OS CARAS QUE PISARAM NA CAUDA DO TIGRE

 

"Manolo"

 

Secretaria de Segurança Pública

Superintendência da Polícia Técnico-Científica

Instituto de Criminalística

"Perito criminal Dr. Marcel Lamartine de Almeida"

 

 

São Paulo

Cidade

B.O. —

I.P. — 004/90

Proc. —

O.F.

R.E. — 01/040/0436/90

 

Laudo Nº 205/1990*

 

Núcleo de Criminalística

 

Natureza: Assassinato

Data: 20 de Fevereiro de 1990 msg. 275-b/90 h.: 22h06min

Locais: Rua Coronel Costa Souza, 101 — Jardim - Sp

 Rua Everaldo Gusmão, 23 — Jardim - Sp

 Rua Adonias Barbosa, 3 — Jardim - Sp

Vítima(s): A esclarecer.

Averiguado(s): A esclarecer

Requisitante: Dr. Douglas Pôncio Vilaça

Delegado de Pol. Assistente da 2ª seccional de Polícia

Relatores: Peritos Geraldo de Monteiro

     Manuel Fagundes Octávio

     Bruno Rodriguez

 

 

 

*Excertos. Laudo unificado.

 

 

Natureza do Exame

"Homicídio"

 

Aos 20 dias do mês de Fevereiro do ano de 1990, na cidade de São Paulo e no núcleo de Criminalística do Instituto de Criminalística, da superintendência da Polícia Técnico Científica da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo foram designados os peritos criminais Geraldo de Monteiro, Manuel Fagundes Octávio e Bruno Rodriguez, para procederem ao exame referenciado nos logradouros retro-especificados sob a responsabilidade da autoridade policial, Dr. Douglas Pôncio Vilaça, delegado de polícia assistente, para serem respondidos os seguintes quesitos:

1º) — Houve homicídios?

2º) — Quais suas causas?

3º) — Não sendo possível precisar as causas, quais as mais aceitáveis?

4º) — É possível, com base nos indícios, estabelecer uma ligação entre as mortes?

5º) — Os indícios e eventuais declarações ou testemunhos permitem precisar sua autoria?

 

OBJETO DO EXAME:

 

Os objetos do exame são o terreno baldio situado na Rua Coronel Costa Souza, nº 101; a residência de número 40 situada na rua Everaldo Gusmão, nº 23 e o beco situado na rua Adonias Barbosa, nº 3; os três logradouros situados no bairro J..., Zona Sul da capital, lugares estes onde ocorreram três mortes violentas.

 

DOS FATOS:

 

Consta na requisição dos exames que por volta de 22h06min de 20 de fevereiro ocorreu intensa rajada de tiros no terreno baldio situado na Rua Coronel Costa Souza, nº 101, local onde foi encontrado corpo do jovem identificado como "Manolo" por um dos declarantes, não sendo encontrada cédula de identidade junto ao corpo. Aproximadamente 22h50min, a residência de número 40 situada na Rua Everaldo Gusmão, nº 23, foi alvejada por vários tiros, sendo encontrado nela o corpo do jovem identificado como Rafael Sousa de Alencar, 23 anos. Próximo ao mesmo horário, no beco situado na rua Adonias Barbosa, nº 3, foi encontrado o corpo do jovem identificado como Vinícius dos Santos, 20 anos, também alvejado por vários tiros.

 

EXAMES:

 

  1. Dos locais examinados

 

a.1) Do local de achamento do primeiro corpo

 

Trata-se de um terreno baldio situado na Rua Coronel Costa Souza, nº 101, cujo acesso principal se dá através de um cercado de madeira regular que apresenta um vão de 2 metros de largura, com lascas de madeira pendentes.

A 2,6 metros desse vão de acesso ao terreno encontrava-se um cadáver do sexo masculino, que será descrito em item próprio. Ao seu redor foi encontrado um projétil de HK54 compatível aos demais alojados em seu corpo e aos das demais vítimas, a serem descritas em item próprio, bem como no item Exame de Balística.

O terreno é regular, com esparsas concentrações de matagal de nível regular. O local encontra-se a 2 km do local do segundo logradouro retro-especificado e a 2,6 km do local do terceiro.

 

a.1.1) Do primeiro cadáver

 

No local retro-descrito de acesso ao terreno, a aproximadamente 2,6 metros, foi encontrado cadáver de sexo masculino.

Trata-se de um cadáver aparentando 17 anos, cor negra, medindo 1,73 m, desprovido de qualquer documento, trajando camiseta bege-escura e jeans azul-claro roto.

(...)

