1.

Se o coração pensasse,

parava de bater-me.







3.

Primeiro aprendi a confiar sem medo

depois a sustentar com a tua a minha fé,

é difícil ter fé nas pessoas.


Himmler disse que em Auschwitz

se entrava pela porta e se saía pela chaminé.


Dizem que tudo acontece sob o sorriso de Deus,

se for assim Deus é um cínico,

e sim, eu sei que exagero,

só houve um Himmler,

mas sobram Himmlerzinhos,

sobram milhões de deuses.


You are my home away from home,

por defeito já não falo a nossa língua,

estou cansado da distância,

não é saudade, é velhice,

imagino-te calvo também,

com dentes de plástico também,

surdo e míope também,

a pouco e pouco estou a ficar um dinossauro,

um dinossauro sentado num banco de jardim,

as they say, every park has its pervert.


E tenho uma coisa para te contar,

comprei uma pistola,

como se fosse menino,

como se fosse brincar aos cowboys,

lembras-te, gastámos a infância a brincar aos cowboys,

comprei uma Walther ppk,

a pistola com que Hitler rebentou os miolos,

a 30 de Abril de 1945,

depois de engolir uma cápsula de cianeto,

há pessoas que evitam todas as dúvidas,

cheio de medo de cair nas mãos dos soviéticos,

também eu tenho medo de cair,

de admitir que a vida sem ti não teve valor,

que agora só me comovo com as ervas daninhas

e com as urtigas em flor,

que nunca mais usei a palavra amor.



[Do livro Silêncio sálico, 2020]







15.



Eu falo de nuvens

tu falas do trânsito

e amo a tua orelha cortada,

a rapariga com um brinco de pérola

que há em ti,

o cheiro a cidade na tua nuca.


Eu falo de barcos

tu falas de sapatos

e amo o sabor dos teus olhos salgados,

o cabo dos teus ombros,

os teus sonhos em escombros,

os teus sapatos a precisar de solas.


Eu falo de pássaros

tu falas de gatos e outros predadores

e amo o teu sorriso monaliso,

os teus seios, o teu sexo, os teus pés

que lavo com a minha língua,

que sujo com a minha língua.


Eu falo de Abril

tu pedes para te abotoar os botões

enquanto ao espelho pintas os lábios,

e dás-me um beijo de adeus encarnado

que fica na minha cara como uma cicatriz de guerra,

e amo esse embuste de nos amarmos uns aos outros

e deixo de ter certeza da minha inocência.







61. Higiene íntima



Às vezes contas-me o que te magoa,

às vezes conto-te o que me magoa,

falamos baixinho como na televisão

os locutores de um jogo de ténis,

não queremos incomodar os jogadores,

os espectadores,

não somos jogadores,

não temos espectadores,

temo-nos um ao outro, e duvidamos,

só não duvidamos das dúvidas e dos dias de chuva,

chove sempre quando estamos juntos,

uma água salgada que lambemos

um ao outro como se lambem os gatos,

a nossa higiene íntima,

partilhamos a mesma dor, dividimos,

mostro-te como sou,

não há mais nada para ver atrás dos meus olhos,

é mais difícil partilhar a dor do que fazer amor,

não devia ser assim.



[Do livro Plantas de interior, 2019]







90. Sem ti não sei dançar



Um dia dei-te um tiro com uma pistola de brincar,

fizeste-te morto

e aprendi o que era o medo,

de repente eu no meio da sala,

no meio de um escuro e denso arvoredo,

e sombras e sons e medo,

e apesar do meu pavor,

o medo é sinal de amor,

demoraste a voltar,

esperaste pelas minhas lágrimas,

lágrimas que depois secaste a dançar,

porque a dançar contigo tudo era luz, dentes brancos, riso,

Sinatra na vitrola e os meus pés sobre os teus pés fora do chão.

Hoje devia ter sido um dia igual,

luz, dentes brancos, riso,

se procurar aposto que ainda tenho a pistola no sótão,

é de plástico a pistola, devias ser de plástico também,

o Sinatra continua na vitrola à nossa espera,

digo vitrola porque dizias vitrola,

e sem ti não sei dançar, só sei chorar.







89. She's becoming a lady of a certain age



Recomeça se puderes...

