©greg montani

 
 
 
 
 
 
 

Tempão



Morei no nome antes do corpo. Nunca

me dei em discussões acerca da calma e da cama.

Tudo me pareceu mais com ver a rua

deserta depois que as crianças abandonavam

o sol e a poeira.

Morei num corpo nomeado.


E a vida foi ternura, engajamento

e preguiça até os quatro anos de idade. Morei no nome

e no campo? Sexo sem tambor. O pecado me precedeu o sono.

E escutei

do relógio uma confissão: conselhos incorpóreos.

Místico, andei aos pulos

pelos arbustos, estradas e trilhos onde perfurei

a inocência. Muito cedo, nesse país,

fui uma mulher desabitada, 

um homem xucro, a criança que morreu precoce. Agora 

ouço sermões no rádio. As benesses caem com o tempo, 

são colhidas; podam-se os brotos.

Vi então as cascas abandonarem uma pele lisinha 

para trás. As pedras amolecerem conforme 

a vontade dos homens. 

Os bichos irem dormir com sol. A chuva cortar volta da casa 

e da plantação. Vi tudo com olhos


que se despregam do rosto com a época. 

Há tempo para tudo, mas não nesse país.







Pávido



Pávido colostro, encha-me. Pelos

pubianos, recubram-me. Moradas

do além, afastem-se. A hora é longa.

Paixões antepassadas, manquem.

Cobras do destino, afoitas, driblem-me.

Cacos que quebrei, esfarelem-se.

Não há nada 

para ver em meus olhos, doutor. 

Nem, nunca, não. As coisas nunca

foram fáceis ― por isso não domo

mais a relva que se forma

no meu pensamento. Concubino.

Fiz do meu rosto um outdoor

de suores e risos contritos. Amei

como pude e sempre batendo

com os beijos

nas quinas. Aventurei-me pelas ruas

à noite porque ― à custa do medo ―

pensei que encontraria solução.

Consolos. Mais tarde do que o dia?

Não sei. Uma vez senti o terror

de voltar cedo para o mundo. Revides. 

Se ainda não revelei

o que todo mundo já sabia

era por preguiça de expiar-me.

Mais do que sempre. Mais.

A explicação na cruz levada às costas.

Temi tanto pisar em falso

que cair foi minha rota. A vida 

em minhas costas? Tormentos.

Agora-me. Apodreço. Ó, ó, ó. Preço.







Das urgências



Tem sempre algo urgente

que está escondido. Em toda parte:

esquece-se. E nesse mundo onde viver

é lembrar nomes, endereços, contatos,

perder o que quer que seja é um pequeno apocalipse.

Local, mas devastador. Ele deita a vegetação e queima

as frutas. Nada tornará a crescer.

Por isso leva-se um caderno, uma caneta,

o bloco de notas do celular,

a câmera, os olhos, as pernas e todo um sistema

nervoso prestes a entrar em ebulição.

Anote-se bem: a lápis ou à caneta: tudo

que agora cresce como memória e crisálidas,

e parece um filme sendo rodado,

não sobrevive à perda do mecanismo cerebral.

Acode-se. Atormenta-se. Mas não.

O que passou já é outra coisa. Ainda virá.

O que passou sou eu. É você.

Os olhos, veja: acabaram-se. E as mãos

de fazer cafunés. As mãos de passar

café todos os dias. Os pés com os quais,

em vão e triste, tentou percorrer

o mundo todo a fugir do que se acaba.







A noite inteira



Casas afundam na margem da rua.

O semáforo 

está condenado

a acenar para ninguém. Cada passo


que dou é um atentado 

contra esse silêncio, visitado,

de vez em quando, por um latido longe.


Ou por um caminhão que passa

pela entrada e saída da cidade


de casas adormecidas. 

Não sei o que sabem

esses olhos trancafiados. 


O que vejo não cabe no poema.

O que sei dura muito pouco.


Soletrar o mundo não vale de nada.

Não participo do jogo. 







Teologia






1.



Armou uma guerra contra mim

desde o dia da minha alvorada.

Fez-nos inimigas a mim e as cobras

desde muito tenra idade. Colocou no meu caminho

as emboscadas onde fiquei atado, perdido.


Os destroços contam de mim. Riu quando passei.

Desatento vivi sem desconfiar

do ódio com o qual me embalsama a cara, agora.


Aquilo com que não mais governa o mundo.




2.


E deita sobre a minha vergonha.

Tenho a cara achatada

pela bronca que lhe tomei das ventas.


E depois das chagas, que abri

com os dedos

em polvoroso rancor,

ouvi do céu muitos chiados

que diziam ser um sinal. Entretanto


sobra ao seu costume

enjeitar-me. Produzir um choro leve

e assim seguir para o próximo mundo.


Acabo ainda este ano.







Nunca fora vocês os que morreram



Mas veja pelo lado bom: ainda 

somos jovens para morrer.

