Eram três da tarde quando Isidoro voltou para seu apartamento, batendo a porta com força um pouco mais que a necessária. Sentou-se no sofá, a cabeça e os braços jogados na cabeceira, olhando o teto. Favoreciam a sua vontade íntima de ficar só e aquele silêncio o serviço de Júlia, sua esposa, a essa hora no meio de seu expediente, e a ausência das crianças, uma na creche e outra na escola (2ª série vespertina).

"Que sensação!", ele pensou, deixando um pouco de lado o que lhe acabara de ocorrer para se concentrar no instante. Fazia tanto tempo que não conhecia seu lar banhado naquela tonalidade de um claro azul com um amarelo solar! Quando saía de casa, a aurora não se consolidara de todo, ainda num embate intenso com a madrugada então moribunda, mas resistente. Quando retornava, o sol já de há muito voltara para seu leito, dando lugar ao diamante negro com pouco brilho, cortesia dos ares da noite urbana. Certamente a folga, sempre única e alternante entre o sábado e o domingo no decorrer das semanas, era um diferencial, mas como as horas voavam! E como a sensação de proximidade de mais uma semana de trabalho consumia todo o dia de descanso!

Ademais, sábados e domingos não se comparavam com os dias da semana. Havia algo nesses dias que se distinguia dos fins de semana...

No entanto, tudo isso agora iria mudar.

Desviando o curso de seus pensamentos, subitamente, no segundo andar daquele apartamento onde vivera boa parte de seus quarenta anos com a família que construiu, ouviu, ao longe, um som familiar que se apresentava baixo e ia aumentando progressiva e muito lentamente, como uma canção posta no aparelho de som a que se aumentava o volume. De imediato a canção, que particularmente não era de sua preferência, despertou uma sensação indescritível, mesmo forte, acentuada sem dúvida pela pacata e agradável tarde ensolarada. Era a famosa "música do gás", mais precisamente Für Elise, de Ludwig Van Beethoven.

Isidoro então fechou os olhos, e sentiu a mão de sua mãe segurando firme na sua, de onze anos, ambos contornando as pessoas amontoadas na feira semanal de quarta-feira, ao lado da COHAB, onde residiam, na margem da cidade. De repente, o homem via com mais nitidez o menino naquele lugar esquecido de seu passado, e isso porque não era apenas uma imagem, mas a sensação junto, que o menino entediado, com a percepção embotada pelo hábito, não poderia mesmo sentir. Assim transportado, o adulto estava livre de tudo, do fastio de ter que acompanhar a mãe, do calor da tarde, do desejo de estar brincando na área do condomínio etc., e livre assim conseguia ver com mais nitidez a beleza do cenário, do lugar, até da imagem de algumas pessoas com seu modo de vestir que já não existia, e tudo lhe parecia precioso, em especial aquele retrato de uma tarde ensolarada do subúrbio e a arquitetura urbana de seu antigo lar.

Tudo, naquele instante passado, justamente conduzido pela melodia incansavelmente repetida da "música do gás".

Para além da sensação momentânea, lembrou-se de que naquele mesmo dia participara de um jogo de futebol na quadra do condomínio. Em suas férias escolares, a fim de ocupar a garotada, foi organizado um campeonato simples, nada muito relevante, mas que possibilitou ao então menino demonstrar seu talento precoce no esporte. Em meio a tantos elogios ao seu futebol, aquela sugestão, que então vinha sendo o sonho alimentado secretamente pelo jovem: entrar para a "peneira" de um grande time e fazer carreira. Ser um profissional.

Um sonho um tanto ordinário naquele tempo, mas ainda sim um autêntico, um vívido sonho.

Vagou o olhar pelo apartamento, com uma sensação de novidade como se, de alguma forma, tivesse despertado em sua consciência o olhar do menino de outrora. Surpreendeu-se assim até onde tinha chegado, sendo que antes jamais imaginara tudo aquilo em sua vida. Na geladeira refinada, na TV de 40 polegadas, nos móveis estilizados, enfim, em tudo via a marca honrosa de uma vida bem-sucedida. Por trás de cada elemento conseguia enxergar o pedaço de vida que de certa forma aquelas coisas guardavam, além de, claro, o tempo vital empenhado para adquirir tudo.

