©thomas wolter

 
 
 
 
 
 
 

EVERY BODY DIE



Every body die, mesmo Deus e a sua linguagem. Mas mesmo assim, eu acordo para terminar a reza, para refazer o poema e a poeira desta insónia que há dias me vem assaltando a memória e os sonhos. Umas vezes são os pássaros dedicando às noites a razão do seu incêndio, a fúria da sua sombra ou o cabedal da sua solidão sobre o lodo chão deste submarino que aos homens ensopa; e insubmissa verga-se a cicatriz das madrugadas sobre o coldre das flores, sobre o ramo das águas conduzindo a conjugação do vento (…)  à angústia de ter um deus suplantado sobre o abismo d(est)a carne, deste templo que se afivela ao esquecimento. (…) diz-se das flores o pecado, a morte e o silêncio que dos espelhos nos atravessa.







SOMBRAS



Tudo continua com o semblante vago de sempre: as sombras sufocam-se pelo reflexo do mar em seus olhares esquivos e epilépticos de roer a franja dos ossos; volto a aurora da manhã com a mesma dor que a alma nunca amanhece, como se o desespero fosse tingir a madrugada com o retinir de um Blues pobre de cálcio. A memória alheia-se do cansaço que tortuosamente abriga na voz a mácula movimentação do medo. Entedia-me esse vaivém que os dias acasalam. Ser vagem deixou de ter o mesmo gosto; e de repente, sinto que ando a morrer para dentro, assim como o mundo vai deixando de ser mundo e o sonho vai deixando de ser futuro.







[…]



Para Luiz Alfredo Garcia-Roza



Ao escrever a margem húmida do silêncio com o sangue, espreito a rouquidão da língua, a insígnia pronuncia dos pássaros balouçando o verão das noites num barco sem leme — a ignição dos lençóis para o derradeiro sono, pois já não guardo nos bolsos o sopro das sombras e a sua animal perversidade, mas sim a lágrima em que se ampara o fecho da voz na escuridão. Retenho na memória a bússola de uma navalha sangrando botões de luz nas mãos, como se recuasse o disco planetário sob a agulha de um vinil tocando "Plastic Heart" em Um Novo Dia Para Matar, ou como se eu regressasse a ideia platónica do primeiro amor, a sinceridade (banida) da infância, a originalidade/ inocência esquecida do léxico infantil, e a oração própria de quem escreve lembranças com a tinta fechada e o coração a escapar-lhe pela boca; pois tudo o que — agora — digo me parece um adultério, a dura sinonímia de estar a plagiar o discurso dos outros. E talvez por isso, tenha ainda a ténue necessidade de regressar ao útero das madrugadas com a seda dos sintagmas cobrindo-me o sonho.







[…]



Sentado à secretária, atiro a fala ao alpendre do silêncio; procuro entre os dedos, das mãos, o caminho que ladeia a angústia do tédio, mas não encontro, e sigo adormecido no asfalto da dor. Os prédios pelas janelas avivam a distância das estações. Há um presente invisível entre as pessoas, ou a palavra é que nos chega cansada da viagem!? (Então) pelo gargalo desço mais um bocejo que sabe a acre, o mesmo sabor azedo deste amor que me ensinou os íntimos segredos desta mulher a quem escrevo com o sangue o seu nome, e com a carne a escuridão da sua ausência, pois, atormenta-me o abismo do seu silêncio. Mas peço à Deus que me dê da palavra o revólver assassino deste sentimento, ou a corda suicida de quem há muito a insatisfação lhe cobra um escrito. Pois, do mesmo modo que um satanyoko metido a poeta escreveu na água, que a verdade existe antes da expressão, entretenho o entardecer do leme nos meandros de Abril, para que a árvore da memória observe o precipício onde durmo a profética sombra do cansaço, o suspiro onde anelar o Sol das manhas e tardes a lareira deste sono em que tudo se ensopa…. (como que a roubar dos meus colegas a atenção que ao professor lhes é devida.)







[…]



O que resta ao corpo se fecharmos a sombra?

