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Nos últimos meses, a cultura brasileira, como de resto, do mundo,  foi marcada pelo conceito "experiência imersiva" caracterizada, por exemplo, pelas milhares de lives bidimensionais produzidas e levadas a público. Um outro espectro da nova cultura aplica-se  à realidade aumentada, na qual um acessório, do simples smartphone ao sofisticado projetor holográfico, implica o espaço físico, sobretudo, quando se considera o confinamento humano imposto pela pandemia. Essa nova realidade comunicativa atende pelo nome "metaverso", termo que remete a um espaço coletivo, composto de realidade virtual, realidade aumentada e internet. O que se vê agora é uma busca por atrelar experiências virtuais dentro de espaços expositivos — o ambiente físital — união do físico com o digital. É o caso, por exemplo, da Disney, onde o visitante poderá interagir e criar as próprias narrativas através dos produtos que oferece para interação.

O olhar da cultura deverá considerar essa novidade de consumo: é preciso considerar como as gerações podem consumir cultura, como o projeto InspirArte no Ar, em que famílias inteiras passeiam por obras do Impressionismo, vendo de perto como Van Gogh pincelava "A noite estrelada" ou dançando com as bailarinas, de Degas. O fato é que sem a venda de ingressos, sem varejo físico, sem feiras ou exposições, a pandemia desnudou a dependência do consumo pelo contato social e descapitalizou artistas e produtores de tal modo, que estes tiveram de achar formas de rentabilizar o entretenimento sem colocar o público em risco. Com a internet através da digitalização, no caso pelo streaming e aulas à distância, por exemplo, a mudança do contato e de assimilação de resultados passaram a ser bem diferentes. As lives e apresentações ao vivo garantiram a difusão da cultura não apenas como vetores de conteúdo musical, mas também de venda de cursos. O último encontro da CCXP Words provou ser possível movimentar milhares de pessoas em casa. A pandemia trouxe desafios em relação à forma e ao conteúdo com que se comunica a arte. Por isso, agora, é muito importante que essa imersão esteja acompanhada de reflexão e isso exigirá criatividade para curadores: montar espaços dentro de uma lógica virtual, diz Priscilla Parodi, diretora da InspirArte. Neste momento, museus, galerias e palcos, segundo especialistas, terão de adaptar-se para oferecer extensões de seus conteúdos a um público que já está distante, tanto geograficamente quanto em acesso à tecnologia.

Na moda, por exemplo, será preciso difundir as novidades através de "wearables" (tecnologia de vestir) mesmo porque essas já estão mais acessíveis. Contudo, vem a advertência: "Nenhuma inovação tecnológica pega se não entrega algo a mais". É preciso, por exemplo, dar alcance a quem não pode pagar por um ingresso. E o espaço expositivo — seja um show ou um megaevento — implica, atualmente, em participação, tornando possível, por exemplo, um ator conversar com a plateia, ou um artista plástico expor seus trabalhos num ambiente inusual. É preciso, agora, também entender o conceito de "sociedade líquida", do filósofo polonês Zygmunt Baumann, que prevê a desmaterialização do espaço e das relações. Com certeza, a quarentena amenizou a necessidade de estar com o outro, mas streaming e lives mostraram que o outro é imprescindível. Hillaine Yacoub, doutora em antropologia de consumo, diz que "falta cheiro, abraço, porque temos outros sentidos", razão de haver uma torcida universal pelo retorno da normalidade. Ela aposta que os hábitos pandêmicos não enfraquecerão formas tradicionais de usufruto da arte. Na opinião do psicanalista Joel Birman, o público brasileiro deve ainda demorar para retomar a rotina e frequentar espaços culturais. Segundo ele, a teoria do negativismo criou um clima de desconfiança, que conduz ao desalento, fazendo com que nosso medo dure mais tempo. Os formatos culturais, segundo Birman acentuaram a necessidade do ritual da reciprocidade. Diz ele: "O homem necessita estabelecer trocas afetivas ao consumir cultura, como em um show com milhares dançando, namorando, criando laços. No online essa dimensão se perde". O ineditismo da experiência imersiva pode aprofundar a vivência cultural do público, mesmo que ela possa também tirá-lo da zona de conforto com a oferta de algo exclusivo para impactar a sensibilidade e a consciência crítica.