O carro do gás que avançava pela avenida agora ia parando em frente ao condomínio para atender um cidadão.

Todos aqueles pertences, além da bela família que construíra, justificavam tudo, mesmo a demissão humilhante que sofrera naquela manhã. Teve de ouvir aquela justificativa padrão de "corte de gastos", o que não explicava nada a não ser que não fora competente o suficiente a ponto de fazer valer sua permanência sobre um outro funcionário qualquer, reputado mais eficiente que ele. E isso depois de tantos dias empenhados, tantas folgas canceladas e horas extras no escritório! Sem falar nas importunações do supervisor, sua condescendência diante dos subordinados, seu gênio terrível que tornava um belo dia perdido na clausura das quatro paredes de um escritório, um purgatório intolerável... Mas não importa: considerando sua experiência, não ficaria muito tempo desempregado. Podia até conseguir algo financeiramente mais proveitoso.

Mas não seria aquele sonho perdido de jogar futebol.

Suspirou cansado, embora claramente de um cansaço que nada tinha a ver com um dia de emprego...

"Que foi que eu fiz da minha vida?", sussurrou.

Olhou para as coisas ao redor, fora, e para os vinte anos decorridos desde o primeiro emprego, dentro, e não reconheceu em nada daquilo um grão que fosse de seu eu. Sim, houve a satisfação de ser bem-sucedido no que fazia (na verdade, o melhor), mas era muito pouco para justificar a vida. De seu, apenas a mulher e os filhos. Todo o resto foi adulterado.

A melodia vinda do carro de gás acabou por se sobrepor a todas essas considerações. Ela lhe fechou os olhos e pacificava sua alma, enquanto o sol banhava seu corpo e a brisa vespertina alisava sua pele. Tudo isso, e o leve ruído urbano ao redor nos eventuais automóveis, o avião cortando os ares, os cães latindo ao longe, entre outros sons, tudo se harmonizou em algo vital que compunha a tarde, uma tarde de dia de semana, única exatamente por isso, há tanto tempo desconhecida do fadigado trabalhador ocupado em cumprir seu papel no quadro social.

Abriu os olhos e voltou sua vista ao trabalhador que dirigia o carro e entregava o gás. Como seria sua vida? Qual relação interior tinha com aquele seu ofício? Aquela canção, tão conhecida por tantas pessoas... Ela despertava nele aquela sensação intraduzível da tarde como o fazia nele, Isidoro? Por alguns instantes chegou a ponto de fabular sobre a vida daquele homem: família, residência, rotina, até mesmo salário e preocupações. Foi um mero instante ocioso (poderia se entregar a muitos daqui pra frente), um exercício de imaginação, contudo, que se desfez ao observar nos gestos, nas expressões do trabalhador um estado familiar de espírito.

— Somos ruínas do que fomos...

O carro seguiu seu rumo vagarosamente, desvanecendo-se a música no ar. Isidoro olhou o relógio e constatou que estava próxima a hora de buscar seu filho. Dispensou pelo interfone a senhora encarregada de o buscar, e foi ele mesmo ao seu encontro, na escola de ensino fundamental I.

Foi com surpresa que o garoto se deparou, já próximo ao portão, com o pai. De mãos dadas, ambos voltavam devagar, o pai perguntando ao filho como fora o dia, o que aprendeu. O garoto lhe contava tudo com um acento de entusiasmo pouco comum na fala, e o pai se alegrava intimamente com a ideia de que sua presença inesperada tinha algo a ver com isso.

Na curva do quarteirão onde ficava a escola, ouviu ao longe, perdida em meio à sinfonia de vozes e motores da vida urbana, a melodia do carro de gás, entoada quase inaudivelmente...

— Filho, você se lembra do que o pai disse quando você falou que queria muito fazer o curso de pintura da Belas Artes?

— É meu sonho, pai, mas não tem problema. O senhor já explicou e eu entendi que o dinheiro...

— Esqueça o que falei. Na próxima segunda a gente vai até à escola.

"Que uso mais adequado para uma rescisão de 20 anos?", pensou, olhando o horizonte perdido.

 

 

junho, 2022

 

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor de Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e de Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018), livro de poemas. É colaborador do jornal Rascunho e desta revista Germina. Reside em São Paulo.

 

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