A missa do sétimo dia, talvez, 

Ou essa ferida de cuja insónia é um pesadelo

E cujo humos nos fere o coração e o proibido sono

Das pedras.


Ora, temos a voz e não temos nada.


A sombra foge-nos da morte

Como a este pássaro da noite, pois o que se tem no silêncio

É o lume da ausência a cruzar-nos as fotos do passado,

Pois os domingos cheiram à sangue

E o pão de cada dia caí-nos hoje amanhã e para sempre 

Como que levado pelas mãos do cansaço

Pois vezes há que

Abandonados são os sonhos à beira de uma estrada

Como são essas estrelas apagadas no centro de um nome

(E suas ruínas)


Porque agudo é o perfil dos anjos revezando

A angústia sob a Santa Seia do senhor.







[…]



Em casa, os gatos espiam os nossos pecados

Como quem escreve a insónia de nossas noites

Sobre o feitiço de nossos medos

E todas as cruzes por onde bendizemos

As nossas faltas,

Pois um dia repartido, é um sonho desgraçado

E não precisamos de ser Isaías, Moisés ou Jacó

Para percebermos o quão custoso é um sorriso

Ou a liberdade de estar-se feliz hoje e amanhã

Sem ter que contar que tudo é uma falência

E que os nomes não são mais nada que essa terrível lembrança

A que o tempo nos molda

Ou a foice em que se assombra a luz de nossas memórias

Quando as lágrimas ameaçam a desminagem.

E porque de sal é feito o esquecimento

E de sal é feito todo o lamento

Grafamos sobre as nossas árvores as cinzas desse tempo primordial

Porque não só de dor são feitas as nossas chuvas

Como quando nos olhamos pelo espelho e a paixão em nossos olhos brilha

Como esta cidade que morre sobre os  céus de nossa boca

Com a palavra em silêncio

Pois eis pelas manhãs o coral de nossa igreja:

Calm down, calm down and dae as an Angel 

On the briedge;

Porque humano é o sono de um deus 

Caído em nosso colo.







[…]



Depois da morte sempre custa repor o dia

Porque o poema sabe mais salubre ainda

E o abismo pelo qual sempre enxergamos

O clarão das manhãs

Está mais velho que o senhor da rua 15

E suas dores arrastadas em muletas brancas

Porque branca é a enumeração do pecado

Quando ainda sonhávamos com as gravatas

A sucumbirem-nos as vidas

Em pleno domingo de ramos


Pois quem diz páscoa, diz Jesus, diz Cristo

Ou o vulto desse pequeno deus nórdico de quem todos nós blasfemamos

E o reduzimos a nada

Porque aqui os braços cruzados não operam milagres

E nem saciam a fome 

De quem a muito anda ajoelhado

Como que limpando à lágrimas

Todo o mal deste canto do mundo esquecido,

E mesmo assim fechamos os olhos para receber a noite

Porque das sombras se fazem as flores

E seus arco-íris de sete pétalas

Quando o silêncio estoura dos ossos

Depois a febre da tempestade.







[...]



Havia esta fotografia que nos tomava de assalto

e ninguém falava das noites como as mães guardadas

sobre a fuligem de suas lágrimas

ou sobre a cinza destas noites de páscoa

com o coração a bombear o vinho no lugar do sangue

pois havia esta curva para onde todo o homem se fazia

e ninguém nos salvava dos impostos de renda, de IVA

e nem do pobre alcoolismo que empreendíamos

quando os Bancos e agiotas assaltavam-nos a casa

e saqueavam-nos os poucos bens que a insónia nos legou


então começávamos a adoecer da boca

dos pés dos olhos e das mãos como nunca havia-nos acontecido

ao coração 

e assim se iniciava a folia do nosso testamento

pois havia esta sombra para onde todos sonhos se reclinavam

à cripta de nossas culpas e medos,

e os que eram virgens, já não eram virgens

pois haviam perdido o céu de si mesmos  

e olhavam para os espelhos como uma reclusão

chamando incenso da morte pelos bruços de uma rosa 

e eram frias as suas águas

como este infortúnio de gatos a velarem-nos o sono


ou este pesadelo para onde atiramos a inocência das coisas 

por sobre o barro desde nome que a saudade construiu.







