©karen nadine

 
 
 
 
 
 
 

NA PRIMEIRA PESSOA



Acredito cada vez mais na energia vital

Resisto cada vez menos à carne de bode

Ainda percorro, dia sim dia não, 

A Avenida Maria Moreira Lisboa

É minha via-crúcis predileta

A Rua Nova Esperança ficou para trás 

Apenas geograficamente

Seu filho ilustre tomou chá de sumiço 

Uns goles de café Ticiana!

Quantas vezes perdi o ônibus e, no sufoco,

Dei mil voltas pra fugir dos credores 

Ou perseguir Manezim do Gavião?

Quantas vezes acordei de noite 

Repetindo sem saber Goethe: "Mehr Licht"?

Quantas piabas engoli pra ficar 

Igual a Bita e desafiar o perau 

O redemoinho o saci-pererê?

Quantos mergulhos para compreender 

O milagre das pedras ocas?

A moral do cu da cobra, meu rei?

O bem tem mil e uma utilidades?

Não perdi a cabeça porque conheço 

Bem o caminho de casa

Mas já pus o carro na frente dos bois 

E, quer saber, foi muito emocionante.







NASCER



Nasce-se quantas vezes nesta vida?

Tantos nasceres quantos morreres?

Nasce-se antes para morrer depois?

Morre-se durante renasce-se doravante?

Nascido sábio e morto abestalhado?

A cada agosto rejuvenescido tal qual

Benjamin Button? Parabéns pra mim!







SWEET ITANHÉM



Não quero nada de ti, embora seja teu filho,

Não exijo nem um pingo de compreensão,

Embora louco de amor por ti, não desejo

Tampouco que dediques duas linhas à minha

Memória, embora conhecedor das tuas veredas

E más intenções


Não suplico sequer uma gota do teu doce

Leite, a despeito da minha enorme sede,

Só não abro mão da condição de crítico

Teu: porque contei todas as tuas pedras ocas!







PERDI A CONTA



Das vezes (ai de mim) em que

Queimei a língua

Com chá quente


Os heróis eram movidos

A feijão com arroz

Coragem e saudade


As ervas daninhas:

Pipocas coloridas que

Brotavam da terra


As modinhas de viola

Os causos delirantes

(En)cantados por seu Manuel


O peixe era voador

Ou de preferência frito

Mãe Lua caprichava no sal


Dos domingos em que

Praticávamos o abraço

Tamanho família.







COISAS DA ROÇA



A pinga dos São Leão é coisa fina

Made in Curvelo da Conceição!


Os galos de Ibirajá fazem barba 

E bigode com jeitinho capixaba.


Os gaturamos da Vila Resende

Enjoaram de alpiste e

Protestam com o bico em riste.


As pedras preciosas do Salomão

Se fingem de mortas mas, no fundo, 

São fugidias de noite e de dia


Na feira livre de Batinga os

Índios cruzam a ponte do Umburaninha

Trôpegos de caninha da roça.


A vaquinha do Mutum é capital: 

Dá o leite e, depois, vende o 

Queijo no mercado municipal.


As galinhas-d'angola dos Motas

Põem ovos como ninguém, 

E reclamam da vida que têm!


São José vila santa da pedra oca 

Do capim pubo e do mel amargo!







MAKE FACES TO ME



Que posso lhe oferecer que reúna 

visgo e ânimo?

Como já possui a dor, segue a raiz, 

o tronco e o fruto

A raiz para fixar amizade e nuvens 

vagabundas 


O tronco para amarrar promessas 

de amor bravias

O fruto para matar fome de voo e 

sede de riacho


(Agora faça cara de paisagem para 

mim comigo!) 







À MEMÓRIA DOS PLANTADORES DE VACA



Vocês foram tudo na vida:

Capim, café e cumpadis 


Vocês são nada, nadinha 

Na outra vida, agora, nuvem 


Vocês formavam a mais 

Bela e bostal fila indiana 


Agora, ficam suspensos  

No boitempo, bem feito! 