 

a.1.2) Do exame perinecroscópico

 

Examinando externamente o cadáver, foram observados os elementos a seguir descritos:

— O corpo foi alvejado oito vezes, sendo uma no flanco inferior direito, quatro na região torácica, uma na jugular, uma na genitália e uma na cabeça da vítima.

— Na região adjacente ao flanco direito alvejado havia extenso hematoma.

— O projétil que alvejou a região genital destroçou o sexo da vítima.

 

(...)

 

Informes obtidos através dos termos de declarações:

 

Cláudio Ferreira Sobrinho

 

"... que no dia do ocorrido, o declarante encontrava-se num ponto de ônibus paralelo à rua do beco, voltando para sua casa na região central após visitar a namorada; que aproximadamente às 22h10min ouviu dois disparos e, após olhar por uma fresta do cercado, viu a vítima ao chão e dois jovens correndo para o lado oposto em que jazia (e do vão de acesso); que após presenciar tal cena, evadiu-se o mais depressa possível do local, não tomando ciência de mais nada (...)

 

José Martins Moreira

 

"... que no dia do ocorrido, o declarante se encontrava adormecido na extremidade direita do terreno, descansando após ingerir bebida alcoólica em excesso; que ali mesmo costuma dormir, sendo morador de rua; que a vítima alvejada no local atendia pelo nome de "Manolo", o declarante desconhecendo seu verdadeiro nome, origem ou família; que a vítima e os dois jovens que com ela se encontravam eram traficantes novos naquela região; que esses dois jovens atendiam pelos nomes de Rafael/ "Vaguinho" e Vinícius/ "O cabeça"; que muitas vezes tinha o declarante lhes avisado que aquela região tinha "outro dono"; que, a despeito do aviso, o declarante desconhece a identidade do "outro dono" e se encontra impossibilitado de reconhecer os homens que executaram a vítima (...)"

 

(...)

 

Da identificação das vítimas

 

Ao exame papiloscópico, realizado no instituto de identificação, não foi possível definir a identidade da primeira vítima. Os peritos não descartam a hipótese de que não possuísse registro geral.

Relativo às demais vítimas, ficou comprovado, mediante cédula de identidade que portavam, que as mesmas se tratavam de Rafael Souza de Alencar, 23 anos, e Vinícius dos Santos, 20 anos.

(...)

 

 

Rafael

 

 

—... Caramba, meu!... mas que... que merda!... Mas tá branco: quem é que sabe daqui?... Firmeza!

— Quem tá aí? Quem bateu a porta desse... Olha só! Olha quem resolveu fazer uma visita! Seu cabarrau! rata-zana de feira! Não é você que fica ralando o dia inteiro...

— Agora não, tchochozinha! Sossega aí!

— Não é vo-cê que fi-ca ra-lan-do o di-a in-tei-ro pra cuidar de tudo e ainda lavar seus pano de bunda!

— Não, eu sei, Vân... Morena... eu sei, mas você agora tá perdendo a linha.

— Você falou Vânia?

— Que Vânia, amorzinho? Cé tá é viajando...

— Cê ia falar Vânia sim, seu farrista, cê ia!...

— Eu ia falar: "Vamo sentar um pouco e tomar uma cerva", só isso... Pelo amor de Deus, cê tá falando muito alto, Morena. Olha, vamo lá pra cima e...

— Não vem com esse papo pra cima de mim!... Olha pra mim, tá escutando?... É difícil administrar tantas sirigaitas por aí, né mesmo, senhor gerente superior das boca de fumo...

— Morena, olha, vamo lá pro quarto que é melhor pra conversar e...

— Vá te catar! Vá te catar! tá me ouvindo?... Para de olhar pros lados! Meu Deus, minha mãe tinha razão: por que eu fui me enroscar com o primeiro que apareceu... Cê quer conversar o quê, hein? Já não bateu bastante papo lá fora?

— Não vem com esse papo, Morena. Cê sabe que eu não fico botando galho na tua cabeça, e depois: que história é essa de "primeiro que apareceu"? Quando eu te dava um trato gostoso cê num falava nada e ficava curtindo até.

— Seu papinho de cinco minutos?

— Que merda é essa que você tá falando, mulher?

— Nem pra isso cê presta, num dá conta... fico pensando o Marcola, aquela Jussara foi muito burra de se metê com aquele pé rapado do seu amigo Manolo, porque o Marcola sim que é dono da boca, um luxo só, tem um casarão enorme e talvez não seja só o casarão...

— Cala boca!!!

— Deve ser melhor que essa merreca que cê tem aí, e mesmo que não fosse, a noite toda ia ser uma curtição só, num colchão macio, lençol de seda, empregada, e eu tenho certeza que mais que umazinha ia rolar...