[…]



Como dizer "o amor é fogo que arde sem se ver"

sem que a palavra desvanece e a saliva

te queime a boca?

Como dizer Cristo, Jeová ou Deus, e ainda assim

incitares rancor,

Vingança, ou ódio em tua vida?

Como dizer um outro nome, um outro corpo

e um outro beijo

se é de mim que o teu corpo, a tua mente, e o teu coração

chamam?

Como dizer a verdade e nada disto te afligir?

Como, como, como?







ANFÍBIA



Depois de perdida a casa, resta-nos o enxofre pela boca

A lágrima pela qual construímos o mapa da ausência

E estas cores de Saturno inviolável porque não resta nenhum nome

Com o qual esquecer o inverno, ou a árvore deste dilúvio

Que nos atravessa a alma o corpo e a sorte

Tantas, e tantas vezes


Como um dia ou um tino repetido sobre a artéria desta sangria.

E as orações desfalecem empilhadas sobre a ferida do tempo

O retrato repentino de quem há muito a insónia tomou pela mão

E ensinou o mais secreto segredo da sombra e da anfíbia fome


Como este amor que resoluto se mostra sobre as almádenas do silêncio

E suas historietas de ânsia e depressão

Com esta arritmia de deflagrar sobre os ossos a poeira

De todas as longevidades outrora reverenciadas

Porque a mácula é um pesadelo insone

Sob a labareda do silêncio, este abismo de cansaços

E de invariações alegóricas em que copulam os corpos 

As cinzas e o seu esquecimento.






[...]



É sexta-feira, 13 e, eu acordo desse pesadelo

Que fora o corpo das estrelas em minha boca,

Olho p'ra o vazio desta página

E a chuva assusta-me 


Assusta-me, do mesmo modo que assusta-me

A cama vazia à madrugada

Ou a falta desse pão com que matar a fome do amor

Ao pequeno almoço, 

(porque cedo te esvais deste sono como que a puxares

contigo a quilha do meu coração)


Dizem que a maçã era um sonho

Mas eu jurava que os fios do teu suor eram o destino

As águas pelas quais andei pelo teu vasto deserto

A coleccionar área, fogo, água, ar e esperança

Pela geada do teu sorriso


Mas agora tudo se apaga

O luar, o solstício e chama desses versos

Com que te esculpo no silêncio

Do poema.







EVANGELHO SEGUNDO JOÃO DE DEUS



Abrir o evangelho com o louvor mais fúnebre

e no meio a todo esse silêncio da comunhão

perguntar ao Pastor da forma mais grave e simples possível

"onde estão os restos mortais do Diabo?"

e depois calar-se com o mundo, com o corpo e com a respiração dos espelhos

e esperar que se lhe tornem hóstia ou o sangue por entre o cálice

de Cristo, do Bispo, do Papa, de Vítor, ou da dita mulher amada

Pois são suas as lágrimas derramadas sobre o tumul(t)o

de Deus, de seus filhos, e do meu nome, humanamente esquecido.

Amém!

 



dezembro, 2021



Óscar Fanheiro nasceu a 07 de Agosto de 1995, em Maputo, Moçambique. É estudante finalista de Ciências da Comunicação (na especialidade de Jornalismo) e de Ciências Sociais e Filosóficas, e cofundador do "Movimento de Relações Públicas de Moçambique". Em 2018 foi finalista da 3ª edição do Prémio Literário UCCLA — Novos Talentos Novas Obras em Língua Portuguesa, com seu (primeiro) livro inédito de poesia, intitulado A gramática da solidão; em 2016 foi também finalista da 1ª edição do Prémio Literário Fim do Caminho, dedicado à modalidade de contos policiais ou criminais. Tem textos publicados em antologias, blogues e revistas electrónicas (das quais se destacam: a Revista Ruído Manifesto, a Revista Vício Velho, a Revista Literatura & Fechadura, a Mallarmargens Revista de Poesia & Arte Contemporânea, e os blogues Tenacidade das Palavras e, Cratylus — blogue de linguística, literatura e artes).


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