©ariel núñez guzmán

 
 
 
 
 
 
 

Breviário de um trajeto rude



Os espinheiros que perfazem o caminho

exercem sobre o chão uma ameaça ressentida.

A natureza dessa ocupação fere de tanto seco desfolhado

todo aquele que toca ou mesmo vê distantes

os espinheiros que perfazem o caminho.


Palmilhando o terreno cercado de esporas,

quem se aventura nesse trecho, ouve ruídos

de pedra esfalecida e sabe também sua mesma míngua.

Já não recorda de onde vem, pois segue somente

palmilhando o terreno cercado de esporas.


Aqui a vida é toda um corte sobre o outro

e cada palmo do corpo é uma história que não vinga.

A pele se entrega ao galho, o chão se rende ao corte.

Um cenário de feridas secas grita a todo instante:

Aqui a vida é toda um corte sobre o outro.







Noturno



Houve uma noite.

Uma noite somente e através dela

toda vontade desse mau destino 

arrastando sempre perda e ossos.

Apenas essa noite raríssima 

suspendia os efeitos do fim 

porque nenhum sinal, 

nenhuma agitação.


Na primeira lua a conquistar o ar inteiro

dessa única noite entre dois séculos indefiníveis

um vestigiozinho de sol no céu possível

lembrava a sorte que há na luz dos olhos mortos.







Rumor de nuvem



De alto a baixo o vazio deita ausente no universo.

A imensidade bravia ganha, de vaga em vaga

(como um vento alvoroçado demolindo a vida),

o vasto vale onde a leve ideia da calma pasce.


Num estardalhaço apresentado aos astros, assustado, 

o céu sem chama estampa a estranha cor castanha.

Cor igual à da lama que toma as fartas águas claras dos rios 

quando o mesmo céu se desmonta e tomba sobre terra.

Então o espaço inteiro ronca destroçado na tormenta atordoada.


Agora a fúria arrefece.

O ar parado oferece seu silêncio falso.

Devagar a luz avança. Desde o leste intangível

acende o seco dos ruídos corriqueiros 

com as mãos mansas na manhã ainda úmida.







Os dias de janeiro



Terra natal era a casa de minha avó

com seu salso-chorão pesado que pra mim

era a tristeza toda e a dor do mundo inteiro.

Também a aparição do mar, de embarcações


e de rajadas trazendo a aridez das dunas

para dentro dos olhos, sobre outro horizonte.

A descoberta da longitude traçando

um lugar de interstício. Os dias de janeiro:


um intervalo para cada nascimento.

Depois deles, retorno à vida de costume

onde sempre era fácil alcançar o céu


que por completo então cabia numa nuvem

firme e quase redonda em risco azul de giz

gravada no chão breve de qualquer calçada.







As mulheres que me foram



Essas mulheres todas que me foram,

desde àquele lugar antigo onde um verde

com seu brilho remoto até este aqui, dia após dia

restam desfeitas entre feições e outros gestos.

Tornaram-se iguais aos nomes corroídos

em restos de proa que mal conseguem lembrar

a embarcação anterior aos castigos do sal morto.


Léguas adiante de onde esqueceram-se soterradas,

as mulheres que me foram ainda carregam consigo

a extensão etérea de um continente inacessível.

Como um ruído maldito entre dez mil silêncios

suportam tudo que existe desde o início do mundo.







O mau tempo do rio



Sobre o riacho a tempestade

rude caía atravessando

toda extensão, que volumosa,

nem mais bastava fosse úmida.


Uma carcaça horrível feita

de agitação e lama e força

em vozerio (ronco), o corpo

somente mais grave tornava.


Agora sempre carregava

aquelas marcas pavorosas.

E ainda quando outro mormaço


o traga calmo, esse riacho

irá guardar no fundo o mesmo

corpo de chuva destroçado. 







Um lugar



Quando meu pai chegou no fim do mundo

lembrava um rio em correnteza morta.

Fantasma cego de um sonido turvo,

o moço antigo vez por outra chora.


Dos bosques resguardados onde vivo

desde antes de pisar no extremo ponto

vejo sempre o mesmo homem mais menino

que alegre já passou por estes soutos.


Agora meu pai é um lugar sozinho,

uma extensão de terra, pedra e vento.

Fantasma cego segue o seu caminho

como se o moço ainda tivesse tempo.







De tudo que sobra



Daquele dia em diante, apenas uma sombra

sobre a superfície morta do espelho.


Do lado de fora da casa

toda sorte de distâncias

que um vento interminável rumorava.


Por curiosidade apanhei cada um de meus anos

e tornei a sonhá-los outras dez mil vezes.


Quase não era nada aquele vento,

mas trazia-me coisas do mundo inteiro.







Linguagem e semelhança



Retire do oleiro e seu trabalho

qualquer informação desnecessária


do barro

do forno

do humor das mãos.


Essencialmente, a figura consiste

nisso que sobra 

[e não consta aqui].







Oriki da cheia



Muita força em repouso num cinza frágil.

Rios e rios que eram um.

Cume pra marca da água,

cimo sem monte.

Ilha ao redor de tudo.

Entulho. Sobra da margem.

Podre: muito nem dá pro gasto.

No lado de fora, por cima,

o silêncio todo de dentro das coisas.

Casario nesse escuro de lago fundo.

Barro. Santíssima Bárbara deslavada.

Três dias lentos fazendo água e mais nada.







Linha do tempo



É quando me alcança esse abandono

que o mundo principia.


Amanhã, tão logo o reescreva,

talvez alguém se detenha

na alternância das Idades;


provavelmente

à sobra do aproveitamento


e provavelmente também

com a mesma gravidade cotidiana

na qual o sol a chave o fundo manto

no futuro do inverso

nem suspeitem do que lhes devam

os fonemas —

nomes apenas de escora

entre outros fenômenos sem conta.







Visão de espécie alguma



Vultuoso, um cinamomo surpreende

verde-breve o mosqueado de mil pedúnculos

e repete, à vista,

o que de suas sílabas sussurra.


Porque seu ramo rememore a oscilação 

sem causa do tempo

lhe vai bem recuperar assombros à casa

em frente

acercando-se de outro

e ainda outro alheamento.


De modo a enfileirar-se nessa nostalgia

alça variáveis ao irrefletido costume

do sempre igual e cada vez diverso.



março, 2021



Denise Freitas (Rio Grande, 1980) é escritora e professora. Autora dos livros O gesto sensível do mundo (Class/Bestiário, 2020), Percurso onde não há (Artes &Ecos e Editora Bestiário, 2017); Veio (Butecanis Editora Cabocla, 2014); Mares inversos (Casa Aberta Editora, 2010) e Misturando memórias (Editora Maria do Cais, 2007). Possui publicações em coletâneas e revistas de poesia e crítica literária como Sibila, Musa Rara, Modo de Usar, InComunidade, entre outras. Escreve o blogue Sísifo sem Perdas.

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