©sguimas
 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XIII

 

 

quando a casa adoece

os gesseiros percebem os sinais

e desistem da luta

antes de precisarem lamentar

a contaminação das ferramentas

 

ninguém controla o surto

das pústulas nos forros

germinâncias da peste

que devolve o aposento

à idade das cavernas

 

já os pedreiros são mais condescendentes

talvez porque aprenderam

com a maçonaria

a desculpar as falhas do concreto

e a relevar os vícios das famílias

 

insistem com suas trolhas

retocando a maquiagem

das feridas abertas no reboco

que jamais cicatrizam

porque é profundo o mal

que corrói as estruturas

 

nada adianta

a casa desabita

 

os pássaros suicidas

arremetem nos céus

dos vitrais de anilinas

e a mater dolorosa

lacrimeja chorumes

na capela vazia

 

reintegração de posse

o mato invade as ruínas

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XIV

 

 

era morgana o nome da menina

de fato parecia levitar

acima do horizonte

sem encostar nas ondas

que encrespavam as águas

convidando-a a dançar

 

volta e meia

voltávamos da praia com cócegas de areia entre os artelhos

e os ouvidos em concha ruminando os silêncios

sonoros de singrar

os cochichos do mar

 

a casa abandonada até hoje atesoura

o álbum de retratos

da fada entre suas roupas

vestígios de uma mínima jornada

dedicada a encantar

e é de lavanda o aroma que as páginas regalam

a quem as desfolhar

 

porém não é fiel a imagem

fóssil da borboleta

presa por cantoneiras

e filtrada entre as dobras

de seda do papel

 

há outra  biografia

talvez mais verdadeira

inscrita nas pegadas

do caminho trilhado até chegar

à beira da preamar

 

as mais antigas plenas de simetria

logo depois aquelas que desenham

o mapa desvairado

de um forró

por fim já de pé torto

a pegada arrastada

procurando o naufrágio

que lhe afogasse a dor

 

daquele último banho

morgana não voltou

era tamanho o lastro

que se esqueceu do voo

 

eu não sobrevivi

mas aqui estou

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XV

 

 

qualquer casa que já tenha alojado

mais de três gerações de uma mesma família

vira mal-assombrada

porque não há dinastia que não renda

tributo aos seus fantasmas

 

*

 

a maldição de rorschach:

na mutação da mancha de umidade

que decorava o céu da alcova da fulana

cada amante podia enxergar a sua sorte

que afinal não era tanta

 

quando murchou a infanta

queimaram o dossel

os lençóis os pijamas

porém não conseguiram

apagar as vergonhas

nem a mancha

 

*

 

um caixeiro viajante anos mais tarde

jurou ter visto de passagem

o chafariz do pórtico

cuspindo sangue em lugar de água

 

morreu essa mesma noite

assim como sua história

mal contada

mas morrer é de praxe

quando o delírio é tremens

e a parca cruza a estrada

 

*

 

é por essas e outras

lendas extraordinárias

que o lucro dos herdeiros

fica entre pouco e nada

cada vez que pretendem embarcar

na canoa furada

da especulação imobiliária

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XVI

 

 

feito um feto no ventre

da rede pendurada

entre as traves do alpendre

deixo a mente vagar

devagar

divagar

 

pela porta entreaberta

avista-se um retalho

das ruínas do saguão

da casa grande

 

na parede duas órbitas mais claras

como de  olhos vazados de aflição

delimitam o espaço em que reinavam

os retratos do casal fundador

obras de arte ou nem tanto

que o banco penhorou

 

no canteiro da frente

a roseira brotada das sementes

de cordões e placentas

da segunda geração

cada umbigo é um botão

 

mais distante a figueira

que dizem que serviu

de forca aos fugitivos

estranhos frutos

que a voz de billie holiday

em tempos de impiedades

lamentou

 

no galpão da senzala

entre as almas penadas

hibernam ferramentas

de castrar e marcar

a carne dos rebanhos

fazendo-se a vontade do senhor

 

peste guerra fome e morte

os quatro cavaleiros já tentaram

dar cabo deste feudo que ainda se sustenta

na inércia natural da tradição

 

nem ratos nem fantasmas

admitem qualquer risco

de extinção

 

o vaivém acalenta os pesadelos

na rede que balança

entre o medo

e o horror

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XVII

 

 

é só atentar o ouvido

pro forasteiro escutar

esse  sussurro doído

osso miúdo do lamento

de kusumwa a mãe preta

que foi de cama e de mesa

ama de leite e babá

 

Muriquinho piquinino,

muriquinho piquinino, oi parente,

de quissamba na cacunda.

 

som dos ecos da tristeza

entranhada na gordura

de uma fornalha em que a cinza

do rescaldo já esqueceu

dos dias em que foi brasa

e aqueceu e iluminou

 

Muriquinho piquinino,

Purugunta onde é que vá, oi parente.

Pru quilombo do Dumbá.

 

*

 

kusumwa flor  arrancada

lá da costa do marfim

embarcada num navio

para as costas do semfim

com a tristeza por nome

por sina e por butim

se dois elefantes lutam

quem se dana é o capim

 

Baba yetu, yetu uliye
Mbinguni yetu, yetu amina!

