©nino carè

 
 
 
 
 
 
 

ESTANDARTE



ainda que a boca

esteja fechada

o deserto floresce

tu nem sabes do oásis

língua molhada

que lambe tua pele

a peleja da luz

contra o cerco da noite

acende e aquece

a luta é livre

mesmo de corpo atado

meu coração cresce.







VIAGEM



yuri disse que a terra é azul

disse no meio do breu impuro

fumava um baseado

enquanto isso

imagino um slow motion de

flashes estelares

emocionando o cosmonauta

quase olhou para o globo

o que ele viu na verdade

foi a saudosa distorção azulada

do olho esquerdo de valentina

a navilouca dos sete espaços.







A UM PASSO DO PARAÍSO



Para Orides



rasgo a carapuça

numa paranoia súbita

vomito o piloto automático

dessa estética retaguarda medusa

voo para longe de casa

são largas as asas

que me salvam da morte.







ZÉFIRO



o mestre da cidade vizinha

atirou um poema na minha testa

ganhei uma rachadura a céu aberto

nela cresceram oito elefantes

um a cada ano

às vezes incomoda o tamanho

de resto

cuido dessa ferida como quem ama

eles têm dificuldade em se acomodar

passam o dia cutucando meu córtex

eu respiro fundo e assobio

enquanto decoro minha varanda 

com jacintos.







MANHÃS DE DOMINGO



certas manhãs de domingo

são tão verdes que poderíamos

comê-las com sal

nascem dentro da barriga

e fazem um barulho de fome

em manhãs de domingo

saudades crescem como plantas

fazem de toda lâmpada

um raio solar

são manhãs alargadas

cabem no resmungo das portas

no descanso de mãe

no fio da espada

manhãs de domingo se arrastam

enquanto são jorge põe fogo

na lua.







EIXO



a estrada de ferro

são luís — teresina

nunca existiu

conversa de lavadeira

disse me disse

vento de asa quebrada

que não sabe fazer curva

o mendigo dormente

ouviu o tal boato

e mudou para são paulo

foi tentar a vida

na linha azul.






MIUDEZA



um astronauta lírico contou

que da lua ninguém vê

a muralha da china

uma artesã circense

gosta de coisas miúdas

porque combate a miopia

de longe, muralha é montanha

e qualquer cidade, vazia

no dialeto humano

a olho nu é quase dentro

daquilo que significa.







POEMA PARA VIGÍLIA



no pedaço de noite

em que dormes

abraçado à fantasia

de um mundo tranquilo

ninguém pula de viadutos

na ursa maior brilha

o céu profundo do hemisfério

em que transito

e a palavra pendura no varal

pontos de luz

dedos entre cabelos revelam

minha compreensão

da existência sublime e finita.







TROTAMUNDOS



inevitavelmente passamos

de um lugar a outro

o resto das coisas ditas:

imaginação e cuspe

fúria e abandono

se misturam atrás da língua

(às vezes, muda)

poesia que defende

ditadura

dura?

os bichos continuam

em busca da floresta.







LINHA TORTA



era o beco estendido 

de ponta a ponta no horizonte

atrás e na frente

de qualquer paisagem

que se queira contemplar

num passeio com propósito

minimamente lírico

eu vi as desimportâncias

de manuel

e meu coração doeu

porque nada mais resta

em matéria poética

que seja usado para sorrir.







PELÍCULA



a ilusão cinematográfica 

ferra com minha imaginação 

ponho um pé depois do outro

e vejo teu olho no meio 

de um coração pegando fogo

corta pra outra cena

fade in não causa impacto

sigo no expresso oriente 

e o artista com a cabeça 

fora do trem

desenha a paisagem

fade out

teto e parede ausentes 

o sereno esfria 

o corpo incendiado

the end.







DESTINO



um homem aparece à porta

uma mulher caminha 

ao redor da imaginação

corre um rio

parecido com a rua

exatamente ao meio-dia:

nenhuma sombra de dúvida.



março, 2021



Adriana Gama de Araújo [São Luís/MA]. Poeta, editora e historiadora. Mestre em História pela UFRN. Professora da Rede Pública Estadual e Municipal. Vencedora, em 2017, do III Festival Poeme-se de Poesia Falada. Publicou, em 2018, pela Editora Penalux, seu primeiro livro de poesia, Mural de Nuvens para Dias de Chuva. Publicou, em 2019, seu mais recente livro de poemas, TRaNSiTo, pela Olho D'água Edições. Participou da antologia Babaçu Lâmina — 39 poemas (org. Carvalho Junior, 2019). Tem poemas publicados na Variações — Revista de Literatura Contemporânea, Revista Revestrés, Mallarmargens — Revista de poesia e arte contemporânea e Revista Caliban, todas em formato digital.


Mais Adriana Gama de Araújo na Germina

> Poesia