©tayeb mezahdia
 

 

 

 
 

 

 

 

Soneto do amor sádico



Para ser posse, você me possua

Por sobre, embaixo, de lado e ao revés

Sob os seus pés, sempre sob os dois pés

De sola curva e película nua.


No quarto longe dos olhos da rua,

Caso me ordene, invertemos papéis,

Trancam-me algemas, fazemos a três,

Sendo um perdido que à diaba cultua.


Como se fosse a Marquesa de Sade,

Não me liberto da sua vontade

Como um vassalo que à déspota estima.


Digo de novo o que disse lá em cima:

Não me liberto, por mais que eu me oprima,

Para fazer-me a melhor propriedade.







Por qual motivo se afasta de mim?



Por qual motivo se afasta de mim?

Desde a manhã de quatorze de agosto,

Percebo indícios do quanto indisposto

Você se sente ao ouvir meu latim.


Nós que bebíamos rum de cacau

Com pão de milho e geleia de amora.

Depois de tudo que vimos, agora,

Sequer me atura num mesmo local.


De onde tirou a postura maluca

De me evitar com a cólera toda?

Conte-me logo o que em mim o incomoda,

Que o penaliza, entristece e machuca.


Quem sabe as manchas do meu vitiligo,

Talvez a tosse por conta do fumo

Ponham-no longe de mim, eu presumo,

Justo eu que tinha você como amigo.







Um poeta no hotel Inglaterra



O poeta está num dos quartos do hotel,

Precisamente o de número sete.

Ele demanda ao serviço o estilete

Que lhe dará da poesia o pincel.


Gotejam versos na imagem do espelho

E na mobília de mogno e carvalho,

Que se assemelham às nódoas no assoalho

De tábua escura e azulejo vermelho.


Café, almoço ou jantar: do que adianta

Alimentar-se durante a estadia

Naquele albergue de cama macia,

Tendo um anel que lhe fecha a garganta?







Ana Cristina Cesar



Preso às paredes do gélido tédio,

Não se alforria um espírito escravo

Sem avistar da janela do oitavo

Andar o espaço da altura de um prédio.


Passa do sétimo, sexto e do quinto...

Até um beijo molhado no solo

Feito sem culpa, sem pânico ou dolo,

Por quem pretende o espetáculo extinto.


A bela anota a vertigem e a queda

Que a vinda ao chão devagar proporciona.

Consegue ser em seu íntimo a dona

Daqueles versos que o poema lhe veda.







Violeta Parra



Vem-lhe à garganta um amargo de bile

Enquanto o canto do povo do Chile

Está vibrando no lábio que o narra.


Ânsia que não se controla jamais,

Que rompe forte das cordas vocais

Calando até a estridente cigarra.


Grita bem alto que a América escute,

A mesma América em que pisa o mamute

Do usurpador que lhe arranca a guitarra.


Quem se tolera em salões, em cafés,

Cujos tapetes não valem os pés

Dessa garota que agarram na marra?


Por isso, clama o paupérrimo poeta,

Que evoca o nome latino: Violeta,

Membro invulgar da família dos Parra.







Dono de si, entre as paredes de um quarto



Recluso e só, nesse quarto

Onde cultiva um infarto.


Do útero à vala comum,

Vive os anos, um por um.


Isola-se ali de todo

O mundo de lama e lodo.


Onde o seu anonimato

Torna-se um sólido fato.


Quem saberia o seu nome,

O que veste, bebe ou come?


Sente-se numa caverna

Alheio às ruas e à baderna.


Longe de quem não se esquiva,

Trocando suor e saliva.


Mantém a boa alma casta,

Virgem, que a si mesma basta.


Um cubo branco de gelo,

Perfeito para acolhê-lo.







Poema do amor carnal



Sem um pastor

Que lhes imponha


Culpa ou pudor,

Qualquer vergonha,


Eles se mordem

Com vigor e ordem,


Como em Sodoma.

Outro hematoma


Na carne magra

Que a dor consagra.


Um hematoma

Que a outro se soma.


Querem prazer...

Homens, mulher,


Mulheres, homem

Que se consomem.


— Deseja?! Implore-o!

Altivo e inglório.


Baixo e solene,

Entre o asco e a higiene.


Certo descuido:

Jorrou-se o fluido.


Como em Gomorra,

O fluido jorra.


Da alta gangorra,

Que a alma se escorra.


A alma se esgota,

Gota por gota.


Contraem-se os nervos:

Um do outro, servos.