 

acordou escrava kusumwa

negra de saciar as fomes

dos bebês cor de farinha

da ama branca e do patrão

sentado à beira da mesa

ou deitado no enxergão

que o serviço da criada

variava  conforme o humor

 

Utupe leo chakula chetu

Tunachohitaji, utusamehe

Makosa yetu, hey!

 

sua tristeza ia crescendo

como se fosse um tumor

acalentando a vingança

entre cantos e orações

plantou um pé de espirradeira

e cuidou que desse flor

 

Kama nasi tunavyowasamehe

Waliotukosea usitutie

Katika majaribu, lakini

Utuokoe, na yule, muovu e milele

 

*

 

cozinheira de mão cheia

nas artes do boarake

peixe mandioca e dendê

lambia os beiços o dono

e comia tanto o prato

quanto a negra que o fez

 

não seria desta vez

kusumwa moeu o oleandro

para o pó voltar ao pó

temperou o namorado

o peixe e o seu senhor

que achou o sabor amargo

e pediu uma explicação

 

em seu fluente francês

por ser língua da sua infância

a escrava disse que era

une poisson aux fines herbes

desculpa que o amo aceitou

a ignorância mata o homem

como a história confirmou

 

moral imoral da lenda

para não ficar tão órfã

kusumwa também comeu

 

são contos que a casa conta

para entreter os turistas

que não há nestas paragens

outro tipo de atração

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XVIII

 

 

a boneca de pano soltou os olhos

ou foi uma das primas que arrancou

para que não enxergasse

os hábitos noturnos do monstro familiar

que escancarava portas

pernas coxas e vulvas e o que mais

lhe atrapalhasse a fome de estuprar

 

restaram dois botões

deitados no veludo

do estojo em que há outros brincos

mas nada de brincar

 

e dá tudo na mesma

o padre reza missa

e o juiz vende sentenças

de eterna absolvição

 

a casa ainda que trema

não chega a desabar

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XIX

 

 

sei de um céu que nunca houve

sei de um céu que nunca mais

 

banhávamos a lua na água escura do algibe

para beber do balde a calda do luar

e era bom porque o dia demorava a acordar

 

a gente preferia chamar de pirilampos

pipocando entre os lábios a tal língua do pê

a graça do eufemismo oculta em vagalumes

só chegaria até nós muito tempo depois

do frustrado cultivo das lanternas in vitro

não há luz sem liberdade

custamos a entender

 

deitávamos no feno que era o jeito de aprender

a interpretar os desenhos daquelas nuvens de chuva

que o vento levava ao léu

ou à tosquia ou à degola ou apenas nasceu

um fio de grama atravessando os lábios

da moça que já se prometia ser mulher

uma flor furou o asfalto

drummond não quis colher

era a tentação do incesto

eterno mal de família que crescia aos borbotões

entre a cabeça e os pés

 

visito a velha casa quase sempre no inverno

gosto de conferir o progresso da diminuta fauna

que corrói os tecidos a madeira a memória

e a mentirosa saga dos heróis

já nem procuro mais os cheiros de morgana

ou a assimetria dos sons

dos seus passos trilhando o corredor

e jamais ergo os olhos

em busca de uma nuvem que careça

de interpretação

 

não há céu para os suicidas

nem perdão

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XX

 

 

tributo à decadência das ilhoas

vênus e nice desandam no ateliê

de costura que já encobriu a nudez

de milo e samotrácia

nos tempos da moulage

 

fenecem de mãos dadas

as duas deusas

 

é modo de dizer

porque nem braços têm

perderam a cabeça

e atrofiaram os pés

 

o estofo vaza das feridas expostas

rasgos como de abusos

de um seguidor de jack

o estripador

oculto em densas brumas

de pura desmemória

feito aquelas de londres

o chá das cinco esfriou

 

morrem de tédio e mofo

os troncos das bonecas

os manequins se afogam

no mar da solidão

ainda que os reflexos

cuidem de transformá-los

em legião

 

dorme na água-furtada

da casa abandonada

um sonho de organdis

de veludos e tules

que o exército das traças

sepultou

 

(.......................................)

 

calou-se a velha singer

no palco iluminado da janela

emudeceu a canção

afiada das agulhas e o pedal

se esqueceu de bater

o coração

é de madeira e aço

o inútil mecanismo

que restou

 

(.......................................)

 

sou um intruso no reino

do total desamparo

o jogo dos espelhos me

devolve mil vezes

mil versões diferentes

e já não sei qual sou

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XXI

 

 

esmaga a língua a esfera do planeta

de encontro ao céu da boca

ultrapassando as raias de um bigbang

explode entre as papilas a lava fresca e doce

um sabor de verões e de paz

já nada mais importa

e não é impróprio cuspir

as sementes no chão

 

a fome do universo

exige mais um grão

 

(................................................................................)

