©enrique l.g.

 
 
 
 
 
 
 

Morte



é essa navalha da sorte

(sem espada de São Jorge)

o mais incicatrizável corte

em quem não morre

é a culpa do mais forte

é o lorde de sangue porte

é a tripa que o vácuo torce

e nunca se contorce por si só

 

 

 

 

 

 

Barricada

 

 

Do amor entulhei cada centímetro do fogo

cataloguei os arrepios bestiais

e a saliva escorre em vultos.

Mas agora as portas estão fechadas.

Com meu velotrol limpo o invisível entre os tacos

e os raios do sol asteca querem ser honrados

(esse sol também tão solitário).

Com medo, me lembro do poeta:

"Da vida não se sai pela porta:

só pela janela".

E ela está escancarada.







Os galos continuam tecendo a manhã



a criança pinta os pés

da galinha de esmalte

miúdos na bacia 

de alumínio da mãe


o pai fala para o filho

que vai quebrar seu pescoço

se ele entrar no mar de novo


a criança quebra o pescoço da Barbie

a mãe fala que

não vai comprar outra

a mãe e a filha com as unhas pintadas


Os poetas não deixam em paz:

o mar

a galinha

as crianças

os pais


hoje, parece que os

galos cantaram menos.







Depois da vacina

 

 

cortar as unhas afiadas

para escalar o poço da sarjeta

reconstituir todas as cabeças

oferecidas de bandeja

grudar os umbigos

no resto de placenta do planeta

 

destruir todos os espantalhos

esses que fingem ser humanos

não deixar atalho algum

de como voltar a este ano

 

carregar os ossos deslocados

de todos os antepassados

colar as partes em laços

nadar com os sargaços

fazer deles nossos braços

veias e passos

 

Aí, sim, encostar

as palmas das mãos

no rosto de Deus

e voltar como um raio

apenas um raio

mas não sozinha

viva pela primeira vez.

 

 

 

 

 

 

Observar mais os animais

 

 

 

 

 

 

O sabiá prevê tempestades

em outros continentes

você vê minhas lágrimas

do banheiro

e diz que o furacão

sou eu

 

 

 

 

 

 

Ostra aberta



seus lábios gomos

mais de uma pérola

beijo de fome

língua de falo

fala sem auréola







Tagarelice



Disseram que o ignorante é mais feliz

Disseram que comer antes de dormir dá pesadelos

Disseram que ser ignorante gera uma nação infeliz

Disseram que não comer é pesadelo

Disseram que quem diz muito não faz

Disseram que quem faz muito não tem tempo

Disseram que a voz do povo é a voz de Deus

Disseram que o povo não tem voz

Disseram que não há um Deus.



 

 

 

 

IRCH!!!!!!

 

 

eu perco a ponta do durex

é como se eu perdesse a ponta da vida

aí eu perco o durex de novo

 

depois tudo gruda e vai embora num segundo

emaranhado de nós, como a vida

eu sei é só o durex

é tão simples

como você não acha a ponta?

ou eu sei, é só a vida

e não consigo parar de pensar num road movie

enquanto não encontro a ponta do durex

 

látex látex látex

a vida fica espremida

(dentro de um molho de látex)

aí penso na camisinha

 

o bolo que eu faço de durex me irrita

relaxo ao ver um tatu bolinha no jardim

bom saber:

há muitas receitas para bolos na internet.







Aula de anatomia para certas meninas

 

 

as meninas de outra época 

colecionavam e trocavam papéis de carta

os de seda — os mais valiosos — amassavam

não eram espichados como o tergal das saias

 

na ponta dos dedos toques sutis:

nervos fibras músculos e enredos

como uma descoberta num mapa

cada desenho uma labareda

a eterna promessa do completo

 

o papel de carta insinuava

o que não seria estudado na escola:

tesouros de piratas de seus corpos

marés encharcadas de águas-vivas

a ponta da pirâmide, esfinge

 

o cheiro dos papéis de carta:

orquídeas de Madagáscar

plantas carnívoras

coberta descoberta

lençol não trocado

árvores frutíferas

 

os envelopes das cartas

ficavam quase abertos

asas de libélulas

retirados em dedos ébrios

com luvas de cetim 

de cartolas mágicas

 

já ouvi falar que as meninas

ardiam seus papéis de carta

em ferros a vapor 

sem nenhum rubor

não aprendiam com as mães

mas com as mãos

 

os papéis importados

forasteiros

abriam-se 

como figos na imaginação

um livro pagão

se em blocos

as meninas molhavam

a ponta dos dedos

e desfolhavam

um a um

 

alguns papéis de carta

se esfregavam dentro

das pastas

assim como as pernas

das meninas ao comprimir

seus travesseiros 

tão bem lavados pelas mães

 

as mãos os dedos

eram cúmplices

assim como 

as pernas penas

sem tinta sem álibis

 

as meninas não falavam

dos seus dedos no recreio

merendeira lacrada:

maçã, bolacha recheada

os meninos preferiam

medir coisas no banheiro

 

meninas

de matemática não eram certeiras

de vasos sanguíneos mais festeiras

 

pequenos montes de eclosão

meninas e seus dedos

os meninos jogavam tapão

 

as meninas não trocam mais papéis de carta

algumas ainda guardam suas pastas

tocam-nos como tecido de alfaiataria rara

e sentem o cheiro de notas

das primeiras alforrias

 

