©grégory roose
 

 

 

 
 

 

 

 

A VIDA É ISSO



para Luiz Fernando Medeiros



Era no tempo que minha vó

tinha um salão de beleza

no puteiro. Ergueu as filhas, mamãe disse,

alisando cabelo dos pretos.

Naquele tempo a polícia fuzilava os blacks,

os fariseus, os erês, as bichas do exército,

o povo do 'bar do reggae' reagia

fazendo mais festa. Cravejava a dor de festa.

A dor era abatida no meio da rua. Ninguém

acudia. Coitada!


Há sempre limitados modos de

não perder as estribeiras.

Os filhos dos pretos sem delito

bebiam Sukita da antiga Brahma.

O bar assim como a vida

não tinha seguro e faliu. Bem,

a vida não sai de moda.


No enterro 

restou pouca gente que minha vó fez a cabeça.

Antes disso andava em casa de salto alto

fingindo ser madame de novela. Esse sonho

estragou certamente sua beleza.

O tamanho desse desastre

não cabe nos álbuns.

A tv brasileira massacra.


A propósito 

lembro que mamãe

tem um sorriso de princesa

que espanta demônios de igreja.

Fomos acostumados a comprar 

essas coisas em tendas de palhaços.

A alegria no atacado.

Amor só no varejo.

Mamãe também morre.

Cúmplices ela e eu cruzamos os olhos.

Fingimos que estamos no deserto.

É incrível esse tempo que nos resta.

Nunca sei o que faço com as sobras.

No verão o céu sufoca.







COISAS QUE FIZ E NINGUÉM NOTOU MAS QUE MUDARAM TUDO



1 tesoura de antiquário

1 ramo de aroeira

1 faca

1 peixe fresco

com sangue sobre o gelo


fotografar toda espécie de trapos

recolher o máximo de lixo, costurá-lo em corda e arame

fazer uma jangada e ir ao mar

mais próximo de casa


a: quanto mais trisco minha existência na sua,

sinto-me cada vez mais livre e perto de coisas raras

b: fico pobre quando adiciono ou multiplico

a: quanto mais trisco minha existência na sua,

sinto-me cada vez mais interessado nessa espécie

de liberdade que ganho ao seu lado

b: só ganho quando fracasso


no

estojo de aço (fórceps, água de flor, uma frase

de Marguerite Duras)

um trompete

e bilhetinho de marte e saturno trazido por um xamã

de são paulo: investir sem medo na potência do ato

luz alto astral de março a maio


deitar sobre couro de algum animal fêmea

para tratar da pele avariada

assista durante a ação um cavalo comendo sofregamente o

que vem da terra. é lindo ver o terrestre oferecendo-se em

moeda simples a uma boca que não pede, só aceita.