— É bem a sua cara. Você quer luxo, né, sua largada? Quer ir no banheiro e limpar seu bumbumzinho com cetim, sem falar que na hora do "vamo ver" cê ia querer soltar seus peido em colchão de grã-fino...

— E eu mereço o quê? Esfregar o chão vendo a gazela jogada no sofá, de short arriado tipo traseiro de mecânico, fabricando bolinha de gude com meleca de nariz pra brincar de tiro ao alvo nas parede...?

— Chega, meu, chega...

— Vai vir pra cima pra provar que é homem? Vem! Vem!

— Cê tá levando uma! Tá de provocação, né? Vamo ver então se você... peraí, peraí, psiu! Que barulho foi esse?

— Tá vendo? Olha! Cê acordou o menino!...

— Cadu...

—... Calma... calma, bebezinho! Olha quem tá aqui, olha o papai...

—... Meu Deus! O que eu... Morena, escuta! Eu tenho uma coisa pra falar!

— Por que você tá branco desse jeito?

— Só escuta. Olha, cê pode não acreditar, mas no fundo eu queria tirar o Cadu dessa merda toda...

— Como assim?

—... Escuta! Eu não queria que ele vivesse isso, que se sentisse abaixo dos all-star de filhinho de papai viciado sempre acima de nóis, mesmo babando por um bagulho feito cachorro louco... merda, eu juro que é verdade, eu juro!... Eu tenho que metê o pé!

— Mas pra onde você...?

— Só ter vindo aqui achado que tava tudo bem mostra a merda de pai que eu sou... eu só não queria ter a vida presa num crachá, empurrar pro alto da ladeira a pedra que no outro dia vai voltar pro mesmo lugar... merda, eu tô falando demais. Eu tenho que metê o pé!

— Volta aqui, Rafael!

— Eu vou sair aqui pelos fundos... olha, nem pergunta por mim, vai ser melhor... Nunca aturei ninguém acima de mim, acabei ferrando com tudo... Morena, me desculpa, na real! Se acontecer alguma coisa não diz pro caduzinho qu.

 

 

Vinícius

 

 

"'Já falei que essa tua mania de livro não vai te levar pra lugar nenhum...'

Não tem como parar! Não tem como parar!... por que essa lembrança agora?

'... Pra lugar nenhum! Larga essa merda e vem me ajudar a embrulhar esses papelotes'.

Olha pra onde me levaram. Já passaram o Manolo. O Cadu vai ser o próximo? Seu pai não viu o limite. Rafael com seus delírios. E deu com a cabeça no teto. Eles estão atrás de mim, droga! Mais que droga, Manolo, que droga! Se meteram logo com o dono. Botou seu filho no fogo, Rafa. '... Não vai te levar pra lugar nenhum!'. Cê nunca se importou mesmo, pai.

Não, não posso vacilar! Eles estão aí atrás!

Esse... Muro... Vou cortar a Carlos Chagas. Antes eu pulava fácil. 'Joga a bola por cima do muro, Vinícius!'. Viro à segunda co'o Ipê. O muro vai segurá-los. Quando moleque era bem mais fácil. Até que eu não jogava tão mal. Ali eu desço o escadão da Almir. Mas então para onde é que eu vou, pra onde? 'Vamo pega os bagulho em casa, Cabeça'. Mas onde era então a minha casa?

A minha casa... Onde a minha casa?

'Quem manda nessa casa aqui sou eu e tá acabado!'.

A casa que você manda agora, pai; a sua casa a sete palmos de nós...

'Que jeito esquisito de falar é esse, moleque?'

Passo cancerígeno das horas mortas. A lenta danação de qualquer vontade. A rua toda deserta atrás de mim. Deus sabe que não queria nada disso! Mas eu podia ter escrito diverso o conto de minha vida...

'Vinícius, vamos ler esse livro?'

...Mãe.

Você lia muito bem e adorava que eu lesse, foi quem me deu os livros que tinha. Estacionei na oitava série, foi logo depois que você se foi. Depois disso veio a vida com o pai... Você nunca se perdoou por dar ao filho um pai traficante... mas também esse olhar que lê tudo ao redor.

'Quando tiver mais idade, eu quero que você leia este aqui.'

'Esse? Do que fala esse Irmãos Karma... Karama...?'

'Quando for mais velho, você consegue entender'.

Seu coração não aguentou, eu sei. Era a minha proteção contra aquelas seringas e papelotes. E como se matava, estendendo até mim seu perfume! Nós dois chafurdando naquela terra de esterco... ela sentava sozinha no quarto quando ouvia o silêncio. Parecia comigo (moleque que eu era) quando lia, mas seus cotovelos sobre os joelhos, as mãos segurando a cabeça inclinada, diante dos seus olhos as páginas que se voltavam, sem tempo de ver em cada uma mais que uma imagem, eterna ferida gangrenando. O livro não avançava, só regredia, e as páginas... com quanta dor os olhos cansados já não as tinham relido!

