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No pestilence had ever been so fatal, or so hideous.

"Nunca uma peste havia sido tão fatal ou hedionda".

Edgar Allan Poe

 

 

O Príncipe precisava tomar medidas urgentes. A Peste dizimava o reino, um terço dos súditos havia morrido, e o restante, sem nada a perder, estava a um passo da sublevação. Depois de muito pensar, ordenou que mil pessoas saudáveis fossem selecionadas entre os membros da nobreza para viver com ele no Mosteiro da Salvação, construído no alto da mais alta entre as montanhas.

Os primeiros da lista, o próprio Príncipe escolheu com extrema minúcia e isenção ao incluir dezoito membros da sua família, exceto o irmão de que não gostava e dois primos insolentes. A monotonia do processo, no entanto, logo lhe rendeu inspiração para repassar a faina aos conselheiros econômicos, que, além de tudo, deviam conhecer melhor a riqueza dos cortesãos.

Recolhidos por uma dúzia de helicópteros, sem demora chegaram ao pátio do castelo os doze membros do Conselho Magistral, oriundos dos mais longínquos feudos do reino. Assim que se viram na grande távola de reuniões, os conselheiros eliminaram de pronto a hipótese de levar quaisquer crianças ao Mosteiro da Salvação, pois crianças, naturalmente, sempre se podia fazer. Conquanto principiassem listando parentes e apaniguados, os menos afeitos aos cansativos embates verbais não resistiram ao indescritível prazer de apunhalar alguns de seus pares, o que imediatamente gerou novas vagas.

Os sete conselheiros restantes, após garantirem suas nunca desmedidas cotas, abriram uma disputa entre os cortesãos, premiando os que mais ouro e joias pudessem oferecer, através de beneméritos Leilões de Salvação. Quando a lista chegou próximo ao limite, os conselheiros estimularam o assassinato dos selecionados pelos que haviam ficado de fora, e instigaram, com o único propósito de se divertir, a carnificina entre pessoas da mesma família. Atos que jamais excluiriam o vencedor do mais que justo pagamento de ingresso na lista, mesmo se já quitado pelo familiar extinto. Tudo faziam para cumprir com o máximo de esmero e dedicação suas mais altas funções de aconselho.

Por mero engano, dois conselheiros acabaram por falecer em meio à luta fratricida, o que causou imensa dor a certos eleitos, mas também regozijo entre os ainda candidatos, já que dezenas de vagas se abriram em razão de não existir mais um conselheiro que as sustentasse. Por fim, tamanho o doutoramento atingido pelo Conselho Magistral, tudo o que fosse removível e tivesse algum valor foi parar nas mãos dos cinco prestigiosos conselheiros. E, salvo os novecentos e noventa e cinco nobres recolhidos ao pátio central, não restou um só cortesão vivo. Tal fato não causou remorso a ninguém, muito menos ao desatento Príncipe, visto que, como benevolamente acreditavam, a Peste alcançaria o castelo de qualquer maneira. Quanto aos súditos espalhados pelas terras do reino, que tentavam sobreviver ao pagamento das taxas de juros senhoriais, às dificuldades de encontrar trabalho e à terrível ameaça da Peste, os escolhidos só se recordavam deles para se vangloriar da sua própria condição de privilegiados a caminho da salvação.

Enquanto a nobreza se dirigia ao Mosteiro, deixando para trás jatinhos e carros de luxo, aos quais todos imaginavam retornar algum dia, os servos e soldados fugiram do castelo em direção à largueza dos campos para se unir às já sublevadas legiões guerreiras, buscando parentes livres da Peste que os pudessem abrigar. Aos conselheiros, atarefados em conduzir carruagens de quatro parelhas de cavalos repletas de pertences, essa fuga não abalou. Estavam convictos de que mercenários da espada e da tinta eletrônica submeteriam os fugitivos acaso sobreviventes quando a Peste cedesse.

Preocupados apenas em se acomodar nos aposentos mais amplos e com melhor vista, a marcha dos cortesãos produzia um alarido de festa. Ao se instalarem no Mosteiro, isolados do mundo e da morte, perceberam que não haveria ninguém para preparar as refeições, limpar os cômodos ou esquentar a água do banho de paninhos, e foram dormir, sob guinchos e protestos, do jeito que chegaram, as mulheres com os vestidos suados e os homens sem tirar as gravatas úmidas de perdigotos.

Jactando-se do ágil raciocínio, os conselheiros magistrais logo perceberam que ali não teriam ninguém para cultivar cereais e repor o pouco que havia na despensa; ninguém para cuidar dos cavalos, vacas, porcos e ovelhas previamente enviados; ninguém para carnear, cozinhar, tecer, produzir vinho, reparar muradas e fabricar utensílios; ninguém para diverti-los com acrobacias, danças, poemas, gravuras e teatro; ninguém para protegê-los de uma possível invasão armada dos súditos ou de exércitos de príncipes rivais; ninguém para ser mandado ou servir. Enfim, não haveria sequer alguém para despejar os penicos na manhã seguinte.

Os membros da corte, em função da secular rejeição ao trabalho, não aceitariam se tornar serviçais de confrades. Assim, o ouro e as joias que os conselheiros haviam reunido com tanto esforço, símbolos milenarmente aceitos da riqueza, ali não valeriam nada, não serviriam nem mesmo para obrigar um cortesão a fazer alguma coisa.

Rapidamente, os sábios conselheiros econômicos entenderam que, para continuar a viver como viviam, precisariam submeter e escravizar os cortesãos, mas como estes sentissem disposição idêntica, defrontaram-se todos em sangrenta luta, na qual se serviam de armas brancas, punhos brancos, unhas brancas, dentes brancos e qualquer utensílio ou parte do corpo que fosse útil para submeter e, com o recrudescimento da luta, aniquilar os oponentes, o que também era propício à economia de víveres.

Primeiro morreram os velhos, depois as mulheres e os jovens, e por fim, superando a fatalidade da própria Peste, mataram-se uns aos outros como ratos famintos numa gaiola de pedra, restando apenas o Príncipe. Vendo aquilo, e não tendo mais a quem subjugar, resolveu fazer o que era extremamente indicado para os príncipes nessa situação, atirou-se da murada do penhasco.

A epidemia cessou logo após o fim do Príncipe e dos conselheiros, e a multidão sublevada se organizou de maneira diferente. Elegeu um governante de suas fileiras, planejou a vida social segundo suas necessidades e abriu as ruínas do refúgio da nobreza aos turistas, com o sugestivo nome de Mosteiro da Peste.

 

 

junho, 2022

 

 

 

Sidnei Schneider é poeta, ficcionista, tradutor de poesia, residente em Porto Alegre. Publicou De rua e sangas (Umespa, 2ª ed. 2019), Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012; Amazon, 2020), Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997), entre outros livros. Prêmio Açorianos de Divulgação literária, Prefeitura de Porto Alegre, 2008. Editor do projeto de incentivo à leitura "Ler para ver além", da Umespa, que distribui dezenas de milhares de livretos em escolas públicas e realiza debates.

 

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