Pouparam e venderam 

A alma ao Bezerro de Ouro 


E, no fim, saíram no lucro:

A eternidade bovina


Vocês plantaram vacas e

Colheram leite e deleite 


Um pedido formal meu: 

Mandem notícias frescas 


Uma curiosidade secreta: 

Metano cheira à merda?


Uma indiscrição minha: 

Vão plantar vaquinhas!






BATISTAS



Não perdem uma briga e

Passam fácil pelo buraco da agulha


Politicar é a especialidade

Número um dos Batistas 


Conversa pra boi dormir 

Definitivamente não é com eles


São gente como a gente: 

Têm medinho do escuro 


Os Batistas são solenes e —

Muito — desconfiadinhos 


Não dão a mínima pro meu 

Sentimentalismo barato


Previsíveis, nunca vão dizer

Por aí: Viva Água Preta! 


Os Batistas serão pau pra 

Toda obra até a 3ª geração 


Depois vão virar nostalgia 

Ou anedota cabisbaixa







BOSTARE



Quem veio ao mundo primeiro: 

Os humanos ou os bovinos? 

Estrearam no mesmo dia e hora! 


Ambos berram, praticam a bondade 

E a maldade e se fingem de mortos, 

Quando lhes é conveniente! 

Na hora h, desejam não ter nascido! 


E nem adianta chamá-los de bestas, 

Que não levam desaforo para casa. 


É a lei da reciprocidade: cagada certa! 


A grande invenção deles é o curral 

Onde, em momentos solenes, se 

Reúnem para tirar à sorte e fotos 

Ou simplesmente perder o latim... 


Uns preferem se borrar a assimilar 

A tal perda do latim, que não lhes 

Entra fácil no frágil entendimento, 

Talvez porque sempre o possuíram...


— Entendimento?


— Latim!







AGUAPRETICES



Vaivém sem propósito

mas necessário


escada de Jacó

estrada de Batinga


degrau de algodão-doce

ou madeira de lei


o vão (entre os degraus 100 e 101)

foi censurado


que tal um pouco de juízo para 

ligar norte e sul?


longarina é via de mão dupla?



*



Estou irreconhecível 

como um 2 que mudou de lado



não sei se me escondo sob a mesa

ou se espio da estante empoeirada 


cada vez mais, clamo pelo meu 

pa(i)piro!



*



O problema não é ter de contar esses botões,

um por um,

sistematicamente...


o duro é ter de aturar

— isso não é ciência! —

o tititi dessas manufaturinhas sob medida! 



*



O que seria de Pascal

sem o silêncio?

o que seria do silêncio

sem o ouro

os óculos

os pingos nos ii?



*



Quem é mais sentimental:

o pingo de chuva

ou o fio-dental?



[Poemas do livro Água Preta]



junho, 2021



Almir Zarfeg — também conhecido como A. Zarfeg ou simplesmente AZ — é um poeta e jornalista baiano radicado em Teixeira de Freitas/BA. Publicou mais de vinte livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Participa de inúmeras instituições literárias e culturais dentro e fora do país. É membro, por exemplo, do Núcleo de Letras e Artes de Lisboa, da União Brasileira de Escritores (UBE-RJ) e da Academia Teixeirense de Letras (que presidiu entre 2016/2020). Em 2017, foi homenageado pela União Baiana de Escritores (UBESC) com o título de "Personalidade de Importância Cultural". Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. Em 2019, foi convidado para organizar o livro de poemas Nós — poesias para tardes ensolaradas, lançado durante a XIX Bienal Internacional do Livro do Rio. Em 2021, o artista celebra 30 anos de trajetória poética iniciada com o livro de estreia Água Preta, de 1991, que terá a 5ª edição publicada pela Lura Editorial.


Mais Almir Zarfeg na Germina

> Poesia