©michal jarmoluk

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 



Informa a revista Pesquisa, da FAPESP, que na semana passada um colecionador anônimo arrematou, em Paris, por 1,13 milhão de euros, o esqueleto de dinossauro que viveu entre 156 e 151 milhões de anos, causando incômodo nos paleontólogos por tratar-se de exemplar de uma espécie ainda não descrita pela ciência.

Também na semana passada recebi e fiz uma saborosa leitura exemplar do livro Ainda estavam lá, que três autores publicaram em homenagem a Augusto Monterroso, autor do microconto mais consistente produzido no mundo, alusivo aos dinossauros que permaneciam em seu habitat. Cada microconto deste livro gera uma fortuna crítica, porquanto os três autores — diz a escritora Adrienne Myrtes, que assina o prefácio — "alcançaram excelência no assunto, micronarradores por opção, jurássicos pelo amor à literatura". Para os leitores poderem também saborear o bom humor, a concisão inteligente do livro, o ritmo da narrativa, as correlações no texto que permitem ao leitor transitar com maior naturalidade entre as ideias —, reproduzo a seguir uma seleta de microcontos de Ainda estavam lá:



Márcio Markendorf


"Meteoro: Quando acordou, os dinossauros não estavam mais lá". "Alcoolismo: é uma doença que passa de pais para fígados". "Sorveteria literária: — Eu vou querer um milkshakespeare. — Ótima escolha. Você vai chupar um clássico". "Igreja: Era uma conta com muitos seguidores". "Immanuel, Kant!: Karaokê". "Rapidinha: Não deu outra". "Amor hípico: Caiu do cavalo". "Spoiler: Nós vamos morrer no final".



André Ricardo Aguiar


"Museu de História Natural: Quando acordou, o vigia noturno respirou aliviado. O dinossauro ainda estava lá". "Carro fúnebre: O cemitério ficava numa ladeira. Desceu em ponto morto". "Relâmpago: Olha, João. Deus sabe fotografar. Até ligou o flash". "Gêmeas siamesas: Casou com a mais soltinha". "História oral: A princesa evitava beijar o príncipe. Dava sapinho". "Vida porca: Enquanto o prego trabalha, parafuso dá suas voltinhas". "Exame de próstata: Não satisfeito, ainda veio com dois dedos de prosa". "Bala perdida: Saía de casa bem cedinho. Chegava à noite no noticiário". "Aeroporto: O gramático chegou atrasado e perdeu o acento no voo". "Sísifo: Todo dia tentando se livrar do vício da pedra". "Peter Pan: Para prender um leitor é preciso que a história tenha um gancho". "A multiplicação dos pães: O problema para Jesus era controlar a massa". "Super-heróis: O homem invisível sempre foi mal visto pelos colegas". "Fábrica: Na nossa fábrica sofremos alguns cortes. — O que vocês fabricam? — Lâminas, facas. "Acordo ortográfico: E então, conseguiram eliminar o trema? — Sim, tiramos de letra".



Adriano Salvi


"Livro: Quando abriu, os dinossauros ainda estavam lá". "Naturalismo: — Como somos? — Cromossomos". "Mate: Depois que o peão comeu a rainha, o rei foi posto em xeque". "Fraternal: Todos os dias mergulhava a escova do irmão no vaso sanitário". "Tripalium: — Odeio meu trabalho. — Você não é pago para se divertir". "Procrast...: Depois eu termino". "Selfie: Felicidade congelada, idêntica à natural". "Zumbi: Era um nativo digital". "Fiat lux: Então Deus disse: Haja luz! Imediatamente o homem puxou um gato". "Clitóris: Nem com GPS". "Fotografia: O tempo parou para eu passar". "Cerzindo: Linha e agulha se juntaram para costurar essa história. Queriam que o conto ficasse na medida".





Vencedor dos prêmios nacionais de literatura Jabuti, Oceanos e Leya, Torto arado consolida um novo autor no Brasil: Itamar Vieira Júnior.

Como diz a "orelha" do livro, um dos seus grandes triunfos é a representação — como eloquência e humanidade — dos descendentes de escravizados africanos para os quais a abolição significou muito pouco, visto que ainda sobrevivem em situação análoga à escravidão. Isto traz ao romance, para além de sua trama que atravessa vozes, gerações e temas (a memória familiar, o trauma, a exploração, o misticismo afro-brasileiro, os laços sociais), um poderoso elemento de insubordinação social que vibra muito tempo depois de terminada a leitura.

