©sguimas
 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto I

 

 

não há nada

mais intenso

que o silêncio

do estojo vazio

do oboé

 

*

 

plié da porcelana

a frágil bailarina

quebrou o pé

deu adeus ao jeté

virou féretro a caixa

que embalava o dançar

 

*

 

os degraus de madeira

confessam seus pecados

toda vez que alguém ousa

visitar os fantasmas

do outro andar

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto II

 

 

é árido o domínio

do abandono

a incontinência

da torneira estancou

entulhos dão espinhos

não dão flor

as aranhas a seco

tecem véus de eufemismos

e racham os espelhos

em miragens de sol

não é úmida

a lembrança

das vozes que entoavam

acalantos de horror

nem o silêncio é líquido

bauman não tinha nascido

acho eu

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto III

 

 

as ranhuras no umbral

quase esfumadas

dão conta das escassas

polegadas do sonho

de um casal que cresceu

o  sonho não o casal

pouco além do tamanho

dos sapatos

falsos de hemingway

antes de desandar

o tumor cresceu mais

e o mau humor das sombras

que atravessam as portas

minadas de cupim

o que não é início

é fim

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto IV

 

o vaso sanitário

destronado

abdica do direito

à herança de duchamp

 

*

 

há um filete de sangue

entalhado na pia

tão morto que não escorre

tão vivo que se nega

a descascar

talvez seja ferrugem

ou outro vício do corte

que o espelho estraçalhado

se esmera em disfarçar

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto V

 

 

nos jardins as pervincas
que enfeitiçam poetas
e desencantam bruxas
brotam da terra morta
sepulcro que soterra
perversas dinastias
as mesmas que os coveiros
preferem nem nomear
por mais que uma genebra
solte os nós das gargantas
ávidas de inventar
as lendas da fazenda
fantasias enredadas
nas tramas dos cordões umbilicais

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto VI

 

 

as paredes não falam

mas o mofo desenha

as silhuetas do medo

o resumo dos dramas

o mapa dos suicídios

os incestos as taras

as peles descamadas

dos traumas palimpsestos

contubérnio de amargas

argamassas de tédio

 

flores podres se inscrevem

entre as folhas de um livro

fósseis das primaveras

preservadas

nas geleiras do inverno

 

a invasão da miséria

é uma questão de tempo

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto VII

 

 

a escada em espiral

que sobe ao sótão

tanto se torce

que entontece as ideias

não era mais alta e íngreme?

continua iminente a ameaça do tropeço

a idade do equilíbrio não é mais que um intervalo

um desfrute do corpo

uma anistia que a lei da gravidade

concede aos eventuais

contraventores

qualquer lembrança pode ser passo em falso

melhor não escorregar no corrimão

porque a sombra da escada no assoalho

ainda lembra a escoliose

de um monstro predador

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto VIII

 

 

ainda há ligeiras notas

de um fedor de carniça

ecoando no oco

da sala das exéquias

ali onde os doentes

deitavam-se a morrer

 

sem janelas ou espelhos

nada que distraísse

o respeitável público

da obrigação do ofício

penoso de ofertar

o derradeiro adeus

 

nas cadeiras dispostas

em volta do ataúde

falsas viúvas tramavam

seus filtros e suas redes

de penélopes murchas

sem qualquer convicção

 

consumiam-se os círios

em êxtases e orgasmos

de denso espermacete

porque a vida é um palíndromo

um ciclo um ouroboro

morre onde nasceu

 

crianças-lagartixas

grudavam nas paredes

de medo que o defunto

em um póstumo esforço

se erguesse ali no esquife

e jogasse o buquê

 

nas frestas da memória

ou da cancela

o vento assopra um lá

na sumida palheta do oboé

mas o resto é silêncio

lá aqui na dinamarca

no santo beleléu

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto IX

 

 

a casa está às escuras

magritte fechou as janelas

van gogh apagou o sol

as lesmas babam trilhas

nos muros

nos lençóis

na adega gregor samsa

lambe os suores íntimos

de uma mulher de ló

 

*

 

revoadas de gárgulas

enxotam as cegonhas

que ameaçam pousar

ao pé das chaminés

a morte é soberana

a maldição da peste

gorou os óvulos férteis

já não se nasce mais

nunca mais

never more

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto X

 

 

bufa o minuano

o seu hálito obsceno

farfalhando as anáguas

das cortinas da sala

que o abandono rasgou

de despudor

como fez com as vestes

mais íntimas das viúvas

que na falta de amantes

o cloro descarnou

 

traz o vento notícias

daqueles que migraram

na garupa de um potro

no ventre de um caixão

despedidas no alpendre

mãos de afagar o adeus

 

de todos os milagres

só resta o pôr do sol

 

as almas que ficaram

tomam banho no algibe

se estendem a quarar

e por fim se penduram

no varal

lábaros de batalhas

que ninguém quer travar

 

mas o minuano insiste

em chacoalhar

o esqueleto dos mortos

que esquecem de deitar

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XI

 

 

não cala o som

não cala

no máximo amortece

como o pano que a parturiente morde

para amarrar o grito

rasgado das entranhas

nesse estupro do avesso

que as avós celebram

tricotando carpins

o amor tece o amor

 

mas o som permanece

a casa abandonada

tem sua voz

palavras abafadas

tomam conta dos quartos

dos porões dos desvãos

em todo canto vivo

não morre o cantochão

porque afinal o verbo

é vício e religião

 

cai a noite e a casa se confessa

ao bom entendedor

cochichos e fofocas

no dormitório as molas violentadas

do colchão

 

junto ao fogão vissungos

que a ama preta herdou

dos bisavôs

e mais tarde viraram acalantos

para ninar as fomes

dos patrões

 

nos salões espelhados

os reiterados ecos

de uma conspiração

balbucios confusos

palavrões

xingamentos

ultrajes

agressões

 

as calhas gargarejam

suas úmidas histórias

de terror

e as gelosias batem

sempre na mesma tecla

de um eterno tambor

nem surdo nem tarol

 

em tudo há tom e som

fúria ou candor

o silêncio não é mais

que uma ilusão

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XII

 

 

o piano é um ataúde

por baixo da sua tampa

para/lisa beethoven

muito aquém da desculpa da surdez

czerny morre de tédio

bach se enforca nas cordas do minueto

sem direito a florais

e um thelonius profano

fora de partitura e de contexto

aqui jazz

 

martelos de algodão

ainda batem nos cravos

bem temperados

in memoriam de tantos

dinossauros musicais

 

em épocas remotas

na era das tertúlias e saraus

a prima ballerina rodopiava

suas artes de equilíbrio

sobre a caixa do piano

 

fosse pássaro caberia dizer

que quebrou uma das asas

afinal

a dança é mais um jeito de voar

 

o pé jamais sarou

mas seu perfil de deusa

inspirou um camafeu

 

o tio jogou fora o oboé

e o luto do silêncio tomou conta da sala

que virou uma redoma

de conservar a dor

 

o piano com a idade

infame do descaso cultivou

uma cárie de fungo em cada tecla

só lhe restou o consolo

de uma gengiva nua

que mastiga calada

o mingau do que foi

 

 

 


 
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