 

não são de ira as vinhas

de ironia talvez

que pouco prosperaram as parreiras

do pátio durante aquelas mais propícias

estações de um passado de esplendor

quando o pomar chegava

a inventar novas frutas

e tudo dava em cachos

porém as uvas não

 

maldição das videiras

ignorância das cepas estrangeiras

que não souberam como traduzir

ressequidos sarmentos em artérias

que jorrassem licor

a praga tomou conta

do território estéril

e a promessa do vinho

se esqueceu

 

(................................................................................)

 

lá se foram os ares de bonança

em tímidos escândalos a estirpe definhou

tudo em volta não é mais que um palco em ruínas

e foi entre os entulhos que a videira vingou

ou se vingou

 

lanternas cor de vinho

ou ambarinas

de esplêndida opulência

e excesso de vigor

vergam as guias de arame

 

colho uma dessas pirâmides inversas

de glóbulos dourados pelo sol

e em posição fetal

no aconchego de uma espreguiçadeira

sorvo a vida que sobra

enchendo o papo assim

de grão em grão

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XXII

 

 

para quem piscaria

hoje a almenara

se espíritos

fantasmas e morcegos

carecem de outras formas

de luz que a casa oca

ora nega ora dá

 

a fogueira que ardia

lá na crista da torre

guiava o contrabando

no imenso mar do pampa

quando sumia o luar

e a noite era tão densa

que dava pra cortar

com facão ou assobios

afiados na pedra de amolar

 

já quase não se navega

na cruel aridez da terra

garibaldi foi à missa

fitzcarraldo passou a borracha

nos garimpos de manaus

naufragou a capitania

não brilha mais o fanal

e o ectoplasma dos ausentes

procura nos cemitérios

o fogo-fátuo da paz

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XXIII

 

 

com o tempo a mobília

acaba se integrando ao habitat

 

a cristaleira vibra

tilintando seus tiques

sonoros bem no horário

em que o trem quando havia

costumava passar

 

a oxidação da prata

no espelho do roupeiro

do quarto de morgana

parece respeitar

os contornos do corpo

que só ele conheceu

 

quando a luz do poente

atravessa o vitral

um halo luminoso

se instala no oratório

e há quem acredita

enxergar a pietà

 

ao menos na lembrança

a essência de lavanda

misturada ao incenso

sobrepõem-se ao fedor

da casa em podridão

 

os espectros desfilam

fibra a fibra na fila

do desfibrilador

 

Inventário da casa abandonada – canto XXIV

 

a vila ostenta a alcunha da família

como quem leva a pecha do que herdou

ecos do sobrenome batizam o colégio

a praça o cemitério e a estação

onde os trilhos hibernam pesadelos

deitados nos dormentes

que levavam à antiga

jazida de carvão

 

foi condenada a mina

as chuvas persistentes acabaram

atenuando o eclipse

que o pretume da poeira imprimira

na fachada e no pátio do solar

 

mas o luto persiste

nas viúvas da paróquia

que não lavam as peles maculadas

pelas toscas carícias dos amantes

que deixaram com elas

suas digitais nefastas

o sêmen e os pulmões

 

e carregam seus mortos

as coitadas

como negras sombrinhas

de afastar os perigos

de exposição ao sol

e a outras paixões

 

meu nome é santo e senha

constata o filho pródigo

na cidade fantasma

em que nasceu

qual fruto derradeiro

que cai longe do pé

 

quem vive?

ainda pergunta a sentinela

mas ele nem se atreve a responder

 

 

 

 

 

 

Inventário da casa abandonada – canto XXV

 

 

a ermida que precedeu a capela

atravessou o oceano

pedra a pedra

de um mosteiro de sintra

até as missões

por linhas tortas

caligrafia pior

 

mas a primeira pedra

o diabo que atirou

 

pedra a pedra a ermida

que precedeu a capela

foi erguida nas barrancas

do uruguai

pedra a pedra seguindo

a planta original

que não há deus nesta terra

selvagem que proteja

a vida do invasor

foi preciso importar

 

no meio do caminho

tinha um drummond

 

pedra a pedra a ermida

que precedeu a capela

adoeceu de erosão

deus pode ser eterno

mas sua morada não

 

pedra a pedra a ermida

que precedeu a capela

entregou-se on the rocks

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Jorge Rein nasceu em Montevidéu e reside em Porto Alegre desde 1971. É contista, dramaturgo, tradutor e poeta. Em 1986 publicou, pela editora Tchê!, sua primeira experiência em língua portuguesa, o livro-objeto &, ilustrado pela gravadora Anico Herskovits. Teve contos publicados em diversas coletâneas, antologias e revistas literárias do Brasil, Uruguai e México. Nos últimos anos, sem ter abandonado o conto, vem se dedicando preferencialmente à poesia e à dramaturgia, modalidade na qual conquistou premiações em concursos no Brasil (IBAC/FUNARTE), Venezuela (ITI-UNESCO) e Uruguai (EL GALPÓN). Em 2017 publicou, pela editora Patuá, o livro de poesia Grafiteiro do avesso, finalista do Prêmio AGES daquele ano. Recentemente publicou mais dois livros pela Editora Bestiário, de Porto Alegre: Bonecas de argila & cambalache 2.0 (textos teatrais) e Cartas trocadas (romance), em parceria com a escritora Adriana Bandeira.

 

 

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