No livro, as irmãs Bibiana e Belonísia convivem com uma drama após encontrarem uma velha e misteriosa faca guardada numa mala sob a cama da avó, quando acontece um acidente. As irmãs vão viver sob a extenuante rotina do campo, as tradições religiosas afro-brasileiras, "com suas velas, incenso e ladainhas e uma absorvente vida familiar". Com o tempo se desfaz o convívio entre as irmãs: uma se presentifica com a satisfação dos serviços na fazenda e os encantamentos do pai, o curador Zeca Chapéu Grande; a outra toma consciência do estigma da servidão imposta à família e decide lutar pelo direito de posse da terra onde se consomem vidas inteiras, sem qualquer garantia de futuro.

Itamar Vieira Júnior renova o regionalismo com eficácia e justifica ter ganho a profusão de prêmios literários nacionais, levando o leitor a uma reflexão árida que pulsa ainda agora na temática da escravidão.




Suspiro seco é um romance de ousado realismo, de linguagem ágil, com uma trama fiel a uma época (anos 1970/80), em que os detalhes marcam personagens que se entrelaçam num cotidiano por vezes áspero, de inesperados desdobramentos. 

O livro narra o arroubo de paixões — por pessoas, livros e lugares — sem desdenhar os interstícios e sobressaltos de uma geração destemida, receptiva a novas descobertas e experiências. Trata-se de uma publicação imprescindível de um autor imprescindível, que tem se revelado portador de enigmas e densidade, de livro para livro, desde Violeta trindade a Outono atordoado

Edgard Pereira sabe lidar com a palavra contextualmente, exímio criador de descrições bem urdidas, seja para enriquecer cenários interioranos como situações urbanas, de ambientes fechados a cenários abertos. Seus personagens recobrem perfis  singulares e representativos de uma gama variada da configuração social; as mulheres são apresentadas como mulheres, com sonhos e devaneios, e singelas, mesmo em face de situações ou constrangedoras. Diogo, por exemplo, tem consciência de que "a ambiguidade acompanhava-lhe os passos na cidade grande", resoluto em confrontar a hipocrisia social, assumindo posturas libertárias. A descoberta da sexualidade, o uso de drogas e do álcool compõem o esboço de um contexto tangido "pelo gosto do inusitado, da descoberta". As relações deixam de serem vistas como “fixas, imutáveis, calcadas em paradigmas rigorosos”. No burburinho de encontro e desencontros, dadas as circunstâncias e o contexto, os personagens, depois de muita experiência vivida, certificam-se aparentemente de que "viver é ajustar-se ao lugar adequado, procurar não complicar as coisas". Na contingência árida do deserto e da hesitação, cabe à literatura, mais do que evocar, apostar no risco e na invenção.





Namoradeiras em terapia — poemas no divã, o novo livro de Maria Iris Lo-Buono, tem por leitmotiv a experiência clínica com o trabalho poético. O poema "bota pra falar", diz a autora. Neste livro Maria Iris tem um jeito "doméstico" de dizer as coisas com peculiaridade típica de Manoel de Barros, em construções líricas bem-humoradas, que envolvem não apenas sentimentos, mas atitudes poéticas de quem cava fundo em busca de novos sentidos para as palavras. Neste livro, a escrita poética dá-se essencial para promover o estranhamento. A poeta escreve como quem aposta no interdito a partir do sobressalto da surpresa das suas estratégias e de suas soluções estéticas. A poesia de Maria Iris apresenta uma aparência de simplicidade, de "apologia do ínfimo", de diálogo em aberto, de "contraface do espontâneo", de "memória cultural", posicionamentos capazes de construir um contexto rico em significações plausíveis e surpreendentes.

A poeta não se volta para a metalinguagem, mas para a contingência da palavra que "terapeuta" o sujeito poético. O livro está farto do saber da novidade latente em antíteses, estranhezas, revelações expostas em definições, ressalvas, notas de rodapé, (sub)títulos, textos, numa erosão dos limites do signo, que ela realiza em afinidade com outros recursos como a "burla das convenções", a quebra do sério e do solene, as inversões da lógica familiar, o investimento no lúdico, tudo reunido numa espécie de "terapia literária" que expressa os mais fundos desejos.