'Mãe, não consegui entender essa parte aqui, cê pode me explicar?'

Ela não se irritava porque eu interrompia de propósito sua leitura. Sorria, amava, e pegava meu livro.

Sua luta viveu mais que ela própria. Como deixei que meu pai me dominasse por dentro? Nunca larguei os livros porque eu a sentia em cada página, mas quando dormia... eu sei que ela chorava sobre os retalhos das veias do meu braço. E em todas as brisas minhas, sempre a via naquela posição em que lia seu livro amargo, mas lendo pra mim. E eu virei esse aborto ao contrário, larguei seus valores e a escola.

'Você vai escolher mesmo esse caminho?'.

Lilian.

'Não é o caminho certo, você é tão inteligente!... Pensa direito, para o seu próprio bem, eu só penso no seu bem, desde o primário... você tá me ouvindo?...'

'Ah, Lilian... eu dou sempre muito trabalho...'

'Você tá muito confuso, a sua mãe... não larga a escola...'.

Depois de tantos anos, tantas minas, tantas camas, e essas cenas são as mais nítidas na memória, como se o mais fosse sonho, ou pesadelo, ou mentira, ou a merda que fosse... E eu jamais toquei você, menina. E nem você a mim. E nós nos tocamos mais do que qualquer um pode tocar.

'... Não larga não... não vá...".

Tudo se foi.

Há quanto tempo não olho para o céu, como agora! E mesmo agora, nessa fuga, deixando para trás as estrelas. E, apesar de tudo, como adorava olhar a noite! Me achavam esquisito, talvez até minha mãe, mas a lua sempre nesse céu iluminando mais que o dia a mente dos homens! A noite em volta a ajuda, escondendo tudo. E as estrelas são como várias promessas de vida para a vida de um homem, com seu brilho que achamos eterno, e que mais forte brilha quando diante da morte.

'É a noite que inspira os escritores, sabia, filho?'

De onde vem essa calma estranha? O que em mim está tranquilo com a morte nos meus passos? Estou correndo? Mas não sinto minhas pernas. E agora nem mesmo cansado como antes... Será que me passaram sem eu mesmo perceber? Será que tô correndo em direção ao Tribunal de Deus, e tudo isso em volta, e esses pensamentos, e essas lembranças são as provas que depõem contra mim? Por que continuo se não é mais o medo que me move, mas qualquer coisa... qualquer coisa entre a ilusão e a indiferença?

Que estranha estrela é aquela, menor que as outras, mas que persiste sempre à minha frente? Estaria, esse tempo todo, me guiando?

...Mãe?!...

Volta pra Deus, e guarda apenas a minha lembrança... Ah, Deus, esse olhar! Eu... sinto muito... Há vida na senhora, mas não posso voltar pra onde vim, onde Deus poderia limpar minha sujeira, e a senhora leria com alegria meu nome no Livro da Vida. Mas não há vida sob esse brilho do céu, as páginas já não retrocedem e a de agora é vazia e inerte, mãe. Você queria que eu fosse um escritor, e que pudesse preencher as páginas do breve conto... mas nada, mãe. Me desculpe.

Há sempre mais vida em um instante do que em anos... e mais nada."

 
 
 
 

BUSCANDO A DEUS

 

 

(Escritura constante no livro dos testemunhos sagrados do século XXI)

 

Residia na Rua Amparo, uma quase travessa que, à esquerda, constituía um cruzamento com a avenida de nome Akrasía, altura trigésima quarta, e que, à direita, terminava no acesso à Rua Iluminação, altura milésima trigésima, região sul de São Paulo, Renato Assunção, jovem filho unigênito de Maria D'Alva e José Onofrio de Assunção.

Ocorre que, desde em idade mais tenra, o garoto sentia uma fome em si.

Ora, seus pais que na idade de trinta anos ainda gozavam de uma vida intensa, como namorados recentes, não importunada pelo filho ajuizado e pelo serviço, sequer pressentiam-lhe a fome.

E não a souberam extinguir quando, ao sétimo ano de sua vida, o menino perguntou-lhes: Mãe, pai, Deus existe? Onde tá ele?

A isto eles respondiam-lhe, enternecidos: Claro que existe e está lá no céu olhando pra você quando é obediente.

E tal resposta a mente guardava enquanto pequenos olhos, no topo da escadaria do quintal, percorriam até onde podiam a extensão infinita do céu, embora em vão, mesmo Deus ali estando.