disponível nos painéis sem controle mais próximos 

de campos abertos


uma tesoura descansa sobre pano branco

cheiro de éter


amo resíduos fortes


calcula-se mal o quanto de silêncio tem num grito

e o desespero desse silêncio quando te escrevo


começos gritam muito







VÂNDALO



tem sido dias de trabalho intenso

falsas mentiras

pesadelos alegres

acusações

fotografia de espectros

declarações de agradecimento

denúncias

pagamento de boletos

olhares táticos entre corpos que se interessam

gestos de ataque e defesa

estou no alvo

finjo sempre que sou o mais frágil do enredo

chifres e pele de búfalo sorrateiramente escondidos no esteio

notas poéticas em pé de página conversas

inbox em língua estrangeira

riso solto

Doutor Freud e eu

pareceres ensino leve batom nos lábios

ando esquecendo

esquecer tem plasticidade

é muito violento o esquecimento

de uma saúde máxima

orgasmos

buscas minuciosas no google de alguma coisa inominável

parágrafos sobre a força bélica da delicadeza

restos de um porvir em toda parte

sem alguma vidência ainda que provisória e precária

a luta por aqui não é justa meu camarada

banhos noturnos na praia da paciência

cansei de ser só seu

audácias







SISTEMA NERVOSO



amor é quando

uma história começa


amor é quando

pequenos enunciados médicos

dizem é grave não estudamos

ainda essas tramas incuráveis

que pena


amor é quando você fica

e festeja verbos de permanência

como os mais políticos dessa língua


amor é quando você de repente

descobre que está no meio

nessa melhor posição de jogo


ela é bem jovem

eu sei


amor é quando a gente vai se devolvendo

sem escândalo à natureza


amor é quando você quer ficar

e seu saco de pancadas rasga


amor é quando você enrijece o saco 

com fibras cósmicas sensuais sonoras

amor é quando tudo isso é dançado 

numa velocidade lenta

até que você desenlace

um de seus lutos inevitáveis


amor é quando

você traz da feira as fomes

e põe seus buracos ancestrais na mesa

para quem quiser


amor é quando você liga o rádio para cantar

enquanto o marido dela lê sete bulas

cada uma com dez efeitos colaterais  

insustentáveis


amor é quando você fica

amor é quando você põe em cena

procedimentos do teatro épico

enquanto a cena é de guerra, você toca

'filosofia pura', de roberto mendes

cantado por gal & bethânia

e instala outra sensação


amor é quando você não quer mas seu corpo dança


amor é quando 15 miligramas batem forte

cada dia a cada oito horas

de antipsicóticos

amor é quando químicas não impedem

nossa paixão

que não desaparece desde o berço

não abro mão desse édipo

viu, félix?!


amor é quando a partir de agora você assume

sua própria maternidade

e faz de seu corpo uma praia

uma conquista

uma matéria leve

suja de terra

firme


amor é quando a vida trabalha

para se espalhar


amor é quando eis um homem


amor é quando do galho um fruto cai


amor é quando você é o restauro

a usina a ruína o canteiro de obra


amor é quando você volta







ME PASSE O AÇÚCAR



Engana-se aquele que disse

depois do meio o fim

Chegamos à conclusão

as linhas que nos cortam variam muito de forma

como seu corpo naquele dia dentro de uma onda

No tempo que sentia muito medo

que aquilo te tomasse de volta

Motores astrolíricos arrastam contêineres

e sonhos para direções alheias com sua potência

ariana

Não sabemos como escapamos

do mapa e caímos com uma mudez falante nesse lugar

diante um do outro, com muitos músculos,

com voz mas sem na voz ardências nomeáveis

Parecemos cinema com dois rostos

presos dentro de um silêncio escandinavo

A tela é a realidade

Há sempre um touro entre este assento e o teu

um touro olhando-nos de soslaio

Dessa vez não me espantei

Perdi na loteria dois medos

Estou podre de rico

Posso de agora em diante apostar no possível

A doutora em física disse

que talvez a gente não se mova suficientemente

para não machucar a delicadeza da coisa

movendo-se na gente

É que às vezes necessária a sorte

de encontrar um acontecimento

que nos violente ao máximo

Só por essa via que uma força incubada estala

Apurei de perto essa tecnologia

Não lembro o que ganhei e perdi

Quanto mais apagamos rascunhos de futuro

mais a versão que interessa se encarna

A cada passo cuido para não perturbar

o sutil preparo de milagres

Aceito com alguma revolta quase tudo

Por exemplo,

a violência dos acasos

Choramos

mas agora há um touro olhando

de soslaio a própria sombra

com tranquilidade pavorosa

que um outro touro da sombra escape

Esqueço de perguntar qual nome você usa hoje

A mulher-que-tira-sangue sussurra

que vira e mexe somos desperdiçados

que desperdiçamos

e que isso parece que dói mas nem tanto

Sigo aves

Descubro em laboratório alquímico

que por não possuírem a mesma plumagem

hospedam-se em diferentes rotas de perigo

Elas não se transam

Elas quando desabam não impedem nada







CINEMA DE POESIA

como se um gesto qualquer
não levasse tempo para
compor-se e daí disseminar-se
num certo
corpo

como se um gesto em sua
preciosa banalidade de titânio valesse
e vale como uma
espada no ar em ziguezague

após o primeiro lance de
escada bater sem espanto na
porta à esquerda e ir entrando
como se
a vida fosse uma coisa de cinema




// ÁUDIO, 01h14

Meu amor, te liguei, caiu na secretária.