em rigor conselho ou aviso de médico,

e tantas as coisas que, percebo, admito,

não quero, não posso, não sou, ainda sou,

não sou a cor, sou os químicos, a química,

da tinta das canetas com que escrevo,

da tinta com que escondo os brancos cabelos,

sou o carvão do lápis,

sou o fio de cabelo que atravessa a agulha,

sou esta boca que ainda te debulha,

sou três dioptrias, três dentes chumbados, três amores amados,

e se eu soubesse não tinha casado,

sou um triângulo, sou a geometria,

seno, co-seno e tangente, sou trigonometria,

pudesse eu ser a tua sede, a tua alegria,

sou uma janela sem gelosia,

sou vazia, uma garrafa de plástico,

sou todos os plásticos no mar,

nas entranhas de todos os peixes,

sou com folhas secas a solidão de uma piscina,

se eu te der a mão nada mas não me deixes,

sou o trânsito em hora de ponta,

sou um animal perdido no meio do trânsito,

sou poluição,

sou vento de incêndio,

sou uma inundação, uma decepção,

sou o candeeiro de rua

onde urinam todos os cães da rua,

sou o teu cão no dia em que morreu,

sou o miolo do pão, o caroço da cereja,

na Índia monção, na América furacão

e só de poemas tenho inveja,

sou o barulho do apito do amolador de tesouras,

sou das nuvens uma arcaica lavoura,

sou da lavoura uma vinha velha e vindimada,

sou os pedais da bicicleta do carteiro,

sou o cheiro da relva acabada de cortar,

sou o cheiro a pão acabado de cozer,

sou os pontos das tuas cicatrizes,

sou das meretrizes a tua meretriz

e ainda não comecei a dizer-te o que sou,

sou tudo o que faço,

sou o que desfaço,

sou a faca de aço do rapaz do talho,

sou um velho carvalho, o chão do teu soalho,

sou os teus pés quando descalços

e não me vendo nem te vendo a retalho,

sou o avental ensanguentado onde o rapaz do talho limpa as mãos,

sou Verónica, Madalena, Pavia e Maria,

respeitinho que já tenho idade para ser tua tia

mas com esses sonhos tão grandes nos olhos ainda te fazia.







99.



Dias mulheres virão

e não mais serei só

nem toda a luta minha,

as noites de um sono inteiro,

leve e sem guarda,

os dias empregues em afazeres banais,

na sala, no escritório, na cozinha,

a ternura entediante da vida comezinha,

vazia de violência, vazia de medo,

a casa em sossego, o corpo em sossego,

até o cão no tapete a dormir sossegado,

o cão que como um oráculo sabia,

previa, o que sem surpresa, acontecia,

andava pela casa às voltas à procura de um lugar

onde esconder o corpo, esconder a dor,

ganir em silêncio, fechar os olhos de mim.



[Do livro Os invencíveis, 2018]







51. Realismo mágico



51 anos, 9 meses e 4 dias

foi quanto durou o amor em tempos de cólera,

enquanto eu, que ainda não apaguei 51 velas,

em tempos de prosperidade e bonança,

não consegui amar e ser amado,

por mais de uma década,

somados, os dedos das minhas mãos,

um amor adolescente,

dois casamentos desfeitos,

quase 100 anos de solidão.







53. Horário de inverno



Só queria ser uma dessas pessoas

que ao fim do dia passeiam o cão pelo jardim

com um saco de plástico para recolher a merda.

Dessas que ninguém duvida

que tem uma família feliz à espera.

E uma família feliz não é o prato número trinta e três

encomendado no chinês do bairro

para aquecer no micro-ondas,

é uma mulher, é um homem,

que quer envelhecer comigo,

e que a cada noite me dá a mão e me leva

do sofá para a cama.







9. Faz-me festas



Faz-me festas,

leva-me a dançar,

canta-me ao ouvido,

regressa a casa comigo.


Faz-me festas,

sexo e amor comigo,

separa do joio o trigo,

encontra o meu umbigo,

e abre-me como um figo.


Faz-me festas,

como um evangelista,

conta-me histórias,

os teus desastres, as tuas vitórias,

diz-me boa-noite,

dorme sem dormir ao meu lado,

salva-me a nado de morrer afogado.



[Do livro Subúrbios de Veneza, 2017]







49.



Era uma rapariga moderna.

Fumava, bebia,

lia poesia

e beijava pelo menos

duas bocas por dia.







1. Poema verde



Não me peças para amadurecer

que não sou peça fruta,

sou peça de outra engrenagem,

e a vida não é árvore nem fruteira.

Depois ninguém sabe o que é a vida,

a vida vai-se fazendo,

ou vai-se sem mais,

sem chegar a ser inteira.

E eu quero continuar verde

como o mar, verde

como um poema de Lorca, verde

como o verde dos meus olhos, verde

apesar do comprimento dos dias, verde

às vezes de raiva, que com duas patas

também se pode ser cão, verde

por saber o que é a tristeza

e a inutilidade da alegria ao ponto de cortar os pulsos,

mesmo quando temos vários corações a bater fora do corpo.



[Do livro Aves de incêndio, 2016]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Raquel Serejo Martins (1974). Economista, vegetariana, dançava flamenco agora estuda violoncelo, tem dois gatos, vive em Lisboa. Tem em papel dois romances: A solidão dos inconstantes (2009) e Pretérito perfeito (2013); seis livros de poesia: Aves de Incêndio (2016), Subúrbios de Veneza (2017), Os invencíveis (2018), Plantas de interior (2019), Silêncio sálico (2020) e Valsa a vau (2021); uma peça de teatro: Preferia estar em Filadélfia (2019). Galardoada com o Prémio Miguel Rovisco (2021) pela peça de teatro A iguana viúva. Tem poemas traduzidos para espanhol, francês e inglês. Já escreveu duas canções.