E por conta dessa fome, sem deixar de ser um garoto comum, Renato fizera catecismo, lia constantemente a bíblia e frequentava as missas semanais. Apenas não era membro do grupo de jovens, estes se interessando mais em si que na Palavra.

Mas eis que no décimo quarto ano de vida, deixou paulatinamente a Igreja Católica.

Ora, o motivo não residia nos jovens. Era sim aquele vazio que sentira do catecismo até então. Era aquela normalidade dos fiéis e de si próprio, tão opostas ao Toque de Deus, à Transfiguração. Era aquele costume meramente adquirido e religiosamente mantido, e o não se realizar nas orações.

Um fato, pois, ajudou a precisar as causas.

Folheando a bíblia, deparou-se com a família de Jesus, passagem em Marcos, capítulo terceiro, versículo trigésimo primeiro a trigésimo quinto. Jesus era interrompido em sua pregação por um ouvinte que lhe fazia saber que sua mãe e irmãos lhe aguardavam. A isto, Jesus lhe inquiria quem eram esses, afirmando que apenas aos seguidores da Palavra cabiam tais denominações.

A mente de Renato, apreensiva, tentava buscar outras interpretações, mas era inevitável pensar que Jesus não renegava sua mãe, e sim a essência humana simbolizada nela. Essência oposta ao Espírito Santo, que a fecundou: complexa relação. Era o caso de se pensar que, no que tocava ao Nascimento, o elemento vital era a fecundação, e admitir que em essência Maria fosse sua mãe (de fato o era, mas não em essência) era, então, renegar a Origem Divina. Assim, tornou-se claro ao garoto o simbolismo de termos como "filho de David" e "filho do homem", verdades carentes de essência.

E pensou Renato também a respeito da hipedulia, que cultivou desde sempre. Todos concordavam que o que se sentia por Maria era veneração, diferente da adoração à Santíssima Trindade: Maria não era posta em igualdade ao Deus Triuno. Mas Renato então pensou: Se Maria está abaixo da Trindade Divina, por que também está acima dos outros santos, se compartilha com eles a mesma essência humana? E por que apelamos a ela para interceder junto ao Deus Altíssimo, se justamente por isso Jesus morreu na cruz? Ele mesmo não disse "ninguém vem ao Pai senão por mim"? Maria então é a intercessora de Jesus?

Seu coração apostólico, no cume dessa duna, via adiante uma maior e, após esta, outra mais elevada, no desértico caminho. Estava só, com sua angústia, sem Canaã. Sua bíblia exegética não lhe elucidava o Caminho.

Esse caminho único e estreito não o conduzia de volta. Assim, concluiu que errou em outras paragens, dizendo: É por isso que não senti a Deus e Seu Amor.

E foi quando se viu diante da Igreja Evangélica no número septuagésimo terceiro da Rua Iluminação, ao lado de sua escola e atrás de sua casa, porém distante desta. E ele ali chegou, com passos hesitantes; primeiro ato autônomo de sua vida. Antes, fizera saber a seus pais o Caminho que iria tomar, com hesitação, pois religião não era tema em conversas familiares, mas tradição preservada. Houve desconforto, porém não lhe impuseram obstáculos.

Ao adentrar pela primeira vez a Igreja, a escassez de imagens chamou-lhe a atenção. Dois grandes pilares estendiam-se, laterais ao altar, formando a abóbada principal, bem construída, mas sem as nuances barrocas ou góticas que constituíam a riqueza estética da Igreja Católica. Inscrições como "Rosa de Sharon" e "Leão de Judá", sob versículos, ornavam as paredes. Estas não tinham janelas, em seu lugar havia vitrais, com flores, prados e sóis gravados, em dimensões prismáticas. E no altar, ao meio, o palanque destinado à pregação. E ao seu lado esquerdo, mas próximos, os assentos destinados aos diáconos, presbíteros e pastores. E no extremo direito, o espaço reservado à banda da Igreja. E acima do altar, no plano derradeiro, um vão além do qual se instalava uma bacia batismal de proporções consideráveis.

Estranhamento e encanto se alternavam em Renato diante das orações bradadas, dos rostos contritos, das falas em línguas estranhas e da dança que um fiel em particular executava no meio da Igreja, rodopiando velozmente em seu próprio eixo. Após tais eventos e o entoar de hinos, Renato, entregando-se a tudo como um recém-nascido, não obstante a voz oposta no interior, ouviu a pregação ao fim do culto. Estava em João, capítulo terceiro, versículo primeiro.

E Pensava consigo: Eu fui como esse fariseu, Nicodemos, mestre dos escribas. Tantos anos comungando sem enxergar o Caminho! E no fim eu não li de verdade as Escrituras, como esse homem que nem pôde entender o que era Nascer de novo. Meu Deus, obrigado por revelar-me a Sua Vontade, por falar diretamente a mim!

