do Jornal Plural e autor do livro Diante do Abismo, publicado pela Benvirá.

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