Lembrança-panaceia familiar: a "Casa da Vovó sara saudades" - "Tia Lolita sofria de alegria comprida/ tinha vocação pra prosa e broa"; "Natália sofria de elegância caseira" e "nunca gastou sílaba à toa", ela que "bateu salto lá na cozinha"; "Tia Nininha [que] sofria de intelectualidade/ reabilita minha ladinice/ penteou meu texto e deu feitio aos meus cachos/ rimou estrofe/ puxou a mãe na ortografia"; "A vó Catarina sofria de bondades e escrivaninha/ (...) pouquinhava-se, ela, para quem bastava a fartura da fé de saia preta cheia de tempo"; Tia Mariinha sofria de madrinhamento/ não tinha competência pra descuido da meninança". Na memória viva, a caça da Vovó "ajardinou-se/ mudou pro céu (...) o que dá na poeta "vontade de morar no antigamente", pelo que aprendeu "as manhas de regar canteiros".

A poeta revela que "no universo tudo versa, entorna, vaza, despeja", por isso ela "muda de canal, vira, reconfigura o boletim, bota escora [no] aprumo pra raiz pagar de novo". Às vezes, há um toque zen na linguagem, outras vezes há um palavra-puxa-palavra, todas bem pensadas em descrições as mais díspares, o que dá aos versos uma força expletiva peculiar: "lobo faz fishing - joga isca disfarçada - rouba dado - atrai peixe iludido - junta peixe dominado = arrasta, enlaça, anexa - sutura bem a rede pra deixar em emaranhar". Com a leitura da parte intitulada "EUforia" Maria Iris mostra que tem "uma tropa de prontidão" de sentidos. Em "Previsão de  tempo" prevalece a questão social de quem mora na rua, dedicado à população assistida pela Sociedade São Vicente de Paula. Em "Fé" o sujeito se entrega ao Verbo, confiante e sem pedir prova como garantia de sua sobrevivência. Não raro a poeta conversa consigo mesma — sempre cercada de um bom humor. Morto há 63 anos, padre Ananias era milagreiro e merece da autora poema por sua receita de bem-viver. A poeta constrói vários oxímoros e às vezes, talvez por isso acontece "engasgo de vírgulas". Pontuado de reflexões domésticas, a poeta se questiona: "De que vale a morada/ mesa repleta/ internet graúda/ roupa cansada de tanto cabide/ sapato encalhado/ amuado na caixa?". Em "Aquele beijo que não pode colher" com beleza e lirismo no tempo e no espaço da razão vivencial. "Esperançar" traz o avesso da exasperação em função do triunfo da poesia: "essa desesperação noticiária vai me ouvir/ sou âncora da fé desaparecida/ colher de mel/ leitinho morno/ um som de blues bem-acabado/ ponto de cruz no bordado".

Namoradeiras em terapia — poemas no divã é um livro gostoso de ler, com o qual os leitores vão se identificar, ampliando a criação poética de uma autora que se impõe nacionalmente pelo lirismo contemporâneo com consciência crítica.




Em 311 páginas bem escritas e com farto material iconográfico Ronaldo Werneck registra o vigor das artes em Cataguases — século XX — antes e depois, envolvendo inclusive a atualidade.

Cidade privilegiada com seus catagu(ases) desde a arquitetura exemplar à geração que publicava os jornais "SLD" e "Totem". Raras são as cidades que podem, como numa vitrine cultural, exibir obras de Niemeyer, jardins projetados por Burle Marx, trabalhos no acervo de Maurice Utrillo, Cândido Portinari, Jan Zach, Djanira, Tarsila do Amaral, móbiles de Calder, entre muito mais. Tudo cata-auá — gente boa. 

Talvez seja Cataguases a cidade mais fértil em valores culturais: dos literatos da revista "Verde", entre eles Ascânio Lopes, Enrique de Resende, Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco e Guilermino César, ao cinema pioneiro de Humberto Mauro, Pedro Comello e sua filha Eva Nil; da música de Patápio Silva e de Lúcio Alves, aos poetas de vanguarda Joaquim Franco, Ronaldo Werneck, P.J. Ribeiro, Aquiles Branco, entre outros, e do ficcionista Luiz Ruffato.

Citando Cecília Meireles, Angelo Oswaldo de Araújo Santos corrobora no prefácio a tese de que o livro foi por Werneck escrito "com paisagem, com vida e sonho.". E acrescenta: "Cidadão do mundo, cumpre a sina da cidade do interior que é do exterior, fascinado pelo novo e arraigado ao chão da origem de tudo. Os artistas de Cataguases construíram a Ouro Preto do século XX, como gosto de chamá-la, pelo ineditismo, diversidade e opulência das manifestações culturais, tal como ocorreu na antiga Vila Rica no século do ouro". Síntese: Catagu(ases) — cataguartes.





