©alexas

 
 
 
 
 
 
 

CAPITA LISTA



Pois é:

"Tudo na vida tem seu preço".


Até

a alma de isopor


e o coração de gesso.







POSTAL VADIO



A Jean-Arthur Rimbaud



Eu quero escancarar as minhas portas

para que entrem nuvens de mendigos

e arrastem pelas minhas veias tortas

os ferros-velhos dos verões antigos.


Eu quero escancarar a minha aorta

para que sangre o vento pelas ruas

e biquem em minha boca as aves mortas

os crespos corpos das mulheres nuas.


Eu quero arregaçar a minha alma,

deixá-la calcinada na calçada,

até que as minhas mãos saltem das palmas

e mordam o mundo em mar e madrugada.


E jorrem pelos poros dos meus dentes

os rios que bebi nas mãos alheias

e nos meus olhos sujos luas cheias

da mesma insônia antiga dos doentes.


Eu quero escancarar os meus sapatos,

rasgar meu coração em postas turvas,

deixar entrar em mim todos os gatos

para lamberem o hálito da chuva.







A COR DO FUNDO



Fiz um trato com Deus:


Ele empurra a floresta dos meus dias,

a carroça sem fim do meu cansaço,

para lá do museu dos braços baços,

dos gumes, dos anzóis, das facas frias,


e me impele a carcaça pelo mundo,

acima dos punhais e dos seus cardos,

do sangue e do suor dos cortes fundos,

do breu dos passos mortos des/andados.


Em troca, eu pintassilgo claridades,

teço manhãs no tráfego dos vivos,

arregaço cardumes de motivos

e empalavro florestas de saudades.


Ele apenas me espera um pouco mais,

enquanto eu bordo azuis nos Seus quintais.







A PASSAGEM SECRETA



Dedicado aos jovens poetas da minha terra



Sente o poema. Não apenas lê.

Deixa que escorra pelas tuas veias

a salmoura vital de seus sussurros.


O poema não morre nas palavras.

Sente como te assoma e te borbulha,

fagulha em ti seus gumes, seus assombros.


Se não doer em ti, não era teu.

Como o luar, não brilha só pra um,

mas espalha o fulgor por toda a rua.


Sorve o poema, bebe de sua sede.

Nunca o terás de todo em tua mão.


Um poema é um quintal no coração.







A RE-METIDA



Desembarcar nas praias do teu corpo,

não um conquistador, um penitente.

Orar em cada entrância, e em cada nicho,

deixar a úmida prece de um lambeijo.


Correr como um menino no recreio

por entre os corredores, ir às salas,

entrar em todas elas, bagunçá-las,

sem nenhuma deixar de estremecê-la.


E quando já depois, pac-enfincado,

tendo pago a promessa do desejo,

orar o teu calor, Deus a meu lado,

a quem pago o tributo de outro beijo.







AO RÉS DO DENTE



As moças mortas que ninguém beijou.

Os jovens tristes que morreram cedo.

A moça antiga que guardou segredo

sobre o homem que nem nunca a notou.


Os sonhos loucos que não viram a rua.

As promessas que o sol evaporou.

Aquela prima que dormia nua,

e o susto insano de quando acordou.


A brasa insone do primeiro beijo.

A úmida rosa da mulher vizinha.

O velho que empunhava o realejo

e o quanto humano seu macaco tinha.


O bonde que arrastava pelos trilhos

a vida que escorria devagar.

Um parco nosso a se encorpar nos filhos,

os fátuos fogos que é preciso arfar.


O cheiro do luar de São Luís.

Um jeito mouco de menino broco.

A estiva esquiva que o poema endiz.

Esse silêncio a se entranhar aos poucos.







COMO DIRIA MANOEL DE BARROS



A palavra decola do papel

e vai molhar o azul de quem a doma.


Poesia é depois, quando a palavra

se passarinha e arriba do poema

para acender os longes de quem toca.


A palavra se encanta no branco da folha,

se incendeia e vira,

mais que o pássaro, o voo;

mais que a flor,

o brilho do perfume;

mais que a nuvem,

o algodão azul que ela desfecha.


A palavra não (s)abre nem (s)obra,

sopra um susto

assim

no seu cinzento,

e acende um tão no tempo.


Poesia é quando o leitor voa,

no encanto aceso,

a pluma da palavra,

e alumbra a bruma em flor do que ela toca.


Poesia é além, depois da letra,

para lá da palavra e de seus gumes,

de seus pesos e pasmos, de seus (t)rilhos.


Poesia não é o que nos pássaros:

é o pra lá do além,

o haver do voo.


O poeta só lesma,

lima,

lume.


O poema é depois,

quando quem lê

lã,

léu,

luz.


O poema só chuva,

nuvem,

brasa,

espuma.


A poesia é depois,

quando quem

pétala,

música,

mágica.


Poesia não é só quando

palavra,

letra,

risco,

rabisco,

a garatuja,

a cara suja

e funda da grafia.