Temos, de certa forma, uma vida.

A taxa de mortalidade do futuro

nunca esteve tão alta.

Não temos certeza de mais nada.

Dizer se tornou burocrático.

Mas agora sabemos que é impossível 

agradar a todos,              mesmo

dizendo que "nem a gregos e a troianos".

Soltamos menos fogos de artifício.

Encerramos as votações em muitos 

países.

Corremos menos. Comemos mais.

No meio da rua, um grito comunitário:

olhe pelo lado bom das coisas:

ainda é possível se salvar

do mundo. Ainda existem portas abertas:

as igrejinhas, os barracões, e os bares.

Sim, ainda é possível o genocídio, mas

veja pelo lado bom das coisas:

"nunca antes fomos nós os que morreram".







Dois janeiros atrás



Estão cantando os mesmos versos como se fossem, 

de novo, as mesmas pessoas; não mais desconhecidas 

pelo tempo ou pelo pó acumulado em cima dos móveis.

Caso se esbarrassem numa esquina movimentada,

em vez dos impropérios que disseram na última vez 

que se viram, diriam apenas "perdão" e "me desculpe" 

sem fazer nenhum gesto com as mãos, senão encolher 

os ombros para não encostar em mais ninguém.  Sem 

olhar nos olhos. Aquele pedido cavalgando os ombros 

distraídos. Dando à mínima para os dois, a calçada espia 

e segue seu caminho debaixo dos pés das pessoas apressadas

em se desculpar e partir. 







Circunstancial



Olhe para as circunstâncias: não era para termos 

sobrevivido

a essa infância. Não era para 

termos escapado

dessa vizinhança. Mas aonde chegamos 

não é lugar de descanso. 

Um começo imperativo

nos assombra em todo canto. 

Olhe para as circunstâncias: 

não devíamos ter escapado das estatísticas. 

Se aqui estamos é por teimosia. 

Sobrevivemos 

o inevitável. Ganhamos um pouco de peso. Mas olhe 

para as circunstâncias: a gola em que nos enfiamos 

é menor que o pescoço, 

menor que tudo que já tivemos, 

fomos, e vimos. Sobrevivemos 

à fazenda de cana-de-açúcar, mas olhe 

onde fomos parar: no meio de uma colheita.

Vamos ser honestos, 

essas mãos contrastam muito com esse piso de mármore.







A boca defunta dos meus ancestrais



Abrir a boca defunta dos meus avós é como abrir 

um livro antigo, ou melhor, escutar um disco de vinil. 

Ouvir  palavras, alguns dirão mortas, mas em pleno 

uso na juventude quase terminada. Abrir a boca defunta 

deles  e pescar sentidos outrora arcaicos. Descender. 

Desde muito cedo aprendi que há muitas maneiras de dizer 

as coisas. Nomear. Meus tios-avós contavam poucas 

moedas nos bolsos. Poucos dentes. Quando abriam a 

boca, o cheiro de tabaco de corda recendia no ambiente. 

Na mesa da cozinha competia com a fumaça do fogão 

de lenha. Entre jogos de carteado e conversas de assombração. 

Risos. Ouvia muito bem atento, a cabeça na altura da mesa,

a verdadeira riqueza é o que se traz no coração. Só muito

tempo depois entendi: quando alguém daquele tempo, 

daquele lugar falava em coração, falava em consciência. 

É preciso ter cautela com o que se guarda no peito. 

É a algibeira das memórias. O balaio das imagens. É por isso 

que aqui se diz tabule com as panelas, pois não é tudo que 

vai muito tempo ao fogo. Nem tudo combina com o que 

arde, estalando lenha. É preciso, digo, é preciso 

apurar muito bem as palavras na boca. Tem pouco custo

de armazenação. É preciso ter cuidado ao debulhar os grãos 

entre os presentes. Aquinhoar. Já vi muito prato bater,

panela cair, copo quebrar por conta de uma palavra 

caindo desajeitada, feito um enxadão, no pé dos outros.

As coisas que a gente ouve as coisas que a gente

grava ficam reservadas no paiol sentimental. Turam.

Viram palha com o tempo. E, depois, enchemos os nossos 

colchões e travesseiros com elas. Aqui, onde dorme-se por cima

das mágoas. E trepa-se ouvindo a respiração pesada

do tabaco das visitas. Os sussurros fantasmagóricos

das galinhas noturnas. Ao abrir a boca e proferir maldições

contra aquilo que se passou, contra o dia da concepção,

contra o próprio parto, Deus desce de sua glória e se senta

junto da gente na mesa. Pranto.



[Poemas inéditos]

 



dezembro, 2021



Pedro Moreira é poeta. Nasceu no interior de S. Paulo, em 1995. Editou o blogue literário Idê. Publicou a coletânea de poemas intitulada Malemá (Patuá, 2021).


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