©bruno munari

 
 
 
 
 
 
 

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Da insônia

reserva sóis

de matizada angústia.


A lágrima,

oleosa do ontem,

leva aos olhos 

exaustos 

da imensa barca roída de sol.


De posse do campo de alvura 

versura a divina grandeza do grão. 







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Na áspera encosta do dia

o velho 

realimenta o fogo 

do encarnado ensaio.


Amanheço

à gratuita

gratidão e graça

de um único dia.


E anoiteço 

gênio,

pétala,

lanterna no escuro do céu,

sobrevivente remordido de mim,

pássaro furta-cor,

gestos sem corpo, 

música de ruídos...







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Sangria

renascente 

à luz

do sol

da noite.


A sobrevivência não é anfitriã muito delicada.


Ensaio vozes, 

ecos da minha origem: 

Eu sou a luz do mundo!


Na calçada de casa ofereço 

minha ingenuidade ao mundo:

— Bom dia! 

— Como vai!

— Tudo bem!

— Graças a Deus!







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Noite após noite de sol, 

recupero minhas mãos 

um dia impregnadas 

do estranho perfume

do adeus;

e nas águas 

sagradas 

da solidão

a Poesia é lágrima vertida para dentro.







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No paraíso das folhas

mordo 

verde-petróleo,

prata-brilhante,

mate,

sépia,

rosa-chá,

amarelo-pálido,

amarelo-limão,

ocre amarelo,

ocre vermelho;

e as costas

de nervuras de sol 

alaranjado.


Minhas mãos resvalam  

o chiado do arvoredo,

o arrastar 

de pés no cascalho,

os acordes de vida distante.


E a voz clara da criança,

como a minha um dia,

formiga 

a carne do meu peito. 

 

Logo o sol da noite se aproxima;

então separo uma folha 

oxidada de sol

como lembrança.







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Noite, víscera noite... 

Eu ouço o seu lamento.


Há um sol negro,

um chiado 

de brasas molhadas,

e uma flor a hálito de estômago

no esqueleto da casa rasgada de luz.

O vento dança 

num punhado de folhas vermelhas

gastas de sol.


Atraído 

à mesa empoeirada de luz,

o assoalho range no arrastar de meus sapatos.


Debruçado

à brancura da Obra,

flexiono o tempo,

todo o tempo do mundo, 

entre porta e janela 

entreabertas.







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O que vale a pena sem os ornamentos da salvação?


Entre vitrines, 

salas vestidas de veludo, 

há o espanto do cristal estilhaçado:

— Tu vendeste o Cristo!

— Tu incendiaste Roma!


Na incomensurável

luz da solidão, 

pequenas coisas são a divindade:

bichinho de estimação, 

florzinha pousada na relva, 

figo nevado de açúcar...







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Na baia de gema esmeralda

ossos dourados sob o oceano branco e azul.


O tempo 

que drena como água 

entre os meus dedos,

que adensa dunas, 

desidrata flores, 

devora o peixe e ostenta a espinha,

lambe os meus pés 

com a alvura da espuma.


Do céu azul anil, 

sequestro da infância, 

a lenta brancura de nuvens, 

a linha luzente do areal.


Uma mulher, 

todo o mar na borda do seio, 

larga os braços à rebentação.


Uma gaivota súbita:

zap! 

investe um arco 

prateado 

de sol.


Eu mal respiro

através do zumbido 

de moscas e abelhas.







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Desvendo

meus olhos reversos 

à folha oxidada de sol 

na noite fria fria 

onde arde uma fibra de luz.

A chuva 

colhe a memória dessa fibra 

como a uma terra sedenta

de algo além do tempo.







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É noite na pedra insone.

Janelas como pétalas se abrem ao alento da chuva: 

azul celeste,

violeta,

amarelo sódio,

rosa encarnado,

branco marfim.


Janelas 

em busca de coragem, 

esperança

e eternidade.


Janelas como

pétalas de luz

adormecem

no azul da noite

insone.


A janela que habito apaga;

também adormeço.


Ao meu nada, 

lavado de chuva,

a dor concede 

um grão de encantamento.







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Da minha janela 

vejo a grande pedra   

leve 

de véus de luz.


— Boa noite, dizem os habitantes da pedra.

— Dorme bem, outros respondem virando de lado na cama.


Eu medito:

incessante 

forma do passado:

tantos passos 

e dança por um dia.


Quantos passos 

dança e guerra

por um único dia 

escuro de sol?


Ó noite, 

de centelha e frio, 

dai-nos o hábito da paz.









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Aceito do dia 

a noite insone 

como ao sono 

do amanhã sem fim.


Mãos de rosa tocam meu sonho 

na flor da pele do instinto.


No óleo do ontem 

unto 

a partícula cadente de insônia.


Ao Deus, 

eternamente humano, 

ofereço o pássaro 

perfumado 

de terra orvalhada.


Suscetível 

como a cambraia

o mundo ilumino.



[Do livro Sóis – O Livro da Insônia, no prelo]

 

setembro, 2021



Ricardo Carranza (São Paulo/SP, 1953). Editor da 5% Arquitetura+Arte ISSN 1808-1142 Qualis A4 desde 2005. Possui publicações em Scortecci, Sesc DF, Revista Cult, Clesi MG, Zunái, Stéphanos, Mallarmargens, Cronópios, O arquivo de Renato Suttana, Triplov, &Escritas.org., Gueto, Ruído Manifesto, Pensador, Pixé, Acrobata. Publicou os livros Sexteto (São Paulo: Edição do Autor, 2010), A Flor Empírica (São Paulo: Edição do Autor, 2011), Dramas (São Paulo: Editora G&C, 2012), Centelha de Inverno (São Paulo: Editora G&C, 2019). No Prelo: Sóis — O Livro da Insônia. Escreve artigos e ensaios aqui: revista5.arquitetonica, desde 2005.


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