Poesia também

não é só o silêncio,

a sombra,

o rastro em susto,

o (s)estro,

a lágrima memória do pra trás,

a lembrança acesa do que ainda vem.


Poesia não é só quando

floresta,

árvore,

folha.


Poesia não é só quando

brilho,

gente,

mundo.


Na verdade, o poema

não começa nem finda:

o poema é ainda.


Na verdade, o poema

não se entorna

nem se ausenta:

— o poema vai embora

pra sempre na gente.







FAROL FECHADO



Em lembrança de meu pai, Clóvis Gaspar



Um velho me gritava

da janela

pra eu tomar cuidado

ao atravessar a rua,

tomar cuidado

ao atravessar a vida,

não tropeçar no mundo

e seus açougues.


A rua escura

e suja

fede a tempo passado

e solidão.


Atravesso a rua,

com cuidado.


A casa ainda está lá.

O velho, não.







INFRUTESSÊNCIA



Ando meio já morto de anteontem.

Uns pedaços faltando, outros sem eixo.

Doem-me coisas que fui e já não brenho,

uns trinados de claros, uma estrela

que aos poucos desbrilhou nos meus cabelos.


Às vezes, faz escuro mais por dentro,

parece que anoitece no comigo.


Tantas partes de mim que estão faltando.

É como uma quermesse que não houve,

uma festa que a chuva enxurralhou.


Um tempo, antes de vir, mas já depois.

Um quarto de brincar, faltando os filhos.

Um bosque, todo inteiro de não-tendos.


Vontade de chorar pelo sol-posto,

catar retorno em chão de um mar sem porto.


Que horas serão, agora que é tão tarde,

tão demais para além do que não foi?


E o coração, um gato que se esguia

e encharcado em luar, monotomia.







O FANTASMA



E sempre essa sombra

lisa, fluida, lassa,

que se acende e assombra

além da vidraça.


Essa coisa opaca,

que vaga, vadia,

quase lã e laca,

entre a dor e o dia.


Essa pequenina

nuvem adormecida,

presa na retina,

mas que foi a vida.


Não a bem antiga,

que já foi, morreu.

Só esta ferida

que em mim sou eu.







O NÁUFRAGO



A Malu, in memoriam



teu corpo negro iluminava tudo

com seus segredos fundos de mulher

e nele eu me enconchava em caramujo

no refluir-fruir dessa maré

de barcos emboscados no ar escuro

tarrafando sargaços de suor

teu corpo negro então ficava sujo

de claridade e desmanchava o sol

em golfadas de trêmulas espumas

teu corpo negro facho de penumbra

a marulhar manhãs no travesseiro


e eu náufrago de tudo me atirasse

às praias de teu corpo e me espojasse

nos minérios frementes de teus pelos.







O VELHO, ESSE POETA, O MAIS DE NÓS



A Arlete Nogueira da Cruz Machado



Começou a sangrar pelas lembranças.

Cada vez que ventava, hemorragia.

Deu pra suar guirlandas e crianças

e ao mesmo tempo sopitar magias.


Ficou primeiro devagar, mais fundo,

todo assomo de pássaros furtivos.

Lembrava-se de nomes e de mundos

que nunca vira nem, quanto mais tido.


Foi ficando enxurrado de já sidos.

Uma lasca de sol que se enchuvia.

Escutava silêncios que diziam

coisas fundas do mar, morte dos vivos.


Sabia quando o sol, bulia os ventos,

chamava nuvens longes, passarava-se.

Luares lhe escorrendo dos ouvidos,

meninos a vazar da mão vazia.


Foi ficando menor, mais sempre menos,

uma gota chuvíssima de acenos.

Sentou-se um dia ao sol, deixou-se à lua,

e dissolveu-se enfim, vazou-se ao vento.

 



setembro, 2021



Viriato Gaspar. (São Luís/MA,1952). Jornalista profissional desde 1970. Funcionário público aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Tem participação em mais de uma dúzia de antologias poéticas no Maranhão e em Brasília. Seus poemas foram publicados em vários veículos nacionais. Vencedor de muitos prêmios literários importantes, tanto em sua terra natal quanto no Distrito Federal. Bibliografia: Manhã portátil (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial Gonçalves Dias, 1984), Onipresença (poesia, versão incompleta, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial Gonçalves Dias, 1986), A lâmina do grito (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, 1988) e Sáfara safra (poesia, São Luís/MA: Gráfica SIOGE, Plano Editorial da Secretaria de Cultura do Estado em convênio com o SIOGE, 1996). Tem, no prelo, pela Editora Penalux, de São Paulo, os livros Fragmuitos de mim (antologia de sua obra poética) e Onipresença (versão completa). Possui, ainda, inéditos, dois outros livros de poemas — Voo Avesso e Lapidação da noite — e um de contos, Ir-me entre os vivos. Está terminando um livro de salmos em linguagem moderna: Sílabas de Fogo.


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