Não lhe faltou ainda a oportunidade de testemunhar a boa acolhida dos fiéis, em especial a de um membro da mocidade que o convidou para dela fazer parte.

E Eis que no sétimo dia após sua conversão, Renato teve um sonho. Inicialmente, ele viu aqueles fiéis e outros desconhecidos assentados num prado muito florido e, em seu cimo, via a imagem excelsa de Jesus distribuindo os pães que, milagrosamente, acabara de multiplicar. E os fiéis comiam e se extasiavam. E apenas não o fazia ele, Renato, por não haver recebido nenhum, pois esse era um daqueles sonhos-testemunhos, no qual o sonhador não toma parte.

Já o outro sonho, no mesmo sono, foi diferente. Ali estava ele, num deserto inóspito e gigantesco, e caminhava nu. Ventava, os grãos arenosos acariciavam-lhe o corpo sem agredir sua visão, e a noite era fresca e, com sua suavidade unida ao prazer do garoto de se saber nu, produzia uma crescente excitação. Eis que um crânio de dimensões imensuráveis surgia no céu, ao horizonte, pelo trabalho das nuvens enegrecidas. E ao redor, maremotos originados por um sismo desconhecido e lascivo produziam ondas gigantescas de areia. E o crânio então abria a boca descarnada dentro da qual se avistava a maior das orgias, com belos homens e mulheres. E por fim, ele mesmo, Renato, ali se encontrava igualmente nu, com contornos andróginos, e a estender os braços ao seu duplo, o caminhante que, em face de toda essa terrível cena, contorcia o rosto ávilamente, lambendo os lábios.

Despertou assustado, forçando-se a esquecer o segundo sonho. E começou a orar, envolvendo-se na lembrança doce do primeiro.

E a Palavra então o envolveu plenamente nos dias que se seguiram. Seus pais tiveram que se acostumar, embora sua mãe sempre, em qualquer oportunidade, fizesse saber indiretamente ao filho sua desaprovação com a questão religiosa; seu pai quase não lhe falava, por desconhecê-lo. E a ambos irritavam o fanatismo do filho, e sua reprovação a palavrões e seus "rituais" antes das refeições. Impassível, o garoto tudo suportava. "Vim para trazer divisão entre pai e filho", havia dito Jesus.

Entrando em anos, o velho homem agora agonizava moribundo. Renato vivia pela Palavra, sustentando jejuns secretamente sem que uma fibra do rosto imberbe os denunciasse. As orações eram constantes, suportadas por joelhos juvenis que sequer roçaram a água do mar caudaloso e vasto do pecado, ainda que sempre lutasse nelas contra uma anarquia de palavras e coisas.

Pensava: Sem dúvida é o inimigo, tentando atrapalhar minha adoração.

E extintas foram suas antigas e exíguas inclinações e seu olhar se desviava das prostitutas que lhe cruzavam o caminho, quando era forçado a percorrer a Avenida Akrasía. E seguia a Lei a contento próprio.

Olhando o horizonte, Renato começava a caminhar sobre as águas.

Foram cinco meses de uma paz plena, apesar dos problemas em casa. A relação com os demais fiéis havia se estreitado, mas não mediante o ingresso na mocidade ou pelo batismo; este, passo importantíssimo para ser dado afobadamente; aquele, um caminho descartado pela inadequação vinda do fato de que não se via mais como jovem.

Eis que no centésimo quinquagésimo primeiro dia de sua convenção, após o culto, ouviu casualmente uma conversa murmurada entre uma fiel já antiga e suas duas interlocutoras. Aquela tornava manifesta sua desaprovação aos hábitos mundanos de uma diaconisa, di-zendo: Sabem, irmãs, que a fornicação invade a casa do Senhor, a diaconisa fazendo-se conhecer ao irmão da mocidade, e pecando contra Deus?

Ora, o caso em si não podia inspirar cuidados a Renato ("Os escândalos são inevitáveis, mas ai daqueles de quem procederem", dissera Jesus). O caso é que aquela fiel falava em línguas, exaltava-se ao clamar ao Senhor e contraia contritamente a face no culto.

Nessa mesma noite, deitado na penumbra de seu quarto, a sustentar a cabeça com os braços entrelaçados e o olhar fixo no teto, Renato refletia. Sempre creu que o estado de Graça era conseguido à duras penas, quando a iniquidade já não tinha vez. Mais que isso: o sentir a Deus e Seu Amor tornava qualquer mundanidade ao redor insignificante, como falar de horas a alguém que goza a Eternidade. E perguntou-se: Aquela fiel podia estar fingindo?

Mas Renato não podia por em dúvida algo que era coerente à sua crença.