 

 

 

 

 

Semiótica e semideuses

 

 

eu queria subir em um tsuru

olhar bem antes 

para o seu dégradé de cores 

e rir da sua longevidade jovem de mil anos

 

é um pesar ser tão eterno

(triste ou feliz) sem descanso

sem desmame do tempo

 

eu queria ir do Japão para a China

no seu grou amarelo poeta Calixto

destruir e reconstruir a Torre

sete vezes numa bebedeira cabalística

e trocar as cores das cerejeiras

pelas cores dos pessegueiros

mas não posso: eles também

têm vida longa e próspera

 

eu queria ter o corpo do Sísifo

as minhas pedras têm o mesmo peso

e rolam do topo todos os dias

se não for pedir muito

ter menos ouvido para escutar

as senhoras disputando

a eternidade antes da missa

 

(os suicídios estão mais sinceros

que as revoltas)

 

gostaria de sacolejar bandeiras

todas as cores 

e já agora

a maioria cor sangue

mas acho que as pessoas

deveriam enxergar 

como os cachorros

espectros azuis ou laranjas

— elas estão bem bipolares

não merecem as cores

 

cansada: quero

trançar meu cabelo

asilar este momento

e despertar amanhã

menos sóbria e sombria

ver sombra de árvores 

no espelho dos meus olhos

e no colo da vida

ser flor das benzedeiras







Empatia mórbida



tenho a cabeça de alfinete

de uma abelha num repente

ao tentar cruzar

a porta translúcida

no poente de vidro

no chão

se acaba


tenho a cabeça espatifada

de um homem numa caraça

ao tentar puxar o ar puro 

em caça à procura

com medo desse ar tão largo

e que na cama se acaba


somos parecidos

queremos trocar

no mais abissal

submarinos

venenos

ferrões


no pranayama

das abelhas

morremos e nascemos

quatro relógios por dia

na arquitetura das abelhas

morremos e nascemos

quatro relógios por dia


e andam varrendo todos os mortos

sem olharem para suas asas







Perto

 

 

No cafundó da minha alma

onde libélulas bicolores 

se cumprimentam

mora a certeza de que a razão 

atrapalha a beleza do infinito.

A falta de protocolo dos sentidos

eu assino com incenso.

 

Na razão, conheço o fundo das minhas rugas

os calos sem lógica dos pensamentos.

Nos sentimentos, 

a idade é um eterno cochilo de menina

depois de brincar de bonecas

farta de estações de deslumbramento.

 

No cafundó da minha alma

onde peitos enormes 

me amamentam

mora o meu maior rebento:

a habilidade da loucura

sem julgamentos.







Besta



Quando um homem bate em uma mulher

o corpo bicho dela senta 

no canto do labirinto 

do cérebro e se contorce 

com o manto 

de dez a quinze minotauros


Quando um homem bate em uma mulher

o olho dela vai pro canto 

e tem a cor de azeitona 

já mordida e com caroço


Quando um homem bate em uma mulher

todos os marimbondos do tórax 

saem pela sua boca

mas ninguém vê 


Quando um homem bate em uma mulher

o corpo dela depena

e seu sangue ferve

numa bacia de prata 

(os pedaços são dados aos cães

como se eles entendessem

o barulho minguado 

da lua de suas tripas)


Quando um homem bate em uma mulher

ele sempre tem forma

de pino ou garrafa

e ela desfigurada


Quando o homem bate em uma mulher

ela sabe que jamais poderia ser um homem







Passarinhos



cinco e trinta e cinco


os ponteiros

voam pássaros

hora dos reis 

sultões imperadores

sacerdotisas rainhas

monarcas presidentes

duquesas atravessarem

o céu denso

o portal da aldeia 

da coreografia

sem ensaio

passarinhos são xeiques

xamãs aiatolás deuses deusas

o João de barro não é só um joão

sem reino eira e beira

passarinho é um diminutivo

palavra grande sem título

o diminutivo deixa as palavras

mais bonitas

os títulos são só títulos

que os passarinhos não têm.

É mais leve voar assim.



[Do livro Ando caindo cada vez mais leve. Penalux, 2021]

 



dezembro, 2021



Carla Andrade é mineira e brasiliense, mas gostaria de ser do fundo do mar. Publicou Ando caindo cada vez mais leve (Penalux, 2021), Caligrafia das nuvens (Patuá, 2017), Voltagem (7Letras, 2015), Artesanato de perguntas (7Letras, 2013) e Conjugação de pingos de chuva (LGE, 2007.) Alguns de seus poemas foram traduzidos para o italiano, espanhol e inglês. É jornalista e servidora pública.


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