I



porque deus cavou

um poço no meu peito

me estendeu o chão dos acidentes

e me ensina — não desde o berço —

a suportar na língua o fechamento dos horizontes

ter nascido com a diligência do buraco

me faz crer em amparo divino, travessia para ressurreição

mas vejo em minhas mãos um cancro inaudível

o mapa sem rota dos dias, o retrato de uma solidão


o tempo que me pesquisa esfolando meu sangue







II



investigo a inadequação

— talvez perpétua — das ancas

e o sermão embalsamado

deixado pela tua voz na sala

o ar está sempre grávido de pulsação

vivemos como um assombro na fresta de deus

aprendo a ciência dos homens com atraso

e por isso tenho nos ossos

um sol fraturado desde a infância

espio os animais na noite

como se fossem meus filhos

e guardo seus rugidos

dentro de uma prometida saudade

essa que inventarei

quando tu fores sombra, margem,

declínio, como eu.







~



perdoar na língua tua futura extinção

reger os dias com os dentes em forma de âncora

apropriar-se de uma poética da penumbra

da água que encharca os pulsos, o orvalho, os homens


subestimo meu corpo

produto do inviolável

desço às trevas

desapareço como uma vertigem


*


a palavra grávida de posteridade

a boca tomada por uma diáspora

a mulher estrangeira eu você

o decair da tarde

os nomes livres de qualquer espécie de vocação.







~



nascer pra dentro

como uma espécie de convulsão

saber a origem dos camelos e

o itinerário das palavras no meio do gozo

a extinção do pasto pela boca úmida

de um recém-nascido


somos uma mancha definitiva

que se relaciona com o solo

uma sede que não se fecha na velhice


há um testamento cravado na testa

e ninguém assina a queda

somos continente que finge

desconhecer seu próprio mal estar


vivemos sem saber quanto tempo dura

o pouso, o verbo, a linguagem das inevitáveis convulsões


o fogo que acaricia todo parto.







~



tenho nos cabelos uma bondade

que me humilha

atravesso toda espera como uma débil

talvez como uma inominável


abro a palavra segredo e me firo

como uma cura

uma reza suspensa que habita todo gesto


sei que também sou o tendão desgastado em seu leito

o buquê de flores que cresce na sua boca entreaberta.







~



seguir uma prece

estar destinada, prometida

levar a palavra à exaustão, ao necrotério

ver na dobradura de um pássaro

o teu próprio exílio

o caminho forjado das divisas

tua mão que jamais pertencerá ao fogo

ser escultor do próprio segredo

do corpo da mãe que abriga o intocado


ser feita de uma abertura que não conhece os séculos.







0.II



eu ainda sangro

como se tivesse uma fidelidade ao êxito

mas existe em mim

uma fraqueza distendida no ovário

peguei o envelhecimento de minha mãe

os cabelos, a pele, tudo mudo


— a pele ao redor de nossos olhos envelhece mais rapidamente

sofremos de um desencanto habitual —


tento pros dias que se incham

uma forma dramática de ressurreição

me cristalizo num feno

como uma espécie de devoção

uma forma repetível de batismo.







~



inaugurar passagens, uma nova vista e articulação

estar com a nuca numa nova fresta

ver a noite alongar seu corpo

seu semblante inconsolável

aguardar a morte das horas

ser produto da espera, da nervura do silêncio

estar imbuída da água de outrora


*


na primeira hora de um novo dia

encarar o próprio reflexo, o corte, o abandono

as linhas do corpo que se esgarçam

caminhar levemente com as mãos

imaginar o que ainda não foi tocado

aceitar o próprio desnível.



[do livro manchar a memória do fogo. Urutau, 2019]



~



almejar uma terrível limpidez

não ser linear nem doméstica

andar dentro da pedra da infância

desfazer a memória da língua — animal que come o próprio semblante


treinar o idioma que apenas ouço — tornar a língua mais flexível como a sua

nunca esquecer as duas fomes que vi nascendo em sua nuca







~



a pele dotada de sintoma — tessitura sísmica eu você o sangue — vazios canforados

há o buraco que trago em minha boca, o dente 46 em falta

a palavra é um corvo eu vejo com a garganta riscada


o que te oferto é uma tessitura de punhos queimados

o presságio de uma cabeça castigada pelo sal

o fogo silencioso de meus semelhantes 

um país devorado pelo bico de um pássaro







~



desenho na luz o que abandono

pó e promessa de um rosto

queimo na circuncisão do espanto

o sitio cavernoso da linguagem


rezo para a lucidez, essa altura ofuscada

para o pássaro mudo que desdobra os gestos


mas sei, tudo é mormaço


talho asas indefinidamente

recolho as partidas e as catástrofes

incorporo a pedra, exercício da boca


nego a rebelião, o parto

ergo a mão ferida em oração


rogo por um deus sem feição







~



cartografo o pulmão de um recém nascido

invoco seu limiar, a entrada para sua penumbra 

ponho em seu rosto as invocações da água e a velhice da terra

coreografo a cerimônia de sua primeira ferida

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Raquel Gaio é poeta e artista visual. Publicou os livros manchar a memória do fogo (Urutau, 2019) e das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (Patuá, 2018).