No quarto, observo-os...

Contraem-me os nervos.


— A angústia?! Mato-a

Com vigor e ódio.


Torno-me estátua

Feita de sódio.







Luxúria



Mesmo que a igreja boicote a luxúria,

Como é possível conter-se um instante

Quando se deitam as carnes da amante,

Prontas a serem tomadas com fúria?


Os dois se agradam com gula e entusiasmo,

Com golpes baixos de mútua cobiça —

Coices da fúria anterior à preguiça

Que nos invade depois de um orgasmo.


Provocam sempre a ridícula inveja

Naqueles que ouvem os sons da façanha

Que ecoam pela cidade tamanha,

Tocando a pele de quem quer que seja.


Ambos saciados na cama em desordem,

Dormem num quarto sem luz ou barulho;

Sonham que venha a manhã com o orgulho

De quem fará que os pecados acordem.







O burocrata I



Comendo um pão com purê de batata,

Como convém a um veraz burocrata.


Pondo a ração na vasilha da gata,

Como convém a um veraz burocrata.


Vestindo um terno de linho e gravata,

Como convém a um veraz burocrata.


Saudando desde o porteiro ao magnata,

Como convém a um veraz burocrata.


Mostrando as salas à turma novata,

Como convém a um veraz burocrata.


Fixando os muitos registros em ata,

Como convém a um veraz burocrata.


Dispondo ofícios por ordem de data,

Como convém a um veraz burocrata.


Lendo o estatuto que sempre se acata,

Como convém a um veraz burocrata.


Fazendo do hábito a máscara inata,

Como convém a um veraz burocrata.


Sendo um vagão que nos outros engata,

Como convém a um veraz burocrata.


Portando o espírito da álgebra exata,

Como convém a um veraz burocrata.


Abrindo mão de aderir à passeata,

Como convém a um veraz burocrata.


Fingindo ser eleitor democrata,

Como convém a um veraz burocrata.


Fechando os olhos à má negociata,

Como convém a um veraz burocrata.


Servindo dócil a quem o contrata,

Como convém a um veraz burocrata.


Cedendo quando lhe pedem a pata,

Como convém a um veraz burocrata.


Sofrendo o assédio que não se relata,

Como convém a um veraz burocrata.


Temendo a Deus, senhor do ouro e da prata,

Como convém a um veraz burocrata.


Deixando à sombra o seu viés psicopata,

Como convém a um veraz burocrata.


Contendo impulsos de origem primata,

Como convém a um veraz burocrata.


Domando a vida, tão pérfida e ingrata,

Como convém a um veraz burocrata.


Vivendo a inércia, que aos poucos o mata,

Como convém a um veraz burocrata.







O burocrata II



Sem preocupar-se a não ser com o horário,


E ainda com sono, sonâmbulo e tonto,

Entra em um ônibus no último ponto,

Rumo a entregar-se ao desânimo diário.


Computadores, papéis e carimbo

Que fazem parte do insípido limbo

No qual reside um veraz funcionário.


Calcula o tempo de cada labuta

Com precisão de um relógio e executa

Nem mais nem menos do que é necessário.


Recusa o samba das ruas ao passo

Que volta ao lar tendo ao bolso um escasso

E pobre fim de seu parco salário.


Antes de entrar pela porta já aberta,

Passa na igreja vizinha e lhe oferta

Algumas velas no altar do santuário.


Renova as forças em meio aos lençóis

Grossos do leito em que dorme depois

De arremessar o uniforme no armário...


E a ordem se impõe sem nenhum comentário.







O burocrata III



Viu-se um inseto durante a manhã,

Causando lástima apenas na irmã.


Quem atendeu pelo nome Gregório,

Acorda um bicho prosaico e irrisório.


Não causa nota que a grande barata,

Que não se vê, mas também não se mata,


Seja mantida reclusa na alcova,

Mesmo que alguém ao redor se comova.


É tanto muco que o anômalo expele;

Tudo se pensa a propósito dele:


Executá-lo com álcool e enxofre,

Cessando as dores daquele que sofre.


Veem ao lançar a maçã em seu dorso

Que não virá o seu fim sem esforço.


Mas, para o bem dos parentes ranzinzas,

Por si só, torna-se um monte de cinzas,


Como convém a um veraz burocrata,

Que não se vê, mas também não se mata.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Ranieri Carli, professor e crítico de literatura — autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura — é também poeta. Publicou Toda Estupidez (Autografia, 2019). Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve.


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