Fiquei escorpianamente com raiva dessa sua voz nesse

aparelho que não interage e lembra um rádio-

relógio com aqueles números graúdos como

esculturas neon. Parece desprezo. Te liguei para te

falar que arranjei um outro alguém, que vou ficar. Não

chore muito. Não pelo menos como tenho chorado. 

Aliás, é clichê, mas passa.




// ÁUDIO, 01h23

Outra novidade: mandei um email para aquela poeta

que lemos juntos na cama. Ela me respondeu. Disse

que riu à beça. Fiquei excitado com a possibilidade

de rirmos juntos. Será que ela ainda dorme com homens?

Se sim, temos chance. Escrevi que trato seus poemas

como pensamentos poéticos densos e indecidíveis.

Amo-os muito. Tenho dito isso a todos que escrevem.

Eles ficam emocionados. Tenho saudade mas não tanta

de quando você desenhava dois ideogramas japoneses

em minhas costas. Era kitsch e saudável e tão bom

estar fora de moda ao seu lado. O prefeito pirata pensa

ainda em derrubar aquelas árvores?




// ÁUDIO, 01h40

Estou passando para dizer que dei essa semana

aquele curso aqui na universidade sobre poesia

contemporânea, li o poema Íntima, p.132. Adoraram.

Uns quatro entretanto não entraram no jogo.

Desisti daqueles quatro. Desisto fácil quando entro mas

não entram na minha trama. Dormi no final da noite

com um professor e acho que estou apaixonado. Os

alemães são uma graça. 




// ÁUDIO, 01h44

Não se mate, pega super mal depois que o espanto passa.

Além do mais, fica esteticamente inviável. É melhor

arranjar outro rapaz. Com sua beleza, não demora do

rapaz chegar. Fique atento mas não demais, apenas o

suficiente para não deixar o inesperado ir embora. Ele

é muito delicado, morre com um toque, com qualquer

gesto de cuidado, ele morre.




//ÁUDIO, 01h47

Vi sua foto na página de Taise & Rosana. Tristezas

não combinam com suas camisas punk-xadrez, apesar

de se equilibradas, você fica um charme. Ganhei

uma bolsa de dois dias para escrever um poema

em Varsóvia. Orgasmos, vinhos e euforias não me

deixaram pegar o trem. Esse professor tenho certeza

tem pacto com o diabo.




// ÁUDIO, 01h52

Aliás aquele livro, tratei de roubá-lo da universidade

antes da conclusão do doutorado, mas fui roubado e

levaram de minha mochila aquelas ações todas.

Estou em uma enrascada.

Ladrão de nenhuma espécie de coisa tem paz.

Agora entendo porque capturar é mais corpulento que

roubar. O roubo leva a materialidade, mas não a força.

Fui tragado por alguma coisa daquele homem que

ainda não sei nomear. Ele quando me vê fica bobo.

Passo o dedo no seu braço e rastreio onde nele é

forte, onde dói, onde tem buraco. Comigo essas coisas

estranhas sempre funcionam, você sabe.




//ÁUDIO, 01h58

Vou tentar de novo. Suponho que você também.

Acho que estamos nos movendo juntos dentro de

alguma espécie de coisa que vem, funga nosso pescoço,

para um pouco, nos espalha e retorna para mata.

É verão mas o tempo por aqui vira muito.

As coisas viraram e isso tem

tanta química e doçura e paz.

A vida por aqui vive escapando

mas não hoje.