Em dezembro de 2020, foi o centenário de nascimento da escritora Clarice Lispector, a brasileira mais lida no mundo e a nossa mais importante autora do século XX, traduzida em 32 idiomas e cuja grandeza só não é maior do que a do escritor judeu Franz Kafka. Foi a primeira autora brasileira a estampar a capa do New York Times.

Entre outros livros escreveu Perto do coração selvagem, A paixão segundo G.H., Laços de família, A hora da estrela e, in memoriam, Todas as cartas e Todos os contos. O mito de Clarice é cada vez mais sólido, ela que detestava a ideia de ser um "monstro sagrado". "A verdade é que algumas pessoas criaram em torno de mim um mito, o que me atrapalha muito, afasta as pessoas e eu fico sozinha". Segundo Nélida Piñon, amiga da escritora, quando morreu "Clarice não caiu num limbo, ela foi direto ao céu (...) e em vida ela era prestigiada, e não consagrada". Clarice dizia que "se fosse famosa, teria a minha vida particular invadida. O autor  não pode ter medo da popularidade, senão será derrotado pelo triunfo".

Uma das razões pelas quais ela acabou triunfando foi que não escreveu para ficar famosa, diz Benjamin Moser, biógrafo da autora: "Ela escrevia porque tinha essa necessidade". O crítico Antonio Cândido escreveu na sua resenha de Perto do coração selvagem que a romancista ali procurava "criar um mundo partindo das suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação". Ela não era uma pessoa de literatura engajada, apesar de ser politizada, afirma o crítico Silviano Santiago. Ainda assim, foi amada por uma geração ascendente de jovens, que viam em sua obra a capacidade de emancipar o espírito e a sensibilidade. Santiago justifica que a empatia desse público com a obra clariciana se dá por sua habilidade na elaboração de máximas, frases fáceis de destacar e fazer circular, e por sua compatibilidade com uma literatura cada vez mais popular sobre o judaísmo ao redor do mundo. Vale lembrar que Clarice nasceu na Ucrânia tomada pelo antissemitismo, vindo para Maceió ainda bebê.

Ela, diz Moser, tem sempre uma vontade de ir além da linguagem e alcançar alguma verdade mais verdadeira, aquilo que Clarice chamou de Deus. A força de sua expressão literária é tamanha e sua projeção internacional recente é de tal modo poderosa, diz a escritora britânica de ascendência indiana Jhumpa Lahiri, vencedora do prêmio Pulitzer, que o primeiro impulso após ler Clarice foi de parar de escrever: "Pensei que tudo já está dito aqui", afirmou ela a um repórter. Isso porque Clarice produziu "uma literatura tão inovadora, tão perturbadora e tão verdadeira". Em A paixão segundo G.H., a linguagem mexe com as pessoas por causa da "exploração da vida interior das mulheres".

A genialidade de Clarice Lispector é hoje investigada por várias vertentes, desde cartas, entrevistas, páginas femininas publicadas na imprensa e sua relação com as artes visuais. Nas últimas décadas, os estudos se configuraram em várias vertentes teóricas — a fenomenologia vinculada ao romance filosófico, as escritas estruturalista e judaica, os estudos de gênero, tudo marcado pela temática da existência. Dois dos mais profundos estudos têm por autores Benedito Nunes e Olga de Sá. A emergência de novas subjetividades e identidades instaurou novo paradigma, o do feminismo advindo dos anos 1980 e 1990, tornando a obra de Clarice uma referência, analisa Teresa Montero.

"Continuo sempre me inventando, abrindo e fechando círculos de vida", escreve Clarice em Perto do coração selvagem. Intenções à parte, diz Walter Porto, da "Folha", a literatura do mundo nunca mais foi a mesma depois de Clarice.





É mais um dia de perda de sentido,

família, Deus, o mercado — tudo é prensa,

nessa mistura fast-food com bandido,

no corre atrás da vida que não pensa


se vale a pena a correria para nada,

em cada rua uma oferta de trouxinha,

a traficante se parece com a fada,

pra comer, a menor tira a calcinha.


