À BEIRA DA PALAVRA
Tua nota muda
quase uma flor.
Rio à beira,
água da palavra.
Voz que não vibra um verso.
Teu canto é mais um conluio
entre o silêncio e o verbo.
Ainda assim descobrir
— por fim — tua língua.
VOLVER
Crua, gênese da minha existência.
Universo em âmbar.
Pássaro carcomido por estrelas.
Nunca se é sábio por inteiro.
Os anos copulam suas arestas.
Mãos pálidas e insossas,
vestígios da fome.
Torna o que é profundo.
Livre em águas
as asas de uma sereia.
Para quando voltares,
a vida que não compreendo
e a palavra estagnada na garganta.
II
Antes da fala,
a mulher.
Antes da palavra,
a imagem.
No início do verbo,
Seu corpo.
No fim da boca,
sua boca.
Mulheres de água
em dissolução.
C'EST LE VENT
Película na roda dentada.
Zoom desperto nas tuas mãos.
Meus olhos em plongée.
Caleidoscópio de fotogramas.
Asas sem controle.
Tua cor devorada.
Meus olhos nas tuas mãos.
Película desperta.
Tuas mãos dentadas.
Meus olhos sem asas.
SUSSUARANA
Afiar as garras no coração.
Alforriada, felina no cio.
Presas fazem parte de mim.
Unhas negras sangram os olhos.
Pelo envolto em face, seios.
Fome que atravessa o corpo.
Fêmea enfurecida espreita o desejo.
Arisca recua antes da presa gemer.
Por instinto tua caça é perpétua.
Ofereço minha carne.
O AMOR DE PARTIDA
"Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco"
Mário Cesariny
Aberta em pedaços,
trago os restos de minha cabeça.
Tormentos se equilibram na ponta da lâmina.
Buscas vigentes pela carne.
Quem sabe a dor seja algo sublime.
Me separo daquilo que é impuro.
Sem tato, sem gosto, sem língua.
Sem manha para linguagem.
Desejo: janela podre, fechada.
Uma fresta, por que raios me encontraste.
Hoje silêncio deformado em formalidades.
Olho as paredes que me circundam.
Elas voltam reverberando,
saudade, saudade, saudade.
SOPRO
Teu peito enrubesce o canto de saíra
Sete cores pendentes no céu.
Forca virada para o inferno.
À boca uma fenda, um abismo.
Palavras ondulam presas,
fisgadas pelos teus olhos e dedos.
Sal à sede e a presença descabida de meu corpo.
Procuro a exatidão dos teus traços.
Espaço que encontro instransponível.
Nada te alcança,
nada em mim silencia.
Tens minha fé, intuição e instinto.
Meu espanto em estado de poesia.
QUASE VIVA
Bebê sem cabeça.
Assim nasceu a vertigem
naquele peito oco.
Entre seus dedos
serpenteiam rios e pedras.
Letras forjadas no gozo
desenham a superfície da pele.
A água arco-íris, quase viva,
atravessando a janela.
Corpo do avesso,
olho nu dobrando imagens.
Abril toca insistentemente
a ponta da folha que cai.
Na rosa-dos-ventos
o futuro suspira sem rumo.
TRAMA
Vinte e sete estrelas destituídas do céu.
Seca rente à pele em trama.
Habitar labirintos.
Trocar a face pelo passo.
Corre o tempo atrás do ponteiro.
Ferida aberta.
Olhar pontiagudo
como um punhal.
ONDE A BELEZA SE ESCONDE
Relicário onde o sol sublima.
Meu olhar decadente.
Fim de tarde revoada de rosas.
Minha infância envelhecida.
Amarelo que te quero azul.
Signo suspenso na boca.
Tão suave que parece etérea.
Dedos a desfolhar o mar.
Areia furtiva
furta-cor.
Memórias em ramas.
Mão cadenciada no rosto.
Escuridão reclama tua ausência.
Teu jeito solar esquecido na lembrança.
Me acolho em sete chaves.
Desperto minhas sombras.
Beleza se põe sob meu choro.
O QUE DIGO AOS OLHOS
Lucidez liberta monstros.
Nas mãos a urgente presença.
Corpo cresce desata o silêncio.
Saudade rendida nos braços do escuro.
Mais uma vez molhada por dedos fantasmas.
Tudo na alma é assombro, tudo desencontro.
Liberdade presa à libido.
Mundo se finda todo dia.
Pés só encontram abismo.
Digo aos olhos que desistam,
uma vez que já disseste adeus.
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