Então ela O sentia, e também os outros fiéis ao redor. Pensou: Deus há sempre de entender que o homem é pecador, mas lhe concede a Graça enquanto se esforça em Seu Caminho. Mas se assim era, nova pergunta surgiu-lhe: Por que não sinto a Deus?

Renato, de fato, esmerava-se na Palavra. Sua escolha alterou sua vida, ele próprio inclusive. Mas justamente o motivo dessa mudança não lhe fora concedido. Entre ele e aquela fiel havia um tempo de devoção ao Senhor, era verdade. No entanto alguns da mocidade compartilhavam dos êxtases dela, enquanto que ele, Renato, tinha com Deus a mesma relação que com uma namorada de quem não se sente o afeto. Pior nesse caso, uma vez que o amante não podia sequer ver a quem dedicava seu amor.

Refletiu um pouco mais.

E pensou: Vou fazer parte da mocidade e me batizar.

E orou pedindo perdão pela maturidade autoapregoada, guardando no coração O Provérbio: "Há tempo para todo o propósito debaixo do Céu". E olhou o relógio, que marcava duas horas e trinta minutos, e deitou-se espantado em estar acordado em hora não habitual.

Foi quando ouviu ruídos distantes. No escuro, ao sair do quarto, constatou que vinham do quarto dos pais, ao final do corredor. E ao se aproximar, tudo ficou mais distinto. Entre palavras impronunciáveis, ali proferidas, Renato ouviu o ranger das dobradiças da cama e o gemido constante de sua mãe, contido em sua força. O corpo do jovem gradativamente foi enrijecendo compassado aos gemidos, e uma gélida sensação deliciosa no estômago o envolveu, paralisando-lhe o corpo. Na mente vazia assomavam sensações.

Mas eis que tornou ao si-Transfigurado-na-Palavra e voltou ao quarto, tomado de repulsa pelo outro.

Nos dias seguintes, seu fervor crescia pelo esforço consciente, e lutava para que em sua mente uma barganha sequer se insinuasse pelos gestos que praticava. E participava das ações voluntárias da igreja, servindo refeições aos mendigos da cidade: estes pediam a Deus por ele, olhando-o com o olhar transbordante de gratidão, enquanto Renato olhava para o céu, faminto.

Mas constantemente o eco daqueles gemidos de mulher que ouvira pela primeira vez — estes mais perturbadores ainda porque eram a imagem transfigurada de sua mãe — circundava sua oração.

E nos dias seguintes as prostitutas da avenida e as alunas da escola apareciam-lhe na penumbra dos olhos fechados, e seus jejuns secretos traziam apenas o incômodo da renúncia autoimposta. A angústia aumentava em proporção à distância da Grande Presença e assim foi que o desespero acabou por impulsionar o batismo nas águas e a comunhão na mocidade. Triste experiência o batismo, em especial. Quando, ao emergir da infusão das águas, foi tomado da sensação do frio ao contato com o gélido ar de inverno, tão intenso quanto o que o envolveu outrora no seu primeiro e desedificante beijo.

E a angústia chegou a seu auge e sobrevinham as tribulações.

Com elas, a dificuldade crescente em comparecer às reuniões da mocidade, aliviando, por outro lado, o incômodo de Renato frente a tanta superficialidade. Os cultos eram prejudicados pelas campanhas em prol da restauração da igreja e, na atual situação do garoto, era de se crer que ele se inseria na Pregação e não o contrário. Sensação acentuada quando, ao perguntar ao pastor como era sentir a Presença de Deus, este respondeu: É toda aquela satisfação que você sente de se saber purificado no Senhor, irmão.

E na oração daquela noite, assim se expressou: Deus, Grandioso Criador... sei que sou um nada, um verme... não mereço, eu sei... mas, por favor... me conceda...

Lágrimas copiosas corriam-lhe pela face, após abrir demoradamente a boca, pois bocejava. A mente concentrava na dificuldade de se concentrar. Estes eram os sinais dos últimos dias.

Não tardou a que Renato sentisse que seu corpo não o obedecia. A consciência da crise tornava mais doloroso o Silêncio que sucedia às preces. Nas idas aos cultos, enveredava pela Avenida Akrasía, num desejo inconsciente de contemplar as prostitutas que aumen-tavam à medida que a altura da avenida se estendia.

E uma espécie de atração depravada pelo próprio corpo o assaltava. Quando seus pais saiam (a suspeita do destino de ambos ainda mais o incitava), agradava-lhe ficar nu pela casa, ao roçar do ar em sua pele. Pele que gozava o toque da própria pele. E a mente se forçava ao não-pensamento.