Nos anos 1950, o Brasil experimentou um período de contradições, culminando na migração de ex-colônia da oligarquia agrária para os desafios da modernidade. Getúlio Vargas, JK e Jânio Quadros presidenciaram essa década, com regime e/ou ideologias que iam do remanescente coronelismo, de base econômica latifundiária, ao populismo varguista com a aliança estabelecida entre Estado, capital estrangeiro e a organização da sociedade em sindicatos e Partidos.

No início de 1950, o país tinha uma população de 33,2 milhões de habitantes, inflação de 12,4% e 9 greves das lutas operárias. Nessa década, criou-se a Petrobras sob forte pressão e represálias norte-americanas, cujo país vinha se implantando na nação com grandes empresas. Carlos Lacerda liderava a oposição, David Nasser escrevia sobre as mazelas nacionais. A filosofia brasileira começou a resgatar o espaço perdido para o "pugilismo", ou o conhecimento em função do prestígio, do utilitarismo e do imediatismo das ideias, com o apanágio da proposta de Mário de Andrade de promover a "reatualização da inteligência nacional". A cultura nacional exigia revisão de valores para demarcar sua especificidade. Nos últimos 50 anos, os modernistas já impunham também seu ritmo dialético, sem ufanismo, e crítico, reconhecendo nele o legado da Semana de Arte Moderna de 1922.

O interesse pela terra brasileira, pelo homem brasileiro, pela revitalização do regionalismo universalizante e do folclore em sua referência original, pela criação de uma expressão de língua brasileira e pela participação ativa na vida nacional, pela invenção de uma linguagem nova - formalizou a contribuição do Modernismo. Em Minas e no país, Carlos Drummond de Andrade, Abgar Renault, Emílio Moura, João Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Alphonsus de Guimaraens, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira, Menotti del Pichia, Henriqueta Lisboa, Affonso Ávila, Dante Milano, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Gilberto Mendonça Teles, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Wlademir Dias-Pino eram como ainda são alguns dos principais autores com vigência a partir de 1950, São autores imprescindíveis para reconhecimento da formação teórica e identificação do parâmetro da criatividade literária brasileira.

Contudo, no decorrer dos anos 50, quando estavam em voga o pathos de Augusto Frederico Schmidt, a "ideologia" poética de Rainer Maria Rilke e Rabindranath Tagore, a filosofia dos opostos de Schopenhauer e Kierkegaard, além do existencialismo de Sartre, entre outros influentes, a literatura em Oliveira estava limitada na linguagem impregnada de influências simbolistas e parnasianas, nos sonetos, rondós, baladas e alegorias. Os poetas da cidade nessa época produziam ainda com a expressão dos ismos pré-modernistas, sem, no entanto, se posicionarem na nova realidade brasileira, sobretudo a partir da Semana de 22 ou mesmo diante do formalismo bigornoso da Geração de 45.

Os poetas dessa época optaram por uma linha pós-romântica no temário, mas sem uma linguagem peculiar da experiência de expressão criativa que assumisse a visão nacional da coisa brasileira. Não se lhes nega, porém, a intenção de, às vezes registrar a paisagem oliveirense, a cor local, uma espécie de pedagogia da palavra realizada através de saraus em casarões e grêmios literários, programas de rádio, publicações na Gazeta de Minas e de alguns livros. Entre outros, eram autores destacáveis dos anos 50 Sebastião Nery, Geraldo Ribeiro de Barros, José Leite, Antenor de Castro, Alcindo Ribeiro de Souza, José Oiticica, Nelson Leite, Peggy de Castro Abreu, Pe. Ananias, monsenhor Medeiros Leite, Sefiza Laranjo Restier, Iolanda Chagas Ribeiro de Castro, Benedito Luz (Belux), José Euclides Andrade, Paulo Pinheiro Chagas, Eurico dos Santos, Gumercindo da Silveira, Hilda Fernal Cascão, Mauro Fernal, José Maria Lobato, João Rabiço, Neif Mattar, Olavo Trindade, Paulo P. de Carvalho, Pinheiro Campos, Rafael Siqueira, Silveira Neto, Walter Cordeiro.


 

 

dezembro, 2021

 

 

 

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