Minha relação com o Dia Internacional da Mulher foi, e continua sendo, muito ambígua. Por anos, neguei-me a comemorar essa data que, embora significativa, traz em sua origem tantas perdas. Eu era jovem e sentia raiva. O tempo ensinou-me, entretanto, o poder da visibilidade. De aparecer para crescer. Nossa entrevistada, Dra. Alaíne Navarro, é uma jovem advogada, distante da minha geração e do início em que militei nos movimentos de mulheres. Sua abordagem é outra, mais suave, talvez, mas que carrega o mesmo gene aguerrido de toda aquela que sabe o custo de uma luta. [Mariza Lourenço]





Mariza Lourenço – Alaíne, antes de tudo, vamos dispensar as formalidades: para você, qual o real significado do Dia Internacional da Mulher?


Alaíne Navarro –  Há muitas mulheres que ainda consideram a "comemoração do dia da mulher" uma data misógina ou desnecessária, pois questionam "por que comemorar"? Isso ocorre por ainda existir alto índice de violência, feminicídio, violação de direitos trabalhistas, o patriarcado impregnado na sociedade e atitudes machistas a todo momento, sob as quais as mulheres são submetidas. Resumidamente, penso que tal data é o resultado do histórico de muitas lutas, mas sempre com a ressalva de que, apesar de muitas leis, proteções e conquistas, na posição de advogada, feminista e militante, vejo o quanto ainda estamos longe de nos tornar "iguais". Portanto, acho importante celebrar a data como um marco de luta.



ML – Conte-nos, por favor, um pouco da sua trajetória de empoderamento. Começou no meio acadêmico ou antes disso?


NA – Muito antes. Vivi em um lar onde senti a violência doméstica, o que me fazia questionar "se eu fosse homem, isso estaria acontecendo?". Com certeza, não. Durante muito tempo, ODIEI ser mulher, ser frágil, sentia-me de mãos atadas, submissa a um sexo "SUPERIOR". Meu pai era extremante machista, agressivo, truculento. Aos poucos, fui descobrindo que é possível ter voz, que é possível viver por meio da revolta. Em 2006, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, eu pensei "UFA, estamos salvas". Mas vi que era necessário fazer mais, pois existe uma imensa lacuna entre LEI e efetividade da aplicação e, desde então, comecei a questionar e procurar soluções, para fazer a lei valer a pena. Como acolher mulheres. Como identificar as agressões. Meu empoderamento veio de uma vontade imensa de ser Pagu indignada no palanque e poder um dia gritar que somos iguais!



ML – Acho muito bonito — e necessário — que você, como uma advogada ativa nas redes sociais, utilize esse recurso para a conscientização dos direitos das mulheres. Mas sabemos que, lamentavelmente, muitas não têm o acesso necessário à tecnologia. Em sua opinião, o que pode ser feito a respeito? Especialmente, em favor daquela mulher pobre, vítima de violência, e que não tem conhecimento suficiente para identificar a situação em que está inserida? 


AN - O meu trabalho nas redes sociais é de formiguinha, mas creio que o principal é sempre me posicionar como feminista. Seja numa roda de bar, seja com namorado, com amigos. Ao ler/escutar uma frase, um comentário machista, sempre explico por que tal comentário é inadequado e não deve se repetir. Acho fundamental, também, os projetos sociais que levam informação às escolas, às mulheres carentes. Afinal, além do acolhimento, é direito de todas o esclarecimento sobre o que pode ser feito legalmente.



ML – A gente sabe que a Lei Maria da Penha, única no mundo, foi um marco significativo para mudanças essenciais, um divisor de águas. Ainda assim, muitos a consideram uma lei excludente, que beneficia a mulher em detrimento dos direitos dos homens. Qual a sua opinião?


AN – Todos são iguais perante a lei, mas sabemos que a realidade não é bem assim. Se vivêssemos uma sociedade matriarcal polemizariam, em hipótese, uma lei que protege somente os homens? Sei que existe o questionamento, mas não posso validá-lo. Basta olhar as estatísticas: de cada 10 mulheres, oito já sofreram algum tipo de violência. O índice é altíssimo, se compararmos à quantidade de homens que já sofreram abusos por suas parceiras. Não podemos fechar os olhos e dizer que a violência reversa não existe, porém romantizá-la a fim de desacreditar a Lei Maria da Penha, é absurdo.



ML – Tenho constatado, com muita tristeza, que a depender da postura ideológica, algumas mulheres são menos, ou mais, dignas de crédito. Onde fica a sororidade nisso tudo?


AN – É uma triste realidade sobre a qual eu também me questiono, pois acredito que todas as mulheres, independentemente da classe social, postura ideológica ou seja lá o que for, devem ter o mesmo espaço de fala e credibilidade. O que me preocupa é a falta de irmandade entre as próprias mulheres, visto que umas ainda desmerecem as outras, por diversos motivos. Enquanto não entendermos que juntas somos mais fortes, não haverá sororidade.