BICHO DE CORTE



era minha vó quem gritava

não volte não entre aqui nessa jaula apanhado

seu preto


nem com outra criança nos braços


nem ouse voltar morto

senão eu te mato


até agora 

sou eu quem saio corro transo

sou eu quem corro fico parado ameaço

eu quem


mas minha vó que venceu tanto

desobedeceu às suas próprias leis

como de praxe


no carnaval

de 1970 da praça castro alves

era minha tia

quem saía com uma minissaia

atrás do trio dos novos baianos

e entre os dedos uma navalha


o esperto que a agarrava

ela cortava


porque

no pelourinho apanhamos muito

fomos apanhados

perdíamos fácil a calma

uma palavra maldita

era devolvida às vezes com uma facada

uma rajada de tambores

macumba na igreja de nossa senhora do rosário


o fogo era sempre

ele a primeira política


o fogo

não a poesia


mesmo que ainda

o poema seja fogo

ainda que anteceda

as cinzas







BRASA



minha mãe lia de tudo

situava notas do subterrâneo

rente ao livro de folhas sagradas

era um acerto de contas

no fim do dia

eu limpava a bagunça

quando ainda não era

essa muralha de areia úmida


era menos

que toco de árvore

quando a acompanhava ao mercado

era eu a sua mão viga

minha mãe sempre exigiu mais de um pai


e foi então

que num segundo ela

desapareceu de vista

gritei

doutor freud chegou depois

ou quase ao mesmo tempo

que ela jogou para cima

um monte de tralha


uma vez

num instante incontornável

saiu em definitivo do ringue do diálogo

que coragem

disseram

incontornável


desenhei linhas curvas 

para entender essa palavra

minha mãe já era outra coisa

magnífica divertida

pouco terráquea


pediu para levá-la

à grande casa

mas eu sou ainda ruína

não vejo a trilha


às vezes alguma coisa

bate antes no futuro

e vem voltando

para contar

o inenarrável


minha mãe disse alastre-se







ANTIFASCISMO



Meu pai e eu demoramos

muito para sustentar olho no olho 

e dizer à queima roupa te amo cara.

O valor dessa frase subia e

despencava no mercado,

nas argolas de açougues,

em pausas após orgasmos.


Sentia-se ele um pouco órfão de filho

enquanto que eu de um poeta como Raymond Carver.

Era estranho. Não havia língua que 

assaltei palavra por palavra e não sei como

da boca de meu pai.

Nenhuma outra deu-me tanto

mesmo anarquicamente calada.

A partir de um tempo fui levado

a assumir uma história radical

que afastava-me atando-me esquizo

a esse rapaz.

Tentei manter a imitação. Falhei.


Vi no youtube como ser filho já adulto

de um homem estreante na terceira idade.

Anotei tudo, sobretudo palavras clímax

palavras vergáveis que enfrentam

esse malandro de luxo.

Meu pai e eu demoramos (não lembro)

o necessário para acolher

uma afirmação inalienável. Não minto,

feriu um pouco a garganta às vezes eu te amo

sai como lâmina.


Estranhamente estive sempre disposto

a essas coisas de rasgar ser rasgado

de ser moço e a moça

a caça o capataz.

Já estou dando o fora, poema,

cuide bem de meu velho, tchau.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Moisés Alves nasceu no Pelourinho, em Salvador, Bahia. É doutor em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor adjunto de Literatura do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e dos cursos de Letras e Cinema e Audiovisual da Unijorge. Publicou poemas no Jornal Rascunho e na Revista Cult, e tem poemas traduzidos para o alemão. Bibliografia: Cadernos de artista (Rio de Janeiro: Circuito, 2017), Onde late um cachorro doido (Rio de Janeiro: Circuito: Azougue, 2017), Escrito e dirigido por Moisés Alves (Rio de Janeiro: Circuito, 2018), Coisas que fiz e ninguém notou mas que mudaram tudo (Rio de Janeiro: Circuito, 2018).