O ritual, em uma tarde, foi diferente. A mão se ocupou em aquecer as partes frescas do corpo e a encenar o papel da mão de uma prostituta que, suavemente, encarrega-se de acariciar os quadris de um garoto virgem, deleitando-se ainda mais com o fato. O frio no estômago acentuava-se com o aquecer dos membros. O olhar cravado no largo espelho ao lado, disposto caprichosamente a fim de refletir-lhe do pescoço para baixo. E num crescendo, os membros enrijeciam-se e o prazer inédito intensificava com os afagos da mão (o velho homem acariciava o novo). E então, no auge do prazer, o jorro se alastrou pelo chão e tatuou partes do próprio corpo. E o gozo o arrebatou, o êxtase intenso transparecendo-lhe na face.

Eis então que, mal a última gota se fez ao chão, um asco supremo tomou-lhe o ser. A contrição cerrou seus olhos, marejados de lágrimas. Na mente as imprecações, os rogos: Depravado!... Senhor, pela Graça que não me foi permitido conhecer, em Nome de Jesus... por favor...

Mas apenas o Silêncio. Terminou então, como uma mísera criada, a limpar o chão, multiplicando-se o nojo e a tentação de repetir o ato. "Quem perder a vida pelo outro, achá-la-á", com tal versículo, sua mente se flagelava.

Mas o ato, repetido à exaustão em outras ocasiões, tornava-se mais delicioso. A tal ponto que o descuido ocasionou-lhe o trauma de ser flagrado por sua mãe, que o reprochou, dizendo: Então é isso que se ensina nessas igrejas, não é?...

Mas sua mãe se equivocava porquanto nas entranhas tenebrosas do grande peixe, Renato rompera com a Igreja Evangélica.

Naquela tarde de domingo, sua decadência e constrangimento o oprimindo, o garoto saiu sem rumo, e enveredou pela Rua Iluminação na direção oposta da igreja, e subiu até a altura dois milésimos. Imaginava se sua estória não era tal quais as da bíblia e se ele, no fundo, não era também um simplório ou um infante inocente como pareciam ser os personagens bíblicos. Sua estória então talvez tivesse aquela solução óbvia a todos os leitores, menos a ele. Mas em verdade o velho homem não havia morrido e ele também acabou por não entender o que era nascer de novo. Porém havia se entregado sem reservas. Decidiu que o culpado era Deus, concentrando em si grande ódio e melancolia.

E eis que na altura final da rua, deparou-se com uma catedral à esquerda.

E adentrou a catedral (Católica? Evangélica? Ecumênica?) e sentou-se. Três ou quatro pessoas ali distribuídas oravam em silêncio.

E sentado, a olhar o chão, ele se levantou: Afinal, o que é que eu te fiz? Não fui obediente? Não segui a tua palavra? Você sabia o que eu queria, você sabia! Não fiz acordo ou contrato para vida eterna, eu só quis uma coisa... E no final, será que você sequer me olhou?

Apenas motores em procissão na estrada e ruídos ambientes foram a resposta.

E retomou o garoto, dizendo: É assim que tem que ser então? A gente tem que decorar a cartilha de bons modos, levando ela debaixo do braço e no rosto um exagero de sofrimento, e chamar tudo isso de "tua presença"? Essa vaidade de se ver e ser visto como seguidor ideal?

Nenhuma resposta.

E ele continuou: Eu não quero isso pra mim. Um morto se autoexaltando nas vigílias, nos cultos, subindo o monte. Um judeu errante sobre a terra. Dane-se o que pode acontecer. Eu não aceito isso, eu, porque sou isso e não vou me negar. Se seguir o caminho é só isso, eu não preciso de nada...

E ia proferir uma blasfêmia, mas nem pode mentalizá-la porque algo no interior obstou-lhe a vontade. E como tentasse levantar e partir, de súbito veio-lhe a acontecer: sua vista da catedral de repente turvou-se; um silêncio repentino fez-se dominante, mas do mundo ao redor; na mente, espelhante, o mesmo silêncio, fruição, e em seu corpo como que labaredas abrasavam-lhe o ser. Não alegria ou prazer ou dor, porque toda comparação claudica.

Esperaria O Criador que a humanidade a si própria transcendesse, no silêncio jamais alcançado, partindo do Dom Único a ela ofertado no começo da primeira vida, no início dos tempos?

E Renato foi então arrebatado pela carruagem de fogo.

 

 

 

 

[imagens do filme as·phyx·i·a, de Maria Takeuchi e Frederico Phillips]
 
 
 
 
 

Clayton de Souza é escritor, autor do livro Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e colaborador do Jornal Rascunho. Atualmente, trabalha na produção de seu primeiro livro de poemas, Versos de Imprecação Contra o Mundo, em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Reside em São Paulo.