ML – Também vejo, com muito pesar, que um homem possa estar à frente de uma Delegacia da Mulher (DDM), independentemente de sua capacidade. Como mudar esse cenário? Como melhorar o aparelhamento humano para atendimento às vítimas?


AN – É um quadro que também me preocupa, já que o tratamento da Delegacia da Mulher deve ser humanizado e empático. A vítima precisa de acolhimento, de escuta afetiva, de sofrer o mínimo possível ao vivenciar novamente os fatos, ao prestar seu depoimento, ao participar do inquérito. Tudo deve ser tratado com muita cautela, a fim de reduzir o trauma vivido. E uma mulher que sofre violência de um homem, ao se deparar com outro homem em uma postura de poder, orquestrando a sua ação, pode sentir-se ainda mais insegura. O modo de melhorar o aparelhamento humano para atendimento às vítimas, seria priorizar profissionais mulheres nos atendimentos. O que, além do mais, é uma via de mão dupla: mulheres que têm capacidade para ouvir e autoridade para ajudar, de mãos dadas com as vítimas, lutando contra seus agressores.



ML – Os movimentos feministas contam com grandes nomes. A receita antiga ainda vale? O que há de novo?


AN – Creio que todos os movimentos têm sempre que se atualizar, de modo a não excluir pessoas que não concordam cem por cento com a ideologia. Por exemplo: ainda acreditam que as feministas odeiam homens, odeiam famílias, não gostam de crianças, não se depilam. São tabus que precisam ser esclarecidos. Queremos apenas igualdade de direitos, respeito e vida digna. A receita antiga não vale mais, precisamos incluir os transgêneros e, por isso, os movimentos precisam de flexibilidade, de acordo com a realidade do tempo. O próprio nome diz: movimento!



ML – Em suas lives e manifestações nas redes sociais você se reporta com frequência aos relacionamentos abusivos. Como identificar um relacionamento abusivo? E, principalmente, como sair desse tipo de relação?


AN – Várias são as nuances de um relacionamento abusivo. Os abusos começam com atitudes sutis, como pequenas cobranças, ciúmes, e não necessariamente com tapas, chutes, empurrões. Também podemos incluir humilhação, chantagem, insulto, exploração, vigilância excessiva, ameaça (vou TE matar ou vou ME matar se você me deixar), controle de redes sociais, controle de meios eletrônicos. Resumidamente, a violência é qualquer tipo de conduta que cause danos à integridade física, moral ou patrimonial da mulher, e que a deixe infeliz, com a autoestima ferida. O sentimento de estar sempre inadequada, culpada, com medo. Esses são os principais sinais de alerta.



ML – Afastando-nos um pouco do universo jurídico, neste ano comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna. A grande Tarsila do Amaral — musa dessa semana, que sequer participou do festival, pois se encontrava em Paris — sobrepôs-se às reais participações das artistas visuais Anita Malfatti, Gomide Graz, Zina Aita e da pianista Guiomar Novaes. Esse 'esquecimento' — injusto, em minha opinião — aliado a outros esquecimentos, fortalece a mulher ou enfraquece suas conquistas?


AN – A representatividade feminina é um meio de nos identificar e perceber que não estamos sozinhas. Os filmes, as novelas e as músicas contam as nossas histórias e nos inspiram. No entanto, na Semana de Arte Moderna, as mulheres (como sempre) foram deixadas em segundo plano. Tarsila não participou e tais atos de esquecimento ou de "desbotamento" do papel da mulher servem apenas para reforçar a validade e importância dos homens, enquanto mulheres brilhantes são esquecidas, deixadas de lado, pintadas de cinza.



ML – O tema desta entrevista é vasto, não se esgota. Volte, por favor, para sabermos mais. Agradecemos muito a sua colaboração, mas antes do ponto final, a palavra é toda sua.


AN – Agradeço o espaço e toda a gentileza. É uma honra poder contribuir com projetos para empoderar as mulheres. Encerro com um poema sobre as mulheres, onde faço uma analogia de mulheres com POESIA:



Poesia é__________ (complete a frase)


Assim como uma mulher: o que ela quiser!

Para amar.

Para desabafar.

Para sentir ódio.

Para tocar a alma.

Cabe a você saber lê-la e senti-la. Ou não.

Aprender a ler ou se manter analfabeto.

Criar asas ou se manter vendado.

Grifar a página ou deixá-la empoeirar no tempo.

Publicá-la ou guardá-la para si.

Cabe a ti, a sensibilidade de lê-la, com os olhos, dedos, lábios, pele, coração e alma.



[Alaíne Navarro]



março, 2022



Alaíne Navarro do Carmo Tavares é mineira produzida artesanalmente, advogada criminalista por paixão, que hoje se desdobra entre escritórios e clientes em Minas Gerais e São Paulo. Feminista, militante, palestrante e escritora. Formada em 2010 pela PUC. Pós-graduada em Direito Penal. Mestranda em Filosofia pela Unicamp. No Instagram: dra.navarro_advocacia1





Mariza Lourenço é advogada e coeditora da Germina.