Hora do rush faz o transe da babel,

em cada esquina um assalto de tocaia:

o caos urbano cheira crack e a xarel,

loura gelada, muito sexo e só gandaia.


A maioria se espreme no busão,

e não se livra da gangue à mão armada;

daqui a pouco preso mora em camburão,

a violência é só oferta com porrada.


Não há escolha nessa troca de mentira,

a pressa corre e dá de cara com o perigo,

ninguém sabe se o que mata é fome ou o tira,

se o que morre será mesmo o inimigo.


Vidro suspenso que lá vem o trombadinha,

na sequência bando troncho de pivetes,

e o táxi por sequestro sai da linha,

você decide: um balaço ou canivete.


Quem vai de carro curte sarro com o estresse,

e como pária foge do engarrafamento,

chuva miúda, óleo na pista, a curva em S,

a tevê mostra os presuntos do momento.


Hora de Ângelus quer dizer adrenalina,

o desafio é chegar inteiro em casa,

herói urbano com nervos de gasolina,

que a contramão dessa briga cria asas.


Aperte o cinto que a noite é de pega,

a fauna solta vem malhando o arrastão,

o bebum louco liga o farol que cega,

a avenida vira pista de avião.


Muita cantada de pneu nessa disputa,

o seu carona pode ser muito doidão,

desfilam drags, pitibichas, muita puta,

e o carro serve de motel e de caixão.


Vão do seu lado perueiros e a ambulância,

muita buzina é sinal de coisa preta,

enquanto reza, você pede segurança,

e logo adiante mói a Besta num Cometa.


O sinal fecha e passa um raio na retina,

o mauricinho quer mostrar que é potente,

o guarda apita, tudo bem com a propina,

e o menor pratica pra matar mais gente.


E viva a vida na vã veloz cidade,

onde escapar é o prêmio que alerta:

pisar mais fundo é sentir a liberdade

e o inferno tem a porta sempre aberta.





Fim de tarde, céu pesado prenunciador de muita chuva, pontos de luzes se diluindo como os pensamentos, o trânsito novamente espremendo a pressa em quilômetros de engarrafamento, a nenhuma paciência de ninguém, as batidas de sempre, as sirenas já incrustadas no cotidiano da audição humana misturada à orgia urbana cada vez que a cidade regressa à sua solidão doméstica. Os bares recebendo seus frequentadores habituais, jovens vindo e indo de/para escolas, camelôs recolhendo seus produtos falsificados das calçadas, as padarias cheias, alguns cachorros perdidos virando latas e levando pontapés de quaisquer uns e outros, alguns abraços pelo reencontro ou de despedida, olhos atentos contra trombadinhas, gatunos de ocasião plantados em esquinas, o incêndio multicolorido dos neons vendendo a cidade para si mesma. A cidade-ninguém, a cidade-sem-rosto, anônima como um catálogo de telefone, mansa como uma bomba de efeito retardado, com seus cheiros pútridos suspensos da fossa poluente do seu rio-esgoto para onde escorre um chorume pastoso dos seus restaurantes de óleos cozidos e ratos nédios à proporção de cinco para cada habitante, seus transeuntes suados, sujos, com o dia ganho ou perdido, como quem mendiga a própria sobrevivência, levando de volta às suas casas o que foram ontem e o que serão amanhã.

Periguetes mais afoitas e enfeitadas como árvore de Natal já posicionadas nos pontos certos para atrair jovens incautos, travecas de companhia disputando um programinha, os homens de papelão empurrando carroças com metros de altura, os pontos de lotação e suas filas de quarteirão, os pontos de táxi amarelando as ruas como uma tarântula com hepatite, os pontos na testa de valentões que se pegaram de tapa e faca, os pontos da mega sena conferidos na lotérica Ilusão Feliz, os pontos fixos dos carros de polícia de olho no que todos veem e ninguém fala, os pontos do papelote, do baseado, dos acertos de conta. O comboio de caminhões, tortos como a torre de Pisa, com e sem lona Randon, amarras com cordas de bacalhau e de plástico trançado, a maioria com seus terços na boleia, balançando pra lá e pra cá, imagens de N. S. Aparecida e retratos dos filhos defronte o volante. 

Lia-se com interesse em seus para-choques: caminhão 1 - Se barba fosse sinal de respeito, bode não usava chifre; caminhão 2 - beijo é igual a ferro elétrico: liga em cima, esquenta embaixo; caminhão 3 - champanhe de pobre é sonrisal; caminhão 4 - quem coça o rabo, cedo ou tarde cheira o dedo; caminhão 5 - vou votar nas putas porque já estou cansado de votar nos filhos delas; caminhão 6 - se uma loura lhe atirar uma granada, tire o pino e atire de volta; caminhão 7 - o fígado faz mal à bebida; caminhão 8 - faça o seu candidato trabalhar: não vote nele; caminhão 9 - o vegetariano leva a moça pro mato e come o mato; caminhão 10 - herrar é umano; caminhão 11 - mulher grávida vive reclamando de barriga cheia; caminhão 12 - rezei 1/3 pra achar um 1/2 de te levar para 1/4; caminhão 13 - não existem ateus numa pane de avião; caminhão 14 - se merda fosse dinheiro, pobre não tinha bunda; caminhão 15 - em casa que mulher manda até o galo canta fino; caminhão 16 - quanto mais conheço os homens, mais amo meu caminhão; caminhão 17 - não sou motorista de caminhão, sou gestor de unidade móvel; caminhão 18 - a força da tua inveja é a velocidade do meu sucesso; caminhão 19 - se for correr, que seja para um abraço; caminhão 20 - prefiro ser um pai quadrado do que ver minha filha redonda.

A cidade-vitrine do caos. A atroz-cidade. A violencidade. A tresloucada neceCidade. NesciaCidade. A multipliCidade. A sugaCidade. A cidade-alien que desova seus ninhos de reféns. Que suga vida do inferno. Que ampara heróis iludidos. Que pare seus pares de infortúnio. Ah! Urbânia de igual semblante ao mundo. Babel horizontal. Tudo é possível nessa cidade-show, cidade-shoulder, cidade-enxofre, cidade-chopp, cidade-xô. Tudo é possível nessa cidade onde o imaginário é apenas a iniciativa de observar um povo inteiro correndo atrás de si mesmo. E os caminhões aos montes levando/trazendo cargas, descargas com seus motoristas com caras amargas na hora do rush.




©Sabine van Erp


É preciso maturidade para escreviver sobre a perda. E ninguém nunca está preparado para a perda. Não se perde em vão o que faz falta. A escritura da perda exige vivência de comparações, analogias com rigorosa imparcialidade emocional, isenção de preferências, exclusão do livre-arbítrio, desadjetivação, aprendizado silente de reações, um certo conformismo irredutível, a certeza de a vida continuar sendo depois de tudo definitivamente perdido. Tudo o que existe chega a um fim. É a lógica do non sense. E, não raro, sem justificar-se. Que o mais difícil é tornar o fim uma nova história. Amar a fênix com um outro incêndio. Insistir como Sísifo. Não trazer de volta, seguir exemplos tangíveis do novo. O doer da perda não é sabê-la eterna: é ela afligir com a falta o que deixou de ser presença. A perda dói por impedir que respostas sejam dadas, porque a cobrança anula a petulância do confronto de necessidades. Perde-se porque somos nós os que ficamos a dever. Os que sobram. Há uma encomendação da alma como se a morte fosse um pacote na travessia de um provisório para um nada absoluto. A perda é o que iguala todas as diferenças. Perde-se porque põe Deus em xeque. Por que o ser deixa de ser? O que deixa de ser anula o que é. Para sempre. O que faz a perda doer é a herança da memória. Ao lembrar o que falta tem-se a certeza de o ser preenchido com a incerteza, o precário, o que não dura. E é eterno.

 

 

 

março, 2021

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

Av. Américo Leite, 130 – Centro

35540-000 – Oliveira/MG