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Enquanto foi assalariado, Alberto Alves Brito tinha exata noção do quanto era desimportante para "seu banco". Um bagrinho. Tanto que o gerente de conta, José Manuel, focava mais a tela do computador, os cobrinhos do correntista, e mal olhava para ele, sentado lá, impersonalizado, insolvente, pedindo empréstimo em tempo de crise.

Agora, o zé-mané era uma seda quando ele aparecia na agência. Sempre sugerindo algum investimento ou tentando empurrar um "segurinho". Aonde fosse, Brito era sitiado por vendedores com faro para dinheiro. Como se algo denunciasse sua súbita ascensão à casta senhorial dos rentistas.

Depois de ter investido por trinta anos em todo tipo de loteria, Brito participou de um "bolão", com colegas da secretaria de finanças, e tiraram a sorte grande. Racharam um prêmio tão gordo, que cada um embolsou três milhões e meio, limpinhos. Fizeram um bota-fora na repartição.

— De hoje em diante não tem mais puta pobre nessa cidade! — decretou Sandrão Malerba, chefe do setor e organizador do bolão.

The good times are back! Sexo! Drogas! Rock’n’roll! — urrou Armando Lopes Leão, um dos felizardos ganhadores da bolada.

Para Brito, foi o fim da história para uma crise permanente. Deixou o dinheiro na poupança, botou bermuda e sandália, e dedicou-se a caminhar pela Ponta da Praia, toda tarde.

No mais, continuou descasado, morando no mesmo apartamento, com o mesmo Volkswagen Gol desvalorizando na garagem. Sua única extravagância foi comprar bestamente um caniço de pesca de aço inoxidável e uma bicicleta de segunda mão.

 

Enquanto isso, Armando Leão foi fazer um fly and drive em Miami, de onde retornou com um carregamento de quinquilharias e centenas de fotos. A grade frontal, a traseira, a placa do carro, o painel e os bancos de couro do Camaro vermelho, conversível, que alugou para a road trip até Key West. E tome placas viárias do percurso, fachadas de lanchonetes na estrada, uma garçonete negra ("Anjanette, uma graça"), o hambúrguer com fritas no prato.

Fez suspense com a foto de uma big mansão:

— Sabe de quem é essa casa?

— Do Emerson Fittipaldi? Do Sílvio Santos?

— Do vizinho do Julio Iglesias.

— Ué! Por que não fotografou logo a casa do cara?

— Eu queria, mas um segurança veio correndo e falou que era proibido. Aí fotografei a casa do vizinho.

Brito não podia crer que um animalão daquela idade jogasse tanto dinheiro fora para ir à Disneylândia tirar foto abraçado com um boneco de Mickey Mouse. Quanto a ele, não tinha um pingo de vontade de ver neve caindo em Nova York, nem botos cor-de-rosa no rio Amazonas. Sua vida seguia no mesmo passo, mas o banco sabia do montante de seu capital, e seu nome caiu em poder de empresas que queriam lhe vender um novo way of life.

Virou alvo de uma revoada de envelopes brilhantes, anunciando lançamentos imobiliários de alto padrão ou oferecendo cartões de crédito dourados — especiais para novos-ricos de baixa extração, como ele. Um dia, um urubu agourento veio pousar em seu ombro.

Um desses folhetos trazia um blábláblá cretino sobre "um investimento que valoriza para sempre, e você não vai pagar nem 1 centavo a mais por isso". Um jazigo vip, vertical, num "cemitério de Primeiro Mundo".

"Vão à puta que os pariu", Brito rasgou o folheto. E sentiu a urgência de aproveitar mais a vida. Numa palavra, mulheres. Tinha tempo, dinheiro, disposição, aditivos. Armando Leão lhe recomendou abrir uma página numa rede social porque facilitava contatos que podiam resultar em sexo rápido e descomplicado. Brito conectou-se e puxou pela memória. Rastreou as garotas mais bonitas do seu tempo de colégio. E descobriu, com dissabor, matronas robustas, com netos no colo, que apenas lembravam o esplendor de uma primavera distante.

 

Num sábado, folheando uma revista local na barbearia de sempre, reparou na reportagem Casamento de Princesa. Luxo e glamour na festança da filhota de um tubarão imobiliário. Lá estava Armando Leão entre os convidados, ladeado por uma morena de lábios estranhamente grossos.

"Olha o bobalhão se exibindo", Brito resmungou. No entanto, ficou aceso para saber quem era a morenaça com pinta de modelo. Já em casa, ligou para Armando, que abriu o jogo:

— O nome dela é Luanda. Era scort girl da Golden Dreams, um serviço de acompanhantes. Mas a gente se deu muito bem, e agora Lulu só acompanha o papai aqui.

— E aquela boca? É natural?

— Ela fez preenchimento labial. Tem muita atriz que faz. Eu gosto.

Brito quase falou que aquilo mais parecia uma boca de peixe limpador de aquário. Preferiu perguntar o que uma moça tão nova e bonita podia querer com um dinossauro esclerosado feito Armando.

— O pai da Lulu morreu quando ela tinha dez anos. É um lance psicológico, entendeu? Vou te mandar um catálogo da Golden Dreams. Dá uma olhada. Só tem avião. Muitas dessas garotas estão fazendo faculdade. Entram nessa pra pagar os estudos.

As mulheres do catálogo de sonhos tinham corpos esculturais, usavam máscaras e nomes como Brittany, Cindy, Felicity, Kimberly, Tiffany. Brito não se imaginava acompanhado por qualquer delas, em lugar nenhum. Aonde levaria uma Mulher Maravilha como aquela Kimberly? Pra comer pirão de peixe num restaurante do Canal 5? Nem tinha assunto para entreter uma jovem universitária. Armando Leão era diferente. Tinha presença, charme, gana, pique. Já ele era um sujeito sem graça. Árvore velha, seca, sem fruto. Ex-barnabé zanzando pela praia, toda tarde, vendo o sol descambar atrás da Ponta de Itaipu, lá para os lados de Praia Grande.

Continuava nesse passo quando o ex-chefe Sandro Malerba telefonou para intimá-lo:

— Brito? Vou fazer um churrasco sábado que vem, na minha chácara do Caruara. Vem uma turma grande que estudou no José Bonifácio, no nosso tempo. Parece que tem uma mulher que quer te ver de novo. Não vá faltar, hein? Não me faça essa desfeita.

O ex-subordinado negaceou, não achava seguro dirigir pela Rio-Santos, em seu carrinho decrépito, até o bairro Caruara.

— Deixe a lata velha enferrujando e pegue um táxi. Na volta, qualquer um te leva. Vou te mandar o mapa por e-mail — o chefão ultimou.

Ele ficou matutando quem poderia ser a tal mulher que queria revê-lo. Carola Alvarez? Délia Conti? Flora Sílvia Fiorani? Greta Herzog? Marlova Demarchi? Zilda Monzillo? Pois sim. Nenhuma dava a menor bola para ele, quando era garotão. Não seria agora.

 

Gordo, calvo e festivo, Sandro Malerba saudava seus convivas envergando um avental amarelo com a inscrição BBQ Barbarian bordada em vermelho.

De relance, Brito calculou mais de sessenta pessoas agrupadas no gramado extenso, em mesas de plástico. Avistou Armando Leão sob um guarda-sol, acompanhado da morena de lábios túrgidos, e foi juntar-se a eles. Percebeu que o amigo tinha pintado os cabelos, e parecia ter recauchutado a fachada com botox. O novo Armando: ainda mais jovial e espirituoso. Estava na cara que a bonitona beiçuda tinha feito muito bem ao fauno sexagenário.

Logo, um ex-aluno do colégio, Américo Cortez, um chato inesquecível, arrastou Brito para cumprimentar antigos colegas de classe, obscuros e olvidados. Quando conseguiu escapar das garras corteses, enveredou para o pomar. Refugiado entre o arvoredo, escutando o vozerio, rajadas de risos, achou tudo aquilo uma tremenda perda de tempo.

Foi quando um som inusitado chamou sua atenção. Localizou a origem: um casal de jabutis copulando entre as raízes de uma seringueira. Encavalado sobre a carapaça da fêmea, o quelônio regougava de gozo. Assistiu fascinado àquela foda pré-histórica, até que uma voz de mulher quebrou o interlúdio bucólico:

— Oi, Beto Brito!

Chamavam alguém que ele tinha sido. Sentiu um sobressalto ao deparar com a ruiva de cabelos de fogo e intensos olhos azuis, que o fitava com ar divertido e uma garrafa de Stella Artois em cada mão.

— Marina — ela deu uma pista. — Lembra?

— Marina… Claro.

Pegou a cerveja que ela ofereceu e caminharam pelo pomar, retomando uma conversa interrompida trinta e tantos anos antes. Quando se conheceram, ele tinha vinte anos, ela mal completara dezesseis. Tinha dançado com ela num bailinho improvisado, na garagem de um amigo, e beijaram-se na varanda, por trás de um renque de samambaias pendentes. Ele chegou a buscar Marina na saída da escola, à noite, para escoltá-la até o portão de casa. No caminho, paravam numa viela deserta e se beijavam com gula. Ele achava a ruivinha linda e fogosa, mas muito menina.

Engolfado pela vida adulta, virou essa página. Tecnicamente, não contabilizava a garota em seu rol de namoradas. Agora, sentados à sombra de uma pitangueira, ele se inteirava da vida e obra de Marina Amoreira. Enfermeira-chefe na cirurgia da Santa Casa, era solteira, vivia sozinha, fazia um curso de cerâmica esmaltada e tinha um gato idoso, Mingau, com câncer, mas não admitia aplicar uma injeção letal em seu companheiro por dezoito anos.

— As pitangas estão maduras — ela murmurou. E eletrizou Brito com a chama azul daqueles olhos: — Sabia que você foi meu primeiro namorado?

Brito não perdeu tempo em convidá-la para degustar uma meca à santista num restaurante chique do Canal 7. No segundo encontro, pedalaram suas bicicletas pela ciclovia ao longo da avenida, e trocaram beijos à beira-mar. Na noite do jantar íntimo, em seu apartamento, ele programou um delivery japonês.

Kampai — Marina brindou, erguendo o massu transbordante de saquê dourado. — A nós.

E desfrutaram um do outro com a gula rediviva dos tempos da viela escura.

 

Sandrão Malerba foi quem primeiro telefonou para saber se ele andava "espetando a ruiva peituda". Brito declarou formalmente que tinha recomeçado uma relação com uma namorada do passado. E quando Armando Leão ligou para especular se ele já estava "beliscando os frutos da Amoreira", afirmou seu status de primeiro namorado da moça.

— Ela disse que nunca me esqueceu — fez questão de sublinhar.

— Ó que coisa meiga… Bem que a Luanda falou, naquele dia: "Seu amigo ficou taradão na ruiva de olho azul". É isso aí, um traste velho que nem você precisa mesmo de enfermeira. — E comentou com alguém ao seu lado: — Não te falei, Lulu? Depois de velho, o sacana deu pra brincar de médico e enfermeira. O amor não é lindo?

Brito ouviu a casquinada gostosa da morena de lábios pneumáticos.

 

Tempos depois, ele constatava que calcinhas e sutiãs coabitavam sua gaveta de meias e cuecas, e vários pares de sapatos femininos tinham migrado para os fundos do armário embutido. Gostou daquilo. Marina devia estar vivendo uma fantasia juvenil. O contentamento dele mesclava desejo, admiração, orgulho, confiança, respeito. Tudo tão diferente da insensatez da juventude. Tinha sido muita sorte encontrar Marina de novo. Ainda em tempo de viver a vida como devia ter sido. Amoreira, amore mio.

Uma tarde, quando bebia um suco de abacaxi com hortelã num quiosque do Canal 6, Armando Leão surgiu trotando, pavoneando seu porte numa sunga minúscula, que tinha sido moda há quarenta verões passados.

— Estava mesmo a fim de falar com você. Assunto sério.

Chupitando um coco verde, Armando comunicou que ele e Luanda pretendiam se casar em breve, a bordo de um navio de cruzeiro que partiria de Santos para Salvador, passando por Búzios e Ilhéus.— O próprio comandante vai oficiar o nosso casamento, olha que bacana. Eu e a Lulu queremos que você e Marina sejam nossos padrinhos. Você tem que reservar logo as passagens.

Um grito alegre vibrou na calçada. Um menino raquítico, confinado numa cadeira de rodas, apontava para o céu. O parapente azul e branco flutuando sobre os prédios da avenida, com seu piloto solitário sustido só pelas correntes de vento.

— Olha que sujeito maluco — Brito falou. — Eu é que não tinha coragem de arriscar meu pescoço desse jeito.

— Não me enrole, velhaco. Faço questão da sua presença no meu casório.

— Não sei se Marina pode tirar licença da Santa Casa.

— São só oito dias. E ainda por cima tem show do Roberto Carlos, cara. De repente, vocês dois entram no clima e resolvem se casar também. São muitas emoções, bicho… Vai ser o dinheiro mais bem gasto da sua vida.

— Não sei. Esse casamento aí vale alguma coisa?

— É uma cerimônia simbólica, ô múmia. Vale pela festa, pela recordação. Temos que celebrar o fato de que estamos vivos. Devemos isso a nós mesmos. Vai fazer bem pra esse coraçãozinho embalsamado — Armando espetou o indicador no peito de Brito.

Um imenso cargueiro dourado e vermelho, o Changsha Star, deixava a baía com fileiras de contêineres empilhados no convés feito cubos coloridos. Ereta em sua prancha de stand up, uma morena de biquíni amarelo deslizava obliquamente sobre as ondas, manejando um remo longo. O sol poente alastrava seu reflexo no oceano.

Então Brito se convenceu de que Amore Mio iria adorar a ideia.

Aquilo sim, era mais divertido do que abraçar boneco do Mickey Mouse na Disneylândia.

 

 

setembro, 2022

 

 

 

Luiz Roberto Guedes, poeta, escritor, tradutor, letrista e publicitário. Nasceu e vive em São Paulo. Publicou Calendário Lunático/Erotografia de Ana K, poemário bilíngue, português/italiano (2000), Minima Immoralia / Dirty Limerix (2007), a novela histórica O mamaluco voador (2006), e a coletânea de contos eróticos Alguém para amar no fim de semana (Editora Annablume, 2010). Organizou Paixão por São Paulo, antologia poética paulistana (2004), com 72 poetas, de 1921 a 2003. É autor de vários livros juvenis, como Lobo lobão lobisomem (1997), Treze Noites de Terror (2002), Armadilha para lobisomem (2005), O caçador do arco-íris (2007), e Meu Mestre de História Sobrenatural (2008), obra selecionada pelo Proac – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Suas obras Treze Noites de Terror e O Livro das Mákinas Malukas foram adotados pelo MEC dentro do PNBE — Programa Nacional Biblioteca na Escola. Ganhou o Prêmio Escriba de Contos (1997), Prêmio de Poesia Lilia Pereira da Silva (1999), Prêmio de Poesia Helena Kolody (2001) e o Prêmio Nacional de Contos de Ficção-Científica (2007) da revista SCARIUM. Letrista sob o pseudônimo de Paulo Flexa, tem parcerias com os compositores Luiz Guedes & Thomas Roth, Beto Guedes, César Rossini